quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

O Brasil de Bolsonaro afunda

País vive sob o comando de um alucinado, lembra Ascânio Saleme

Os sinais estão espalhados por todos os lados. Só não vê quem não quer. O Brasil de Jair Bolsonaro desmorona. Todos os erros cometidos ao longo dos dois primeiros anos de seu mandato começam a ser cobrados. O problema é que a conta será paga por todos, inclusive por aqueles que têm pavor da figura presidencial, como você e eu.

Na terça-feira, o francês Emmanuel Macron expressou um sentimento com que a maioria dos líderes europeus concorda, o Brasil de Bolsonaro não é um país confiável. Como não se obtém um compromisso em favor do meio ambiente e da Amazônia, muito menos medidas nesse sentido, Macron propôs um boicote à soja brasileira. E sugeriu que se plante soja em solo europeu. Para Macron, continuar dependendo da soja brasileira seria “endossar o desmatamento da Amazônia”.

Talvez o presidente francês não ignore que os grandes produtores de soja brasileiros não cortam uma árvore nativa nem acendem um palito de fósforo nas florestas brasileiras há pelo menos 20 anos. Que os incêndios e as derrubadas de matas são feitas hoje em dia por madeireiros, garimpeiros, grileiros e pequenos produtores rurais, muitos deles de assentamentos de sem-terra. Mas há um símbolo nisso que precisa ser mantido.

Macron ataca esse símbolo, a política governamental brasileira que aceita e incentiva esses desmatadores, mesmo que sua contribuição para a economia nacional seja mixuruca perto da riqueza que geram os grandes produtores rurais. Estes, que já estavam sob enorme pressão graças a nosso bolsonarismo ambiental, agora ouvem do presidente de um dos dois maiores países agrícolas da Europa que é hora de reagir contra a soja nacional.

O relatório anual da Human Rights Watch (HRW), divulgado ontem, também ataca o frouxo combate do governo brasileiro ao desmatamento e às queimadas. Para os terraplanistas que cercam ou seguem cegamente sua excelência, a entidade deve ser ignorada porque é uma “ONG esquerdista”. Sobre Macron, devem fazer referência a sua mulher, como as que o nosso misógino presidente um dia fez, por isso ele também não deve ser levado em conta.

Agora, perguntem aos produtores rurais o que eles acham disso. O Ministério da Agricultura divulgou uma nota vaga dizendo que Macron estava enganado, que a soja brasileira é produzida de modo sustentável. Não foi assinada pela ministra Tereza Cristina e não se referiu ao relatório da HRW.

De outro lado, a Ford anunciou sua saída do Brasil. As razões devem ser as alegadas, por reposicionamento global da empresa, pelo movimento do mercado etc. Mas é evidente que o ambiente de negócios sob Bolsonaro não estimula qualquer argumento contrário. Macron, que está do outro lado do Atlântico, percebeu que este não é um país sério. Imagine, então, o que pensam os dirigentes da montadora que operam aqui dentro.

Se até o Banco do Brasil, joia do Estado nacional, orgulho provinciano de muitas gerações de brasileiros, anunciou um plano de demissão voluntária para acertar suas contas, pense como estão os outros bancos, as outras empresas que operam em solo pátrio, debaixo da incompetência governamental que conhecemos. Quem puder pular fora vai pular. Mesmo com algum prejuízo, a contabilidade mais adiante pode comprovar o acerto da saída.

Além das muitas deficiências nacionais (falta de infraestrutura, sobretudo ferroviária, produtividade baixa, barafunda tributária), o país agora vive sob o comando de um alucinado que só se ocupa de política. Pior, do lado escuro e sombrio da política. O mesmo relatório da Human Rights Watch acusou nominalmente Bolsonaro por tentar sabotar as medidas contra a Covid-19. A ONG afirma ainda que o governo mais espantoso que o país já viu incentiva a violência policial e desrespeita os direitos das mulheres, dos índios e de pessoas com deficiência.

O Brasil de Bolsonaro afunda no modo acelerado. Tudo o que ele puder fazer para jogar o país para baixo, vai fazer. A herança que deixará será maldita, essa sim. Para lá de maldita.

Ascanio Saleme é Jornalista. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 14.01.2021

Brasil registra mais 1.131 mortes por covid-19

País tem ainda mais de 67 mil novos casos de coronavírus em 24 horas. Total de infectados chega a 8,3 milhões, enquanto óbitos ligados à doença passam de 207 mil.


Caixão é sepultado em cemitério em Manaus

O Brasil registrou, pelo terceiro dia consecutivo, mais de mil mortes ligadas à covid-19 em apenas 24 horas, ao somar 1.131 óbitos nesta quinta-feira (14/01), segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

O país registrou ainda 67.758 novos casos confirmados da doença. Com isso, o total de infecções oficialmente identificadas subiu para 8.324.294, enquanto os óbitos chegaram a 207.095.

Ao todo, 7.277.195 pacientes se recuperaram da doença no país, segundo dados do Ministério da Saúde divulgados na quarta-feira. O Conass não divulga número de recuperados.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais de casos e mortes devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes está em 98,5 no Brasil, a 21ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Andorra e Liechtenstein.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 23,2 milhões de casos, e da Índia, com 10,5 milhões. Mas é o segundo em número de mortos, já que mais de 386 mil pessoas morreram em território americano.

Em todo o mundo, mais de 92,7 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus, e 1,98 milhão de pacientes morreram em decorrência da doença.

Deutsche Welle, há 1 hora.

Bastidores: Rusgas de Bolsonaro com presidente do BB envolvem indicação e show do Seu Jorge

Em dezembro, o BB contratou Seu Jorge para fazer uma live para os funcionários do banco; ideólogos do governo criaram a maior confusão e reclamaram com o presidente, dizendo que cantor é ligado à esquerda. Informam Tânia Monteiro e Adriana Fernandes, de O Estado de São Paulo.

Bastidores: Rusgas de Bolsonaro com presidente do BB envolvem indicação e show do Seu Jorge

Presidente do BC entra em campo para demover Bolsonaro da decisão de demitir André Brandão do BB

Bolsonaro evita responder sobre permanência de presidente do BB no cargo

As rusgas do presidente Jair Bolsonaro com o presidente do Banco do Brasil, André Brandão, começaram lá atrás. A relação entre os dois já nasceu torta. O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, indicou Brandão para o BB e consultou o ministro da Economia, Paulo Guedes, que endossou o nome. 

Jair Bolsonaro, presidente da República, e André Brandão, presidente do Banco do Brasil Foto: Alan Santos/ PR

A indicação, porém, não foi validada amplamente pelo presidente Jair Bolsonaro. Isso criou um problema à época, o que deixou o presidente Bolsonaro incomodado porque os dois - Guedes e Campos Neto - já tinham decidido pelo nome antes de ele bater o martelo. Caso quisesse, porém, o presidente poderia ter vetado o nome. 

Para piorar a situação, em dezembro, o BB contratou Seu Jorge para fazer uma live para os funcionários do banco, no dia 5 de dezembro. Os ideólogos do governo criaram a maior confusão e reclamaram com o presidente, dizendo que Seu Jorge é ligado à esquerda e que o banco público contratar o cantor  era um absurdo. O presidente concordou com as críticas e "anotou no caderninho”.

O presidente e essa ala radical do governo alegam que o BB continua “tomado pelos petistas” e que a atual direção, assim como a anterior, nada fez para atuar na troca desses executivos que seriam ligados à esquerda e continuariam com poder no banco.

A decisão de Brandão de fechar agências sem que o presidente fosse comunicado foi o estopim. Auxiliares garantem que o presidente só ficou sabendo das demissões e do fechamento de agências quando começaram a chegar as cobranças. Elas vieram, principalmente, de prefeitos e parlamentares que ligaram ou mandaram WhatsApp.

O presidente insistiu que quer ser informado dessas decisões com antecedência. E cobrou Guedes, que não teria lhe informado da reestruturação anunciada na segunda. No entanto, na escolha de Brandão, o presidente já tinha sido comunicado que o nome estava alinhado ao objetivo da equipe econômica de enxugar o banco e focar na digitalização e, em nenhum momento, se opôs. Para analistas de mercado, o plano do BB foi considerado, inclusive, tímido e atrasado. 

A avaliação no Palácio do Planalto é de que Bolsonaro pode até desistir de demitir o presidente do BB por temer como a ingerência política vai afetar a queda das ações do banco, mas exige que seja informado de tudo por conta do contexto das eleições na Câmara e no Senado. 


Paulo Guedes, ministro da Economia de Jair Bolsonaro Foto: Alan Santos/ PR

Para assessores do presidente, está evidente que não existe relação de confiança de Bolsonaro com o presidente do BB e que há um desgaste do ministro Paulo Guedes, que endossou o nome de Brandão lá atrás e agora entrou em campo para segurá-lo na presidência do BB. Ou seja, Guedes está gastando capital junto ao presidente.

Na conversa com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, Bolsonaro falou com o presidente sobre a situação do Brandão, e a cobrança maior foi no sentido de que ele precisa ser informado de uma decisão como essa de impacto social, político e econômico. O trabalho, agora, é para contornar a situação, para evitar um mal maior, na avaliação de assessores presidenciais.

Funcionários do BB também estão temerosos com o risco de o impasse em torno do plano de reestruturação do banco abrir a porteira para as indicações do “Centrão” no banco nesse momento em que compromissos estão sendo assumidos para a eleição do comando das presidências da Câmara e do Senado.  

Segundo apurou o Estadão, há uma avaliação entre os funcionários que faltou transparência, mas o risco maior é lotear os bancos com indicações políticas ou ideológicas. O diálogo entre os funcionários e o novo presidente do BB é considerado positivo, ao contrário da relação com o presidente anterior, Rubem Novaes.

Publicado originalmente por O Estado de São Paulo, em 14.01.2021.

Bolsonaro cruza Cabo das Tormentas em queda nas redes sociais

Demora na vacinação contra coronavírus e problemas na política e economia contribuem para inferno astral. Comenta Vera Rosa.

Na virada do ano, o presidente Jair Bolsonaro cruzou o Cabo das Tormentas e iniciou a segunda metade de seu mandato com a aprovação em queda nas redes sociais. A popularidade de Bolsonaro nas mídias digitais já vinha caindo e é atribuída por analistas dessas plataformas a uma tempestade perfeita que vai da economia à política, mas, principalmente, ao imbróglio relacionado à demora para a vacinação contra o novo coronavírus. Com todo o mundo se imunizando e o Brasil no fim da fila, Bolsonaro paga o preço de seus desacertos e tenta vencer a crise no gogó, o que tem provocado pânico na equipe de comunicação.

“Estou há quatro meses apanhando por causa da vacina”, disse Bolsonaro a apoiadores. “Entre eu e a vacina tem a Anvisa. Eu não sou irresponsável. Não estou a fim de agradar quem quer que seja”, emendou ele. O presidente ironizou a taxa de eficácia da Coronavac, de 50,38%, comprada pelo governo de São Paulo, sob o comando de João Doria (PSDB), seu rival político.

Redes sociais 

A vacina é produzida pelo Instituto Butantã, de São Paulo, em parceria com o laboratório chinês Sinovac. “Essa de 50% é uma boa? Agora estão vendo a verdade”, provocou o presidente. Doria aproveitou a deixa para dar uma estocada no adversário. “Enquanto brasileiros perdem vidas e empregos, Bolsonaro brinca de ser presidente”, reagiu o tucano.

Bem longe do palanque montado para a disputa presidencial de 2022, porém, está a triste realidade. O estoque de oxigênio acabou em hospitais de Manaus, levando pacientes à asfixia, mais de 200 mil brasileiros já morreram em consequência dos efeitos da covid-19 e o País não consegue sair da crise. Nesta quinta-feira, 14, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, disse a prefeitos que o “Dia D e a Hora H” para o início da vacinação será o próximo dia 20 – por coincidência, a mesma data da posse do novo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden.

O revés sofrido por Bolsonaro nas redes sociais, no entanto, não se resume ao impasse sobre a aquisição da vacina. Monitoramento em tempo real feito pela empresa AP Exata indica que a queda da popularidade do presidente no mundo virtual ocorre de forma consistente desde 6 de dezembro do ano passado e já ultrapassa 20 pontos. Nesta quinta-feira, 14, por exemplo, o número de menções positivas sobre Bolsonaro está em 36% e o de negativas chega a 64%.

A contestação a Bolsonaro cresce entre liberais e perfis ligados ao mercado financeiro. A pesquisa da AP Exata indica que existe, ainda, um ambiente de “falta de paciência” para o vaivém do governo na condução da economia e pressão por privatizações que não saem do papel. Cresce a percepção de que o presidente está mais preocupado em tomar medidas populistas para se reeleger e não dá trela ao ministro da Economia, Paulo Guedes.

Enquanto isso, Bolsonaro continua sua queda de braço com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e pede votos para o deputado Arthur Lira (Progressistas-AL), chefe do Centrão. A eleição que vai escolher os novos presidentes da Câmara e do Senado está marcada para fevereiro. O resultado desse confronto é o embrião da correlação de forças que pode se formar para a disputa de 2022 contra Bolsonaro.

Em outra frente da batalha, bolsonaristas que convivem com o chefe do Executivo incentivam os seguidores a migrar para mídias alternativas. Desde que Donald Trump foi derrotado por Biden na eleição para a Casa Branca e banido do Twitter após a invasão do Capitólio promovida por seus discípulos, Bolsonaro e ministros aderiram ao Telegram. Mesmo assim, não saíram dos canais de comunicação tradicionais, sob o argumento de que não podem professar sua fé apenas em “guetos”, como disse o assessor especial da Presidência para Assuntos Internacionais, Filipe Martins.

“(...) Temos que brigar para fortalecer e popularizar plataformas alternativas sem deixar de brigar para preservar nosso espaço em plataformas tradicionais, nas quais há muita gente que não pode ser deixada à mercê da desinformação e das narrativas de esquerda”, escreveu Martins no Twitter.

Na tentativa de puxar seguidores para o Telegram, o assessor Tercio Arnaud Tomaz – que integra o “gabinete do ódio” no Planalto e foi apontado pelo Facebook como responsável pela administração de perfis falsos – tem usado essa plataforma para divulgar conversas de Bolsonaro com eleitores.

Agora, a ala ideológica também faz apelos para que aliados do governo entrem em mídias como DuckDuckGo, no lugar do Google, e MeWe, em substituição ao Facebook, que suspendeu Trump. Nada disso, porém, resolverá a crise da comunicação enquanto o presidente não começar a governar, deixando para trás o Cabo das Tormentas.

Vera Rosa é Repórter especial d'O Estado de São Paulo em Brasília desde 2003. Publicado originalmente em 14.01.2021.

Estoque de oxigênio acaba em hospitais de Manaus e pacientes morrem asfixiados

Sem insumo, equipes tiveram que ventilar manualmente pacientes internados na UTI; secretário da saúde fala em colapso do sistema de fornecimento

Com a nova explosão de casos de covid no Amazonas, o estoque de oxigênio acabou em vários hospitais de Manaus nesta quinta-feira, 14, levando pacientes internados à morte por asfixia, segundo relatos de médicos que trabalham na capital amazonense. O governo federal anunciou que vai transferir pacientes para outros Estados.

O Hospital Universitário Getúlio Vargas (HUGV), ligado à Universidade Federal do Amazonas (UFAM), ficou cerca de quatro horas sem o insumo na manhã desta quinta. De acordo com um profissional ouvido pelo Estadão e que não quis se identificar, o oxigênio acabou na madrugada de quinta, gerando desespero nas equipes de saúde.

"Colegas perderam pacientes na UTI por causa da falta de oxigênio. Eles ainda tentaram ambuzar (ventilar manualmente), mas foi só para tentar até o último recurso mesmo, porque é inviável manter isso por muito tempo. Cansa muito, tem que revezar os profissionais. Chamaram residentes para ajudar na ventilação manual. A vontade que dá é de chorar o tempo inteiro. Você vê o paciente morrendo na sua frente e não pode fazer nada. É como se ver numa guerra e não ter armas para lutar", disse outra médica da unidade.

Diversos relatos que circulam nas redes sociais dão conta de que a situação é crítica e centenas de pessoas internadas correm risco de morrer. “O Getúlio Vargas está sem oxigênio e todos os pacientes estão sendo ambuzados (ventilação manual). Se alguém puder ajudar para fazer o revezamento para ambuzar no CTI no quinto andar, por favor, estamos necessitando”, afirma um médico, em um alerta que circulou pelas redes sociais e foi confirmado ao Estadão por profissionais que trabalham no hospital.

Ambuzar é uma expressão usada para a oxigenação mecânica em que um profissional precisa ficar bombeando um balão de oxigênio com as mãos, o que é exaustivo e precisa de revezamento.

               

Funcionários do Hospital João Lúcio, transferindo corpos no início de janeiro. Desde o fim do ano a cidade de Manaus está em estado crítico, com falta de leitos e de oxigênio Foto: Sandro Pereira/Fotoarena

Segundo a médica ouvida pela reportagem, o Getúlio Vargas recebeu, por volta das 12 horas, alguns cilindros de oxigênio, mas a estimativa era a de que eles seriam suficientes para apenas duas horas.

De acordo com relatos de outros profissionais de saúde da cidade postados nas redes sociais, a maioria dos hospitais sofre o mesmo problema. Há registro de falta do insumo nos hospitais Fundação de Medicina Tropical e nos serviços de pronto-atendimento (SPAs) da capital amazonense.

O procurador de Justiça Públio Caio Dessa Cyrino, que tinha um filho internado no Hospital Fundação de Medicina Tropical, disse ao Estadão que pela manhã não havia oxigênio para nenhum dos pacientes. “Minha nora me ligou às 5h, quando ela foi lá visitá-lo, avisando que tinha acabado. Ele estava no terceiro dia de UTI e evoluindo bem. Por sorte eu tinha uma ‘bala’ de oxigênio em casa e corri para o hospital para levar para ele. Quando cheguei com a bala na mão, vi o olhar de desespero dos médicos, servidores. Eles estavam em choque, sem poder fazer nada.”

Cyrino conta que o filho, de 36 anos, começou a se sentir mal há quase duas semanas, mas logo no início não achou vaga em hospital e ficou em home care, por isso ele tinha oxigênio. “Isso aqui é uma praça de guerra. E esse governo irresponsável não se planejou para a guerra, apesar de saber que ela iria ocorrer”, disse. 

Ele conseguiu contratar uma UTI aérea e ia transferir o filho para São Paulo agora à tarde. “Eu consegui, mas quantas centenas não têm como fazer isso e podem morrer hoje?”

Mesmo as unidades que ainda não chegaram ao fim do estoque registram escassez do insumo, como é o caso do Hospital e Pronto-Socorro 28 de Agosto. Médico de urgência e emergência na unidade, Diemerson Silva diz que a demanda por oxigênio se intensificou com o aumento de internações pela covid-19 nos últimos sete dias.

“O hospital é abastecido de forma diária, de acordo com a necessidade, mas na última semana houve uma maior necessidade e, com essa dimensão, tivemos que fazer o uso racional do oxigênio”, explica. “O que tem acontecido é que há aumento da demanda de consumo e, infelizmente, uma diminuição da oferta.”

Silva conta que o hospital tem, nesta quinta-feira, ao menos cem pacientes, entre enfermaria e unidade de tratamento intensivo, com necessidade de oxigenação. “No momento, não temos pacientes sem oxigênio, mas temos uma oferta que não vai dar para suprir todos. Chegam muitos pacientes a cada hora e não sabemos até quando vamos conseguir ofertar para essa quantidade de pessoas.”  

De acordo com ele, houve uma reunião nesta manhã entre os membros do gabinete de crise e agora o hospital aguarda o suprimento vindo de outros Estados.

Segundo Marcellus Campêllo, secretário Estadual da Saúde do Amazonas, as empresas fornecedoras de oxigênio entraram em colapso por não conseguir atender a demanda pelo insumo, que dobrou em relação ao primeiro pico da pandemia, registrado entre abril e maio.

"No 1º pico, o consumo máximo foi de 30 mil metros cúbicos de oxigênio e, nesse momento, nós estamos com consumo acima de 70 mil cúbicos de oxigênio. O número mais que dobrou em relação ao pico do ano passado. Ontem à noite fomos informados do colapso do plano logístico em relação a algumas entregas que estariam abastecendo  a cidade de Manaus, o que causará uma interrupção da programação por algumas horas", declarou.

Corrida por oxigênio

No desespero pela falta de atendimento adequado, muitas pessoas estão tentando comprar oxigênio por conta própria para garantir a vida de familiares com sintomas graves de covid-19. O professor de Educação Física Walhederson Brandão Barbosa, 38, é um deles, que está correndo contra o tempo para não deixar sua mãe sem o insumo. “Já recarreguei o cilindro três vezes e agora estou indo encher um maior; a família toda está se mobilizada para mantê-la com oxigênio”, conta.

Barbosa relata que sua mãe está internada com sintomas de covid-19 na Unidade de Saúde de Pronto Atendimento José Jesus Lins, no bairro Redenção, zona Centro-Oeste de Manaus. “Às 8h, soubemos que faltou oxigênio. Lá dentro eu vi mais de cinquenta pacientes entubados; minha mãe está com boa saturação e está na sala de inalação improvisada no local, mas ainda assim precisa de oxigênio porque está com cateter nasal. Nós estamos comprando agora um cilindro de dez litros e pagando R$ 1 mil”.

Pacientes devem ser transferidos para outros Estados

Com o colapso da rede de atendimento, o Amazonas deve transferir os seus pacientes a outros Estados. A ideia é que ao menos 750 pessoas recebam tratamento em diversas outras cidades.

Mais cedo, em entrevista à imprensa, o governador Wilson Lima (PSC) afirmou que o Amazonas vive "o momento mais crítico da pandemia, algo sem precedente". No ano passado, as redes de saúde e funerária do Estado já colapsaram. 

O governo federal irá apoiar a transferência dos pacientes, em aviões militares. O secretário nacional de Atenção Especializada em Saúde, Franco Duarte, disse que serão transferidos pacientes com quadros "moderados", que exigem uso de oxigênio, mas têm ainda condições de serem transportados.

O vice-presidente Hamilton Mourão informou na tarde desta quinta que aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) transportarão a Manaus mais de oito toneladas de material hospitalar, entre camas, cilindros de oxigênio, macas e barracas.

Com novo pico de covid-19, enterros em Manaus quintuplicam em um mês

O número de sepultamentos em Manaus quintuplicou em um mês, segundo dados divulgados pela Prefeitura. Na quarta-feira, 13, 198 enterros ocorreram na capital, dos quais 87 tinham confirmação para covid-19 e sete eram de casos suspeitos. Em 13 de dezembro foram 36 óbitos, seis com resultado positivo para o vírus. Isto representa um aumento de 450%. 

O crescimento também se repete entre as mortes em domicílio, que quadruplicaram. Em 13 de dezembro, foram registradas 6 pela gestão municipal, número que subiu para 26 em 13 de janeiro.

Com o aumento de sepultamentos, duas câmaras frigoríficas foram instaladas pela gestão municipal e começaram a funcionar nesta quinta-feira no cemitério público Nossa Senhora Aparecida. Elas são destinadas ao armazenamento provisório de até 60 caixões.

Redação, O Estado de São Paulo / FABIANA CAMBRICOLI, GIOVANA GIRARDI, LUIZ CARLOS PAVÃO, JOÃO KER, MATEUS VARGAS, PRISCILA MENGUE E ALISSON CASTRO, em 14 de janeiro de 2021 | 15h10 - Atualizado 14 de janeiro de 2021 | 17h52


Segundo impeachment de Trump tem o efeito de punição profilática

A impugnação do presidente pela Câmara dos EUA tenta romper com um padrão de comportamento radical, considerado inaceitável para um estadista. Comentário de Sandra Cohen.

A carnificina que o presidente Donald Trump prometeu erradicar dos EUA há quatro anos, no discurso de posse, acabou por consumi-lo e dominar o fim de um mandato violento e melancólico. Na Câmara dos Representantes, congressistas imprimiram a marca da derrota a Trump não apenas como o único presidente a sofrer dois impeachments, mas como o homem mais perigoso que já ocupou o Salão Oval, conforme asseverou o deputado democrata Joaquin Castro, do Texas.

O segundo impeachment, após 13 meses, atesta também a ruptura de dez republicanos com o discurso do ódio propagado por Trump. Os 197 que votaram contra a sua destituição não se preocuparam em defender o presidente da acusação de incitamento à insurreição. Focaram seus ataques no processo sumário, sem investigações ou audiências, liderado pela presidente da Câmara, Nancy Pelosi.


Nancy Pelosi, a Presidente da Câmara dos Deputados, assina a comunicação ao Senado Federal da instauração de processo contra Donald Trump, que se torna o 1º presidente dos EUA a sofrer dois impeachments — Foto: Reprodução

Todos que votaram nesta quarta-feira, contra ou a favor do impeachment do presidente, foram testemunhas da invasão ao Capitólio. Os democratas, contudo, estavam movidos por impor o impeachment como uma medida profilática: romper com um padrão considerado inaceitável para um estadista, o de insuflar partidários a resistir ao resultado eleitoral que tornou Joe Biden presidente eleitoral.

No discurso à massa de apoiadores que precedeu à invasão do Capitólio, Trump pronunciou pelo menos dez vezes o verbo lutar, a maioria na versão imperativa. A resposta veio na forma de depredação e pilhagem da Casa do Povo, com centenas de congressistas acuados e forçados a fugir do plenário.

O impeachment agora é fato consumado, mas não implica na destituição do presidente. O processo só chegará ao Senado após a posse de Biden, no dia 20, e será transformado em julgamento num ambiente político distinto: Trump estará fora da Casa Branca, e a Câmara Alta, dominada pelos democratas.

Dezessete senadores republicanos precisarão ser convertidos para alcançar a maioria de dois terços necessária à condenação. Caso isso se confirme -- não há precedentes de um processo de impugnação de um ex-presidente -- será necessária uma votação adicional para impedir que ele se torne elegível.

Cortar o mal pela raiz parece ser, em última análise, a meta dos democratas. Os 70 milhões de votos conquistados por Trump, no entanto, são o indício mais forte de que seu movimento radical ainda permanecerá no cenário político americano.

Sandra Cohen é Jornalista especializada em temas internacionais, foi repórter, correspondente e editora de Mundo em 'O Globo'. Publicado originalmente por G1, em 14.01.2021

Brasil registra mais 1.131 mortes por covid-19

País tem ainda mais de 67 mil novos casos de coronavírus em 24 horas. Total de infectados chega a 8,3 milhões, enquanto óbitos ligados à doença passam de 207 mil.


Caixão é sepultado em cemitério em Manaus

O Brasil registrou, pelo terceiro dia consecutivo, mais de mil mortes ligadas à covid-19 em apenas 24 horas, ao somar 1.131 óbitos nesta quinta-feira (14/01), segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

O país registrou ainda 67.758 novos casos confirmados da doença. Com isso, o total de infecções oficialmente identificadas subiu para 8.324.294, enquanto os óbitos chegaram a 207.095.

Ao todo, 7.277.195 pacientes se recuperaram da doença no país, segundo dados do Ministério da Saúde divulgados na quarta-feira. O Conass não divulga número de recuperados.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais de casos e mortes devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes está em 98,5 no Brasil, a 21ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Andorra e Liechtenstein.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 23,2 milhões de casos, e da Índia, com 10,5 milhões. Mas é o segundo em número de mortos, já que mais de 386 mil pessoas morreram em território americano.

Em todo o mundo, mais de 92,7 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus, e 1,98 milhão de pacientes morreram em decorrência da doença.

Deutsche Welle, há 34 minutos.

Porandubas Políticas

 Por Gaudêncio Torquato

Abro a coluna com uma historinha do Piauí.

Hermenegildo

Recebi de Raimundo Junior uma historinha do Piauí que foi contada por seu pai, Raimundo Dias, ao nosso amigo Sebastião Nery, com quem estudou no Seminário. Vejam o inelegível: O candidato contra Jorcelino chamava-se Hermenegildo. O advogado de Hermenegildo, na impugnação de Jorcelino, era Benjamin Lustosa. O dr. Benjamin ficou a audiência inteira tentando provar que Jorcelino era "inelegível". Era "inelegível prá cá, inelegível prá lá". Quando saíram, Jorcelino disse a seu advogado, Raimundo Dias:

- Doutor, o senhor viu como o Dr. Benjamin está louco?

- Por quê?

- Ele passou o tempo todo dizendo que eu era Hermenegildo.

(A fonética entrou mal nos ouvidos de Jorcelino).

Panorama

Como tenho dito e escrito, projetar cenários é um desafio dos mais instigantes para os analistas da política. Principalmente quando fatores imprevisíveis baixam sobre o planeta. Mesmo assim, arriscamo-nos a fazer o exercício. Na esfera mundial, são visíveis certos fenômenos que tendem a se avolumar na esteira da desigualdade, que se expande na economia e seus impactos sobre as Nações. Dentre estes, podemos apontar a polarização política, o enfraquecimento dos partidos de esquerda e centro-esquerda, o declínio das ideologias, a indignação das bases com entes partidários e seus protagonistas, a fragmentação das classes médias, enfim, o solapamento de valores clássicos da democracia.

A crise da democracia

Em seu clássico Sociologia Política, Roger-Gérard Schwartzenberg descreve com primor alguns desses fenômenos, mostrando a ascensão de outros vetores da política - como a emergência dos técnicos/burocratas, firmada sobre a aliança entre políticos e círculos de negócios. Norberto Bobbio, por sua vez, em O Futuro da Democracia, mostrou as promessas não cumpridas pelos sistemas democráticos: a educação para a cidadania, o combate ao poder invisível, a transparência dos governos, a permanência das oligarquias. Já Adam Przeworski, autor do livro Crises da Democracia, ao analisar a recente invasão do Capitólio, a sede do Poder Legislativo, é peremptório: "agora os EUA não podem mais se vender como bastião da democracia". Afinal, o que está acontecendo lá fora e por aqui?

O fanatismo

O fracasso dos governos contemporâneos tem expandido a ira social. Ira que se transforma em busca de "novos profetas e salvadores da Pátria", manifestações populares e mesmo a devastação de espaços públicos. Claro, com a eleição de figuras que mais se identificam com o estilo outsider, como Trump e Bolsonaro, mesmo sendo este um político que passou quase três décadas no Parlamento. Esse fanatismo se encontra com outros eixos, como o religioso, particularmente os credos engajados na extrema direita e comprometidos com defesa da família e de valores tradicionais.

O nacional-populismo

Onde esses grupos encontram um escoadouro para jogar as suas mágoas e encontrar motivação para seu engajamento na vida político-institucional? Na corrente nacional-populista, que defende um escopo pátrio, de fundo populista, com políticas que venham ao encontro de seus anseios, como defesa do emprego para os nativos, não para imigrantes, que deverão ser proibidos de entrar no país.

"Cinturão da ferrugem"

É o caso dos Estados Unidos, onde Trump, na campanha de 2016, foi intensamente votado no "cinturão da ferrugem", região localizada no Nordeste dos Estados Unidos, composta pelos Estados de Michigan, Minnesota, Ohio, Iowa, Pensilvânia e Wisconsin, que tiveram uma indústria bem desenvolvida até o século 20, mas depois sofreram com o declínio da economia, desemprego, redução da população e decadência urbana. O nome faz referência às fábricas hoje abandonadas na região. Aí Trump, em 2016, foi consagrado sob o lema o lema "Keep America First" ("Os Estados Unidos em primeiro lugar").

O empobrecimento das classes médias

As classes médias têm perdido seu poder de fogo. Na esteira da crise que se expande para além da pandemia, deteriorando as economias, a sociedade busca novas fontes de poder. As classes médias, que sempre exerceram seu papel de pedra jogada no meio do lago para formar ondas que correm até as margens, dividem-se em grupos com afinidades profissionais, dando origem às bancadas especializadas de representação política, como médicos, advogados, ruralistas, mulheres, transgêneros etc. Ou seja, as vozes que tocam na tuba de ressonância social agora fazem parte de orquestras mais fechadas. As massas acorrem às ruas quando convocadas por suas categorias profissionais. O empobrecimento das classes médias integra o painel do empobrecimento global. Os tais três trilhões de dólares que corriam, como nuvens, para descer nos mercados mais promissores, estão se evaporando.

Outra tuba

Quem está enriquecendo, e muito, são os empreendedores nas áreas do conhecimento tecnológico e inteligência artificial, os promotores de negócios nas áreas de serviços, os apostadores nas invenções que poderão mudar o curso da Humanidade, como carros elétricos, aeronaves para prospectar condições sobre o futuro da civilização noutros planetas e aqueles que se aproveitam para atender novas demandas dos consumidores. Esse bloco tem como suporte a nova tuba de ressonância social, as redes tecnológicas da Internet.

Explosão

As massas carentes juntam-se aos grupos insatisfeitos e, em caso de agravamento de sua situação - hipótese que leva em conta o destroço das economias - podem formar um gigantesco barril de pólvora. Sinais de erupção já se vêem aqui e ali. Se o "mundo de cima" não der respostas satisfatórias ao "planeta de baixo", não podemos esperar que cresça o Produto Nacional da Felicidade nas Nações. Canaliza-se a insatisfação para os tanques dos movimentos populistas, que poderão eleger figuras estrambóticas e escandalosas. E pior é quando tais figuras ameaçam mobilizar seus simpatizantes com propostas antidemocráticas. Atentem: a invasão do Capitólio ocorreu no seio da maior democracia ocidental, como é conhecida a Pátria de George Washington.

Haverá perigo?

Adam Przeworski acha que a democracia não está em perigo. Suas palavras: "nos últimos 20 anos, mais ou menos, houve um aumento claro de partidos radicais de direita, mas parece que o apoio para esse tipo de radicalismo de direita fica sempre na faixa de 20% a 25%. O fato é que as instituições representativas tradicionais não funcionam muito bem. Se você é uma pessoa pobre no Brasil, no México, na Espanha, na Grécia, e se pergunta o que essas instituições fizeram por você ao longo da vida, a resposta será 'muito pouco'. Desigualdade em alta é sintoma de algo errado com as instituições. A crise veio para ficar, mas não ameaça a existência da democracia na maior parte dos países".

E por aqui?

Por nossas plagas, os fatos ocorridos na contemporaneidade se relacionam a alguns fatores acima citados. Mas algumas situações merecem destaque. Por exemplo, a gestão governamental Federal no combate à pandemia é um caso sui generis de despreparo, desleixo, incúria, irresponsabilidade. Um país de 210 milhões de habitantes, um território continental de riquezas inigualáveis, uma economia que, apesar dos pesares, ainda é uma das maiores do mundo vive um clima de futrica em torno das vacinas e de seus protagonistas. Quem vacinará primeiro? O governo Federal ou o governo de São Paulo? Triste ver o nosso mandatário-mor usar a vacina como mote de suas piadas e os mais de 200 mil mortos como coisa absolutamente natural. "Vacina transformará a pessoa em jacaré".

Autoritarismo

Quase todos os dias vemos cenas de descontrole e falta de planejamento por parte das autoridades Federais. E, no meio da bagunça, sobram espaços para piadas e chistes, declarações que não dizem nada - "a vacinação vai começar no dia D na hora H". Essa pérola de autoria do ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, deve brilhar no museu da esquisitice. Mas é preocupante a relação de coisas absurdas que se espraiam: uma investigação criminal sobre os jornalistas Ruy Castro e Ricardo Noblat, o primeiro por ter sugerido, em artigo na FSP, que tanto Trump e Bolsonaro poderiam seguir o caminho do suicídio para ganhar fama na história. O segundo, Noblat, por ter publicado o texto em seu blog. O tom de galhofa com que Castro se refere a Bolsonaro é bem diferente da defesa da tortura que o presidente sempre fez e faz questão de fazer nos tempos do regime militar.

Ausência de líderes

Infelizmente, nos horizontes de nossa política, não se enxergam líderes, perfis de respeito, autoridade e sapiência que possam traduzir a chama da esperança. Os nossos representantes vivem na arena da política de interesses, saindo de uma eleição e já se preparando para outra, não dando tempo nem para limpar destroços das administrações em fim de mandato. Uma eleição atrás da outra, com poucas opções de escolha, acaba amortecendo a motivação de eleitores. E quando o bolso apertar mais ainda, com a extinção ou diminuição do auxílio emergencial, é possível prever contingentes desesperados saindo às ruas para cobrar o que lhes prometeram. Da mesma forma, a fome, como a vacina, não tem ideologia.

Na padaria

Conversa entre dois senhores de cabelos grisalhos esperando pelo pão. "Fulano, como eu tenho também a nacionalidade portuguesa, corri a Lisboa para me vacinar. Me vacinei e aqui estou de volta". Números de contaminados sobem diariamente.

Gaudêncio Torquato, cientista político, é Professor Titular na Universidade de São Paulo.

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Sem auxílio emergencial, Brasil deve ter mais de 20 milhões em pobreza extrema

Entre 10% e 15% da população viverão com menos de R$ 155 por mês em janeiro, cinco meses após alcançar mínima histórica de 2,3%, prevê economista. Em meio à pandemia, opção seria pagar valor menor a menos pessoas.

Segunda onda da covid-19 deve tornar cenário ainda mais difícil para famílias pobres

O fim do pagamento do auxílio emergencial enquanto a economia ainda não se recuperou da pandemia e os números de casos e mortes por covid-19 seguem em alta deve elevar a parcela de brasileiros vivendo em pobreza extrema, com renda familiar per capita menor que R$ 155 por mês, a 10% a 15% da população, algo entre 21 milhões e 31 milhões de pessoas.

A cifra é de duas a três vezes maior que o último dado disponível, de novembro, quando o valor do auxílio emergencial já havia sido cortado à metade, e 5% da população, ou 10,7 milhões de pessoas, viviam nessa condição de escassez extrema. Os números foram calculados pelo economista Daniel Duque, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV).

A evolução é mais dramática se comparada à taxa de pobreza extrema de agosto de 2020, a menor da história do país, quando apenas 2,3% da população vivia nessa situação, ou 4,8 milhões de pessoas. Cinco meses depois, o Brasil deve voltar a ter uma taxa de pobreza extrema comparável à do período de 2006 a 2010, segundo os cálculos de Duque.

O auxílio emergencial chegou a 68 milhões de pessoas, cerca de um terço dos brasileiros. O benefício pagou R$ 600 por mês (ou R$ 1,2 mil por mês para mães chefes de família) de abril a setembro, e metade desse valor de outubro a dezembro. Custou cerca de R$ 320 bilhões, ou 4,4% do PIB de 2019, despesa que só se tornou possível graças ao Orçamento de Guerra aprovado para combater a pandemia, que liberou o governo para gastar acima do que o Orçamento e o teto de gastos permitiam.

Duque afirma que o primeiro trimestre será especialmente difícil para as famílias mais pobres não somente pelo fim do auxílio, mas também pelo encerramento de outros programas do governo para estimular a economia, pelo padrão histórico de alta no desemprego nos primeiros meses de todos os anos e pela alta de casos e mortes por covid-19, que já está levando ao aperto das restrições à circulação de pessoas.

Ele diz que o governo tinha alternativas em 2020 para criar um novo programa social permanente, mais abrangente que o Bolsa Família, mas não o fez, e agora o espaço no Orçamento é muito limitado. O economista defende, no entanto, uma prorrogação do auxílio com um valor abaixo de R$ 300 e para um número menor de pessoas. "Mas isso é enxugar gelo, a melhor solução não foi tomada, e agora a gente só pode conseguir algo mais permanente no ano que vem", considera.

Duque alerta também para uma maior dificuldade de medir a pobreza ao longo deste ano. Em maio de 2020, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) começou a realizar mensalmente uma edição especial da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, a Pnad Covid, para avaliar os impactos da pandemia na população. Essa série foi encerrada em novembro, e a divulgação dos dados voltou a ser anual.

"A Pnad Covid permitiu que analisássemos mês a mês como estavam caminhando a pobreza e a pobreza extrema. É uma pena, pois estamos em plena segunda onda e seria relevante esse dado", diz.

DW Brasil: Como será o primeiro trimestre do ano para as famílias mais pobres, sem auxílio emergencial?

Daniel Duque: O mercado de trabalho vai combinar três fatores muito difíceis. O primeiro é a segunda onda da pandemia, que já está levando ao aumento de restrições, fazendo com que a economia sofra um novo baque. Adicionalmente, temos uma questão sazonal, o desemprego sempre aumenta no primeiro trimestre em relação ao último trimestre do ano anterior, normalmente já tem essa piora da renda de parte da população. E o terceiro é o fim não só do auxílio emergencial, mas de outros estímulos do governo, como o Programa de Manutenção de Emprego e Renda. Temos uma conjunção que vai atuar para uma piora da vida dos rendimentos da população e que vai afetar principalmente os mais pobres.

E há uma agravante, os instrumentos que o governo já está pensando em usar para diminuir um pouco o efeito negativo na economia são ligados à economia formal, como adiantamento do 13º salário e do abono salarial. Isso não vai beneficiar diretamente a população mais pobre, que em grande parte vive na informalidade.

É possível medir o impacto da redução do valor do auxílio emergencial em setembro, de R$ 600 para R$ 300, na pobreza e na desigualdade?

Sim. A pobreza extrema [famílias com renda mensal per capita menor que R$ 155] chegava a 2,3% da população em agosto, ou 4,8 milhões de pessoas. Em novembro, pulou para 5%, ou 10,7 milhões de pessoas, mais do que dobrou.

Em relação a todos os que estão abaixo da linha da pobreza [famílias com renda mensal per capita menor que R$ 455] a gente saltou de 18,4% em agosto, ou 38,9 milhões de pessoas, a mínima histórica, para 23,9%, ou 50,1 milhões.

O principal aumento aconteceu na região Nordeste. Lá, a pobreza extrema estava em agosto em 3% da população da região [1,7 milhão de pessoas], uma proporção muito baixa, e em novembro chegou a 9,9% [5,6 milhões de pessoas].

E agora que o auxílio acabou de vez, qual será o impacto na pobreza e na pobreza extrema?

A população em pobreza extrema no mês de janeiro deve ficar entre 10% e 15% [21 milhões a 31,6 milhões de pessoas], e em relação a todos abaixo da linha de pobreza, de 25% e 30% [52,7 milhões a 63,3 milhões de pessoas].

Quando sairão os dados oficiais sobre pobreza de janeiro?

Infelizmente, só no ano que vem, porque a Pnad Covid, que era mensal, acabou. Agora só vamos ter a Pnad Contínua Anual, que é divulgada um ano depois do ano corrente. A Pnad Covid permitiu que analisássemos mês a mês como estavam caminhando a pobreza e a pobreza extrema. É uma pena, pois estamos em plena segunda onda [da epidemia de covid-19]e seria relevante esse dado. O que temos agora é a Pnad Contínua, que só tem a renda do trabalho, não inclui a renda de outros rendimentos ou fontes.

E quanto à desigualdade, qual foi o impacto da redução do valor do auxílio pela metade?

A desigualdade [medida pelo índice de Gini] chegou a um mínimo em agosto, estava em 47,4, a menor já registrada no país. Em novembro, foi para 49,7, maior do que a do início de maio, quando estava em 49,2 [quanto maior o número, mais desigual é a renda].

Tem projeção de como a desigualdade vai evoluir em janeiro?

Não, desigualdade não dá muito como fazer. Uma coisa é projetar quantas pessoas estarão abaixo ou acima de uma certa linha. Outra é projetar como vai se comportar a distribuição de todos os rendimentos, é mais complicado.

Há estimativas do impacto do fim do auxílio na taxa de desemprego?

Não exatamente. Mas temos uma projeção de que em 2021 a média do desemprego será de 15,3%, aumento de quase dois pontos em relação à média de 2020, nossa projeção da média para o ano passado é de 13,4%. Isso devido à alta na população que estava fora da força de trabalho, para a qual o auxílio emergencial teve um papel importante, e que vai voltar agora.

Quem não estava procurando emprego e vai começar a procurar?

Sim, 12 milhões de pessoas perderam suas ocupações durante a pandemia, e grande parte não procurou um novo trabalho porque teve o auxílio emergencial como forma de recompor o rendimento do trabalho perdido. No entanto, com o fim do auxílio, as pessoas não terão outra opção a não ser procurar uma ocupação novamente, e vão entrar no status de desempregado.

A inflação no ano passado ficou um pouco acima do centro da meta do governo, em 4,52%, mas teve maior impacto entre os mais pobres. O preço dos alimentos, por exemplo, subiu 14% no ano passado, maior alta desde 2002. A inflação contribuiu para o aumento da pobreza

Geralmente, quando calculo a população abaixo da linha da pobreza, assumo uma variação de preços igual para todo mundo. No entanto, fiz um pequeno estudo tentando estimar qual teria sido a diferença da taxa de pobreza, levando em conta a inflação das diferentes faixas de renda. Por enquanto, como o tempo acumulado de alta de preços é pequeno, o efeito é limitado. O percentual da população abaixo da linha da pobreza seria 0,2 ponto maior.

No ano que passou, milhões de famílias pobres tiveram ganho de renda durante a pandemia, comparado ao que ganhavam antes. Como avalia esse fenômeno?

Foi uma consequência de dois fatores. O primeiro é que, como tínhamos que implementar uma política de transferência sem saber exatamente quanto a pessoa ganhava, como acontece para o Bolsa Família, tínhamos que cobrir os rendimentos de uma faixa grande da população, desde quem ganhava muito pouco até os em nível razoavelmente mediano. Se a gente colocasse um valor menor do auxílio, teríamos muita gente com uma perda mais relevante de renda. Entre ter muita gente perdendo e muita gente ganhando, o governo preferiu ter muita gente ganhando. Foram 68 milhões de beneficiados pelo auxílio emergencial, um terço da população, e a desigualdade de renda nesse um terço da população é relevante. O número de pessoas que perdeu renda entre os mais pobres e que receberam o auxílio foi muito pequeno. No entanto, aumentou o custo do auxílio emergencial. Um ponto mais de equilíbrio talvez fosse próximo de R$ 500.

A vacinação ainda não começou no Brasil, e a pandemia se estenderá por vários meses. Você defende alguma proposta já em discussão para a retomada do auxílio?

Acho muito difícil fazer essa discussão neste momento. Eu teria partido de um pressuposto diferente, de uma situação em que o governo já teria encontrado uma solução para uma expansão permanente da política social do Brasil. Seja com realocação de recursos de programas menos efetivos como abono, seja por aprovação de reformas que iriam liberar recursos de despesas obrigatórias, como a reforma administrativa e PEC emergencial. Ou [cortar] gastos com privilégios, como remunerações acima do teto no serviço público. Tudo isso eram opções que o governo tinha para aumentar os recursos da política social de forma permanente.

No entanto, isso não foi feito. Agora, qualquer tipo de ação do governo vai ter um caráter muito limitado, porque a gente está com um espaço no orçamento muito pequeno para fazer realocações. A maior possibilidade seria fazer algo que permita que as pessoas mais pobres tenham uma renovação do auxílio com um valor menor do que R$ 300, e com uma base menor de pessoas. Mas isso é enxugar gelo, a melhor solução não foi tomada, e agora a gente só pode conseguir algo mais permanente no ano que vem.

Um dos argumentos do governo para não prolongar o auxílio já em janeiro era apostar na recuperação da economia e do mercado de trabalho para alavancar a renda dos mais pobres. Em dezembro, foram criadas 414 mil vagas formais de emprego com carteira assinada, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). Essa recuperação do mercado de trabalho não será suficiente para repor a renda dos mais pobres?

O Caged sempre foi um bom termômetro do mercado de trabalho, mas isso deixou de acontecer em 2020. Um dos fatores possíveis, que acredito ter sido mais forte no meio da pandemia, entre maio e julho, seria a subnotificação de demissões. Mas, mesmo depois desse período, os números começaram a surpreender muito positivamente. Estamos tendo geração de empregos digna do boom econômico de 2010, o que não faz muito sentido, tendo em vista que a atividade econômica, por mais que esteja se recuperando, não está a um crescimento de 8% anualizado. Estou com um pé atrás com o Caged. Tem um estudo recente do Bruno Ottoni que mostra que há mudanças não desprezíveis no Caged de 2020 em relação ao antigo. Mudou a forma de captação, de modo que já não conversa muito com a série antiga. Teremos que esperar um pouco para poder confiar e dizer o que significam os números do Caged a partir de 2020.

Mas o fato é que a economia estava se recuperando, e o mercado de trabalho junto, talvez não no passo do Caged, mas havia uma recuperação também registrada na Pnad Contínua e na Pnad Covid. O problema é se isso vai continuar com a segunda onda. A gente não sabe ainda se essa segunda onda não vai ter também um impacto negativo significativo no mercado de trabalho.

Deutsche Welle, em 14.01.2021

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Brasil é motivo de escárnio do mundo com sua política desastrosa sobre a vacina, informa Juan Arias

Enquanto em vários países as pessoas já estão sendo vacinadas, no Brasil não se sabe nem se haverá uma campanha para incentivar a imunização ou se prosseguirá a política subterrânea de boicote



O presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia no Palácio do Planalto em 12 de janeiro.ADRIANO MACHADO / REUTERS

O Brasil está aparecendo aos olhos do mundo como um pária, incapaz de oferecer uma solução de esperança às pessoas amedrontadas com a pandemia. E isso apesar de ser um dos três países com mais vítimas fatais e com o maior número de infectados.

É um país que o próprio presidente confessa que está quebrado economicamente e, em suas reuniões de Governo, em vez de buscar soluções rápidas para combater a pandemia, única forma de fazer frente à dura situação econômica e aos milhões de desempregados que crescem a cada dia produzindo um rio de pobreza, parece se divertir com o desconcerto que criou com o negativismo sobre a vacina.

No mundo inteiro, dos reis aos chefes de Estado de todas as cores políticas, dos Estados Unidos ao Vaticano, os líderes das nações estão demonstrando seu empenho em combater a epidemia, e estão se vacinando em público diante das câmeras de televisão. 

No Brasil, chegou-se à situação de escárnio em que o Governo decretou sigilo de cem anos sobre o cartão de vacinação de Jair Bolsonaro. Embora ele já tenha anunciado que não se vacinará, algo inédito no mundo, tenta-se impor o silêncio sobre se, afinal, o presidente se vacinará ou não. Quem são, então, os covardes?

Enquanto em vários países de todos os continentes as pessoas já estão sendo vacinadas, no Brasil ainda não sabemos quando começará a imunização. Reinam o caos e o silêncio sobre o assunto no país. E o pouco que se sabe é que as autoridades ainda não decidiram quase nada. Como se já não fosse pouco, o que começam a oferecer é uma ofensa. Trata-se da vacina que até hoje oferece o menor índice de imunidade, 50,38%, enquanto as de outros países chega a 75%. Ainda não sabemos se para economizar dinheiro as autoridades decidiram oferecer só uma dose em vez de duas, como nos outros países. Não sabemos se a maioria da população será vacinada, ou se apenas alguns poucos serão. Não sabemos se haverá uma campanha para incentivar as pessoas a se vacinar ou se prosseguirá a política subterrânea de boicotá-la para que se vacine o menor número possível de pessoas.

Tudo isso foi alimentado depois que o presidente Bolsonaro teve o descaramento de zombar do crescente número de vítimas e respondeu a um jornalista: “E daí? Não faço milagres”. Ou quando tachou de covardes e maricas os que temiam o vírus. Ou quando disse que atletas como ele eram imunes à epidemia. Ou que importava pouco ou nada que morressem idosos e enfermos, já que “todos nós vamos morrer”. Ele só estava interessado em que não morressem os mais fortes para assegurar a força de trabalho.

Tudo o que envolveu a política sobre a pandemia desde o início, com a atitude suicida do presidente, foi único no mundo, onde todos os chefes de Estado se preocupam em como melhor salvar vidas, sobretudo as dos mais frágeis. Na verdade, a política do Brasil desde o início da pandemia de covid-19 foi minimizar, negar, boicotar até os ministros da Saúde e criar um clima nacional de desinteresse pelas vítimas que iam se amontoando.

Obrigou assim os profissionais de saúde a serem heróis que se destacaram diante da covardia do Governo e foram dos que mais morreram no mundo.

Tudo isso por interesses mesquinhos da baixa política de Bolsonaro, que não queria que os governadores adversários iniciassem a vacinação antes que ele tomasse a decisão. Perderam-se assim meses preciosos.

Um dia a história contará a atitude de Bolsonaro e suas hostes de zombar da pandemia como um dos maiores casos de aberração política já conhecidos.

Na já épica reunião do Presidente com seus ministros em abril, entre risos e brincadeiras, o ministro do Meio Ambiente propôs aproveitar a pandemia, com o país preocupado e distraído com seus mortos, para deixar “passar a boiada” na Amazônia. Existe zombaria maior da dor do país?

Tudo isso me fez lembrar da cena que Santiago H. Amigorena narra em seu livro O Gueto Interior, quando os chefões nazistas se reuniam para discutir qual seria o método mais econômico para matar milhões de judeus. Pensaram que o fuzilamento seria muito lento e caro, então decidiram que era melhor o extermínio nos campos de concentração, nas câmaras de gás ou com trabalhos forçados e pesados, quase sem alimentá-los, o que os levava em seguida à morte.

Existe hoje no mundo uma política de socorro às pessoas, pela qual seus líderes se esforçam em busca de programas para salvar vidas, melhorar suas condições econômicas e garantir seus direitos fundamentais.

É triste constatar, mas tudo leva a crer que o presidente brasileiro dorme tranquilo, sem pensar em como salvar vidas e melhorar a terrível desigualdade social do país. Sua única obsessão parece ser trabalhar para que os brasileiros, principalmente os mais necessitados, continuem aparecendo para o mundo como um rebanho sem pastor, enquanto continua brincando com os mortos da pandemia e usando Deus como seu talismã para fazer os mais pobres e necessitados se esquecerem de sua vida dura e sacrificada.

Em vez de seu lema “Deus acima de todos”, poderia trocá-lo por:

“Aqueles que sofrem dor física e moral acima de tudo”.

Penso nos milhões de brasileiros sem cultura e sem recursos econômicos abandonados à própria sorte enquanto seu presidente alardeia ser atleta e imortal e brinca de Deus

Triste Brasil.

Publicado por EL PAÍS, em 18.01.2021.

Brasil tem 1.274 mortes por covid-19 em 24 horas

Óbitos ligados ao coronavírus superam 205 mil no país. Mais de 60 mil novos casos de infecção são registrados, e total vai a 8,25 milhões. EUA batem recorde diário de mortos, com 4.327 vítimas.


Balões e cruzes dipostas em homenagem às vítimas da covid-19 em praia no Rio de Janeiro

Pelo segundo dia consecutivo, o Brasil registrou mais de mil mortes ligadas à covid-19 em apenas 24 horas, ao somar 1.274 óbitos nesta quarta-feira (13/01), segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

O país registrou ainda 60.899 novos casos confirmados da doença. Com isso, o total de infecções oficialmente identificadas subiu para 8.256.536, enquanto os óbitos chegaram a 205.964.

Entre as vítimas desta quarta-feira está o ex-governador de Goiás e prefeito licenciado de Goiânia, Maguito Vilela (MDB), aos 71 anos. Ele estava internado na UTI do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, lutando contra uma infecção pulmonar causada pela covid-19.

Ao todo, 7.273.707 pacientes se recuperaram da doença no país, segundo dados do Ministério da Saúde divulgados na terça-feira. O Conass não divulga número de recuperados.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais de casos e mortes devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes está em 98,0 no Brasil, a 21ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Andorra e Liechtenstein.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 22,9 milhões de casos, e da Índia, com 10,4 milhões. Mas é o segundo em número de mortos, já que mais de 383 mil pessoas morreram em território americano.

Os EUA registraram seu recorde de óbitos por covid-19 em apenas um dia, ao reportar 4.327 vítimas na terça-feira, com Arizona e Califórnia entre os estados mais atingidos.

As mortes cresceram acentuadamente nos últimos dois meses e meio no país, que vive sua fase mais mortal da epidemia, mesmo em meio aos esforços de vacinação. Mais de 9,3 milhões de americanos já tomaram a primeira dose do imunizante.

Em todo o mundo, mais de 92 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus, e 1,97 milhão de pacientes morreram em decorrência da doença. Na terça-feira, o planeta também registrou recorde de mortos em apenas um dia, com 17.186 vítimas em 24 horas, segundo dados da Universidade Johns Hopkins.

Deutsche Welle, em 13.01.2021

Câmara dos EUA aprova novo impeachment de Trump

Presidente foi acusado de "incitar insurreição" ao instigar turba a invadir e vandalizar o Congresso. É a primeira vez na história americana que um presidente enfrenta dois processos de impeachment.


A Câmara dos Representantes dos Estados Unidos aprovou nesta quarta-feira (13/01) a abertura de um novo processo de impeachment contra o presidente Donald Trump. Desta vez, o republicano é acusado de "incitação a insurreição".

Foram 232 votos a favor e 197 contra – eram necessários 217 votos para aprovar o impeachment. Todos os 222 democratas da Câmara votaram a favor. A maioria dos republicanos votou contra, mas ocorreram dez dissidências entre os 211 deputados do partido, incluindo a conservadora Liz Cheney, filha do ex-vice-presidente Dick Cheney. O placar contrastou com o impeachment anterior de Trump, quando todos os deputados republicanos cerraram fileiras com o presidente.

Nos debates que precederam a votação nesta quarta-feira, representantes democratas afirmaram que Trump cometeu "traição" e que as ações do presidente foram uma "tentativa de golpe" e uma "ação terrorista".

A presidente da Câmara, a democrata Nancy Pelosi, chamou Trump de um "perigo claro e presente" ao país. Mais tarde, em pronunciamento durante a cerimônia em que assinou o artigo de impeachment aprovado, ela afirmou: "Hoje, de forma bipartidária, a Câmara demonstrou que ninguém está acima da lei, nem mesmo o presidente dos Estados Unidos."

Trump, que teve suas contas suspensas nas redes sociais e perdeu sua principal plataforma de comunicação, divulgou, após a votação na Câmara, um vídeo previamente gravado, mas sem mencionar o impeachment.

No discurso, o presidente se concentrou na invasão ao Capitólio, em Washington, perpetrada por seus apoiadores na quarta-feira passada, que justamente impulsionou a abertura do processo de destituição. "Quero ser muito claro, condeno inequivocamente a violência que vimos na semana passada. Violência e vandalismo não têm absolutamente nenhum lugar em nosso país e nenhum lugar em nosso movimento", disse.

Trump afirmou que os envolvidos no ataque à sede do Congresso americano serão levados à Justiça. Ele também pediu união do povo americano e que sejam evitados mais atos de violência, a fim de que uma transição de poder pacífica seja garantida em 20 de janeiro.

"Conclamo todos os americanos a superarem as emoções do momento e a se unirem como um só povo americano. Vamos escolher seguir em frente unidos pelo bem de nossas famílias", completou o presidente, num discurso bem diferente dos que vinha proferindo até então.


Ataque insuflado por Trump

Na semana passada, o presidente instigou num discurso uma turba de apoiadores a marcharem em direção ao Capitólio para pressionar legisladores. A ação ocorreu ao mesmo tempo em que a Câmara e o Senado se reuniam para oficializar a vitória do democrata Joe Biden nas eleições presidenciais de novembro – e consequentemente a derrota de Trump no mesmo pleito.

Os procedimentos foram interrompidos quando centenas de manifestantes, entre eles neonazistas e supremacistas brancos, invadiram o prédio. Eles vandalizaram gabinetes e agrediram policiais. Cinco pessoas morreram, incluindo um agente de segurança, que foi agredido com um extintor de incêndio.

O episódio foi a conclusão de dois meses de tentativas de Trump de minar a confiança no sistema eleitoral e reverter sua derrota nas eleições presidenciais de 2020, alegando ter sido vítima de fraude, mesmo sem apresentar provas.

Segundo o pedido de impeachment, Trump "deliberadamente fez declarações que encorajaram ações ilegais" e "continuará sendo uma ameaça à segurança nacional, à democracia e à Constituição se for autorizado a permanecer no cargo".

O documento ainda cita outras ações de Trump, como a pressão exercida sobre uma autoridade eleitoral da Geórgia, a quem Trump pediu para que "encontrasse votos" para mudar o resultado da eleição no estado.

Após o ataque ao Congresso, Trump não demonstrou arrependimento, e na terça-feira, na véspera da votação do impeachment, disse que seu discurso para apoiadores foi "totalmente apropriado".

Turba formada por apoiadores de Trump invadiu Congresso na semana passada

Processo segue para o Senado

Apesar de o processo ter sido aprovado, Trump não será afastado do cargo, como ocorre pelas regras brasileiras de impeachment. Nos EUA, o presidente só é afastado após o aval do Senado, responsável pelo julgamento do caso.

No entanto, o processo não deve ser concluído até o fim do mandato de Trump, que deixa o cargo em 20 de janeiro. A ação contra o republicano está sendo encarada como uma forma de excluir Trump da política.

Se condenado, ele pode ser impedido, numa votação separada no Senado, de se candidatar novamente a cargos políticos. Ele ainda pode perder privilégios reservados a ex-mandatários, como segurança, plano de saúde e aposentadoria.

Com a votação desta quarta-feira, Trump se tornou o primeiro presidente da história dos EUA a enfrentar dois processos de impeachment. Em dezembro de 2019, a Câmara, que conta com maioria democrata, já havia votado pelo afastamento de Trump no caso conhecido como a "pressão na Ucrânia", que envolveu manobras do presidente para intimidar o governo ucraniano a iniciar uma investigação contra o então ex-vice-presidente e agora presidente eleito Joe Biden e seu filho, Hunter, que era membro do conselho de uma empresa ucraniana. O episódio rendeu a Trump duas acusações: abuso de poder e obstrução dos poderes investigativos do Congresso.

No entanto, o processo anterior acabou sendo barrado em fevereiro de 2020 pelo Senado, que conta com maioria republicana. Apenas um senador republicano, Mitt Romney, votou contra o presidente em relação a uma das acusações.

Dúvidas sobre a postura republicana

No novo processo de impeachment aprovado nesta quarta, os democratas ainda continuam em desvantagem no Senado para condenar o presidente. São necessários dois terços dos votos dos senadores para uma condenação. Os democratas contam com 50 dos 100 senadores – e a partir de 20 de janeiro com mais o voto de minerva da vice-presidente eleita Kamala Harris, que vai ocupar paralelamente a presidência do Senado.

Ainda não se sabe como parte dos senadores republicanos vai se comportar nesse novo processo. Especialistas especulam que eles podem se sentir mais inclinados a abandonar Trump sem a pressão de uma Casa Branca republicana. Por outro lado, Trump ainda mantém uma base de apoiadores fiel e capital político, apesar do ataque ao Congresso.

Mesmo com as dúvidas sobre como os senadores republicanos vão se comportar, o cenário é bem diferente do impeachment de Trump em 2020. Há mais sinais de fissuras na bancada do partido, e a imprensa americana aponta que o influente senador Mitch Mcconnell não deve se esforçar para salvar Trump desta vez.

Agentes montam barricada na Câmara para impedir entrada de manifestantes. Democratas chamaram ações de Trump de "terrorismo" e "golpe"

Inicialmente, o novo processo de impeachment contra Trump foi apresentado na segunda-feira pelos democratas como forma de aumentar a pressão sobre o vice-presidente, Mike Pence, para que ele invocasse a 25ª Emenda, um dispositivo constitucional que prevê que um presidente pode ser removido do cargo sob a justificativa de incapacidade. No entanto, Pence se recusou. Dessa forma, os democratas colocaram o pedido de impeachment em votação nesta quarta-feira.

Uma pesquisa de opinião divulgada no domingo apontou que a maioria dos americanos quer que Trump deixe o cargo antes da posse de seu sucessor, em 20 de janeiro. Segundo o levantamento feito pela ABC News e o instituto Ipsos, 56% dos entrevistados disseram que o presidente deveria ser removido do posto antes do fim do mandato.

Um percentual ainda maior, 67%, enxerga Trump como responsável pela violência no Capitólio na quarta-feira passada.

O impeachment nos EUA

Esta foi a quarta vez na história dos EUA que a Câmara dos EUA aprovou o impeachment de um presidente ao longo dos seus 230 anos. Em 1868, Andrew Johnson foi acusado de remover um ministro sem autorização do Senado. Em 1998, foi a vez de Bill Clinton ser acusado de perjúrio e obstrução da Justiça. Os dois, porém, foram absolvidos no Senado. Em 2019, foi a vez de Trump no caso da Ucrânia, com o processo sendo barrado depois pelo Senado.

Um quarto presidente, Richard Nixon, renunciou em 1974 pouco antes de a Câmara votar acusações de obstrução da Justiça e abuso de poder.

Deutsche Welle, em 13.01.2021

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Brasil tem 1.110 mortes por covid-19 em 24 horas

Total de óbitos por coronavírus desde o início da epidemia é de 204 mil. País registra ainda 64 mil novos casos em um dia, e soma de infectados chega a 8,19 milhões.

O Brasil voltou a registrar mais de mil mortes ligadas à covid-19 em apenas um dia, ao somar 1.110 óbitos nesta terça-feira (12/01), segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

O país registrou ainda 64.025 novos casos confirmados da doença nas últimas 24 horas. Com isso, o total de infecções oficialmente identificadas subiu para 8.195.637, enquanto os óbitos chegaram a 204.690.

Ao todo, 7.207.483 pacientes se recuperaram da doença, segundo dados do Ministério da Saúde divulgados na segunda-feira. O Conass não divulga número de recuperados.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes está em 97,4 no Brasil, a 21ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Andorra e Liechtenstein.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 22,7 milhões de casos, e da Índia, com 10,4 milhões. Mas é o segundo em número de mortos, já que mais de 379 mil pessoas morreram nos EUA.

Ao todo, mais de 91,3 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus no mundo, e 1,95 milhão de pacientes morreram em decorrência da doença.

Deutsche Welle, em 12.01.2021 

'No governo Bolsonaro, país vive um aumento das violações de direitos humanos', diz superintendente do Fundo Brasil

A frente da instituição que distribui recursos para organizações da sociedade civil, Ana Valéria Araújo acredita que, em 2021, brasileiros não verão avanços nos direitos humanos. Trabalho será para 'conter retrocessos'


Superintendente do Fundo Brasil, Ana Valéria Araújo Foto: Divulgação

O ano de 2020 ficará marcado na história. A Covid-19 assolou o Brasil e uma de suas inúmeras consequências foi o agravamento das violações de direitos humanos já vividas por muitas comunidades e populações tradicionais do país e o aprofundamento das desigualdades de gênero, raça e classe. O desafio foi ainda maior em função do discurso governista antidireitos, avalia a advogada Ana Valéria Araújo.

Ela está à frente do Fundo Brasil de Direitos Humanos, uma fundação instituída por Abdias do Nascimento, Margarida Genevois, Rosie Marie Muraro e Dom Pedro Casaldáliga em 2006 com o objetivo de encontrar formas alternativas para garantir a sustentabilidade de organizações que atuam na defesa dos direitos humanos Brasil afora. Desde sua criação, a organização já distribuiu R$ 29,5 milhões a mais de 550 projetos pelo país.

Especializada em direitos indígenas e na defesa dos direitos socioambientais, a superintendente do Fundo Brasil ressalta as violações sofridas pelos povos indígenas durante a pandemia — de acordo com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), 161 povos foram afetados pela doença, 44.261 casos foram confirmados e 921 indígenas morreram por causa da Covid-19.

Em entrevista à CELINA, ela afirma que o governo de Jair Bolsonaro atua em duas frentes: fortalece uma narrativa que permite o recrudescimento da violência contra defensores dos direitos humanos e contra populações vulneráveis e também promove o desmonte de estruturas institucionais criadas para assegurar o cumprimento desses direitos e a participação desses atores nos espaços de decisão.

— Embora tenha sido precarizada em 2020, a sociedade civil organizada está atuante e é graças a ela que está sendo possível resistir a um desmonte maior. Nós não estamos num momento de trabalhar para avançar em direitos, mas de resistir para que não haja retrocessos.

CELINA: O ano que passou foi desafiador. As pessoas que já tinham seus direitos humanos violados ficaram ainda mais vulneráveis no Brasil?

Ana Valéria Araújo: Sem dúvida. A pandemia agrava a situação para toda a população brasileira, mas, para os mais vulneráveis, ela criou uma série de dificuldades de sobrevivência, de acesso material à alimentação, à saúde e à higiene. A gente tem um país onde direitos humanos são violados de formas muito diversas. Basta olhar para os povos indígenas, que estão em uma situação absolutamente difícil de disputa territorial, com questões que há tempos tinham sido superadas voltando à tona nos últimos dois anos, fortalecidas pelo discurso do governo de que é preciso desenvolver a Amazônia a qualquer custo. Isso faz com que os indígenas sejam vistos como um obstáculo. As queimadas e o desmatamento aumentaram nas terras indígenas, mas isso é negado pelo governo. Junto com os indígenas, pode colocar os quilombolas e todas as comunidades tradicionais que vivem no campo. O panorama para elas é similar.

Todas essas populações que têm seus direitos recorrentemente violados, no ano de 2020 ficaram ainda mais vulneráveis, seja porque tiveram que brigar por outros direitos e se expuseram ainda mais, seja porque mal conseguiram colocar luz sobre suas lutas porque a pandemia tomou conta da pauta. O pouco recurso que as organizações da sociedade civil tinham para implementar as lutas de defesa de direitos foram deslocados para o que era emergencial, ou seja, saúde e alimentação.

Historicamente, embora o Estado seja o maior responsável por garantir e assegurar os direitos humanos, ele também viola esses direitos. A senhora avalia que isso piorou nos últimos anos?

No governo Bolsonaro, vivemos um quadro de aumento de violações de direitos humanos. Se a gente olhar para o campo, a entidade que tem a obrigação constitucional de defender terra indígena, demarcar terra quilombola e proteger e buscar solucionar os conflitos no campo passou a  incentivar esses conflitos. No discurso, o governo incentiva invasão de terra, invasão por garimpeiro, diz que não tem desmatamento nem queimada e vai incrementando uma violência que já é forte. Além dos órgãos de participação, também teve desmonte no Ibama, no ICMbio e na Funai. Desde que o Bolsonaro assumiu, esse é um governo que age dos dois lados: procura desmontar a estrutura de direitos e incentiva com o discurso que a violência recrudesça.

Isso também se reflete na cidade. Quando você tem um governo que faz piada do racismo, das mulheres e das religiões de matriz africana, com uma narrativa quase oficial incentivando a população a fazer o mesmo, aqueles que já eram racistas, homofóbicos e machistas se sentem absolutamente liberados. A gente vê a coisa recrudescer de uma forma muito violenta.

Qual papel devem exercer a sociedade civil organizada e o setor privado neste contexto, em 2021?

Embora tenha sido precarizada em 2020, a sociedade civil organizada está atuante e é graças a ela que está sendo possível resistir a um desmonte maior. Existe um movimento grande de impedir que se passem leis ainda piores no Congresso, de levar às questões ao Judiciário. Nós não estamos num momento de trabalhar para avançar em direitos, mas de resistir para que não haja retrocessos. Isso está sendo feito de uma maneira heroica, por organizações muito precarizadas por conta da situação econômica e da pandemia, mas conduzidas por lideranças muito fortes, que enfrentam essas ameaças e que estão lá, à frente dessas lutas.

Fortalecer a sociedade organizada é fundamental. E quem é que pode fazer isso? A própria sociedade, enquanto cidadãos, reconhecendo a importância dessas organizações e se colocando ao lado delas. A imprensa e o setor privado têm um papel fundamental nisso. Até porque a luta da sociedade organizada precisa não só de apoio político, mas de recursos. O Fundo Brasil de Direitos Humanos faz isso, mobiliza esses recursos para destinar para organizações que atuam na ponta.

O que podemos esperar para 2021?

A pandemia continua sendo um desafio. O Fundo Brasil teve um fundo emergencial em 2020 e distribuiu mais de R$ 2,5 milhões para ações em todas as partes do país. Agora temos quatro editais — um específico para enfrentamento ao racismo, outro de justiça criminal, um terceiro para a população LGBTQIA+ e outro mais geral, que vai contemplar trabalhadores informais. Vamos apoiar cerca de 75 projetos nos próximos 18 meses, com cerca de R$ 3,5 milhões. Esses recursos são flexíveis para que as organizações os coloquem nas suas maiores necessidades e 30% podem ser alocados para necessidades impostas pela Covid.

Em 2021, seria fundamental que a gente pensasse a sociedade civil organizada dessa maneira. Ainda vai ser necessário algum aporte para a resposta à pandemia, mas é preciso que esses recursos também possam ser utilizados na reestruturação das organizações para que elas possam se reerguer e, com isso, apoiar se não os avanços, as ações necessárias para conter as tentativas de desmonte.

Na última década, a defesa dos direitos humanos passou a ser questionada por uma parcela da sociedade, que a considera 'mi mi mi' ou uma pauta de esquerda. Como reverter isso?

Eu fico me perguntando como chegamos a esse ponto. Há uma desinformação muito grande sobre os direitos humanos e também uma necessidade enorme de comunicar para a população que eles são os direitos de todos e todas. A partir do momento em que a sociedade compreender isso, vai ter mais empatia. A gente peca pela falta de compreensão, que, historicamente, se deu porque a sociedade civil organizada é pequena e faz três milhões de coisas ao mesmo tempo.

As organizações que defendem os direitos humanos estão defendendo sobretudo o avanço civilizatório do nosso país e o fortalecimento da nossa democracia. A gente vinha num processo crescente de educação e comunicação nesse sentido. Mas, de um tempo para cá, isso começa a retroceder em função desse novo governo, que tem um discurso radicalmente antidireitos. Há uma disputa de narrativa muito forte que nós traz para onde estamos agora. Estávamos avançando e fazendo o que era preciso em termos de comunicação e discurso, mas fomos, digamos assim, atropelados por essa contra narrativa.

Leda Antunes / O GLOBO, Caderno Celina, em 11.01.2021.

Merval Pereira sobre a bolsonarização dos quartéis: ainda dá tempo

O presidente Jair Bolsonaro tem um projeto de poder muito perigoso. Ele, que cultiva desde o início de sua carreira os grupos militares, e sempre foi representante corporativo deles, como tenho debatido aqui nos últimos dias, tem marcado presença em várias formaturas, não apenas das três Armas - Exército, Marinha e da Aeronáutica -, mas também das polícias Militar, Federal, e Rodoviária Federal.

Dois projetos de lei que estão na Câmara, de autoria de deputados bolsonaristas, revelados pelo jornal Estado de S. Paulo, restringem o poder dos governadores sobre braços armados do estado, com mudanças na estrutura das polícias Civil e Militar, certamente saíram dessa tentativa de Bolsonaro de cooptar as Forças Armadas e as forças policiais auxiliares, que fazem parte do sistema de defesa nacional, mas não têm nenhum tipo de autonomia funcional, que sempre quiseram. Ainda dá tempo de pará-lo. 

Transformar a PM numa polícia independente, que não seja uma força auxiliar, acaba criando uma quarta força armada, o que é temerário. Já há uma preocupação muito grande com essa bolsonarização dos quartéis e da Polícia Militar, com mais de quatro mil militares em diversos escalões no governo, da ativa e da reserva, inclusive no ministério, numa tentativa de influenciar ideologicamente as forças auxiliares e as baixas patentes das Forças Armadas.

O primeiro levante de uma PM na Nova República aconteceu em 1997 em Minas, e o ex-deputado Marcus Pestana, que era secretário do governo, lembra que o Estado Maior perdeu totalmente o controle da tropa. “Como se falava na época, os coronéis começaram a obedecer ao cabo (Cabo Júlio foi o líder simbólico na época)”. Conquistaram espaços parlamentares corporativos, e nunca mais os princípios da hierarquia e disciplina foram os mesmos.

Os projetos de seus aliados criam ainda uma nova estrutura na organização das Polícias Militares, com cargos de oficiais superiores. Teríamos, pois não creio que os projetos sejam aprovados, generais de quatro, três e duas estrelas nas Polícias Militares. Vários governadores estaduais, que perderiam na prática o comando das polícias militares e civis, estão se movimentando, e o de São Paulo, João Doria reagiu: “Não há nenhuma razão que justifique, exceto a militarização desejada pelo presidente Jair Bolsonaro para intimidar governadores através de força policial militar”.

Os projetos preveem mudanças na estrutura das polícias, estabelecendo mandatos de dois anos para os comandantes-gerais da PM, dos Bombeiros e delegados-gerais de Polícia Civil, escolhidos por uma lista tríplice. O ministro da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça, confirmou que seu ministério está acompanhando a tramitação dos projetos, e tem se reunido com representantes das categorias envolvidas e deputados federais.

As propostas de bolsonaristas são a concretização de um projeto de poder militar que sustente os avanços de Bolsonaro sobre as limitações que as instituições democráticas lhe impõem. O presidente da República usa seus poderes para, de um lado, dar protagonismo aos militares em seu governo, ao mesmo tempo que cuida de seus proventos e dos projetos que mais lhes são caros, como o submarino nuclear.

Os projetos de defesa nacional são importantes, mas não poderiam ser prioridades neste momento de pandemia e crise social aguda. Ao mesmo tempo que se queixa de que o país “está quebrado” e que não pode fazer nada, Bolsonaro permite o contigenciamento de verbas sociais e para o combate da COVID-19, e proíbe o bloqueio das verbas militares.

Censura descabida

 A anunciada decisão do ministério da Justiça de processar Rui Castro, e por tabela Ricardo Noblat, que transcreveu parte da crônica do primeiro, por um suposto incentivo ao suicído dos presidentes Trump e Bolsonaro, seria cômico se não fosse trágico.

  Muito antes deles, Jair Bolsonaro, em campanha, convocou seus apoiadores no Acre a “fuzilar esses petralhas”, segurando um tripé simulando uma metralhadora. Ainda como deputado, Bolsonaro sugeriu que os militares na ditadura deveriam ter assassinado 30 mil brasileiros, a começar pelo ex-presidente Fernando Henrique.

 Mas, na época, havia governos democráticos no país. 

Merval Pereira, Jornalista e Escritor, membro da Academia Brasileira de Letras, é analista de política n'O GLOBO e na GloboNews. Este artigo foi publicado originalmente em 12.01.2021.