Ex-secretário nacional de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares afirma que o Rio já é exemplo de como governadores são reféns das forças policiais e critica projeto para dar mais ‘autonomia’ às corporações
Entrevista com Luiz Eduardo Soares, antropólogo e ex-secretário nacional de Segurança Pública
Uma das maiores autoridades do País em Segurança Pública, o antropólogo Luiz Eduardo Soares critica o projeto que busca dar mais “autonomia” às polícias Civil e Militar, revelado pelo Estadão na segunda-feira, 11. A ideia, diz, tornaria as corporações ainda mais alheias a controles externos. Isso, segundo o ex-secretário nacional de Segurança Pública, já ocorre desde que as polícias criaram para si o que chama de “enclave” pós-ditadura militar - que as teria deixado de fora da cultura democrática construída no País.
“Se as medidas propostas forem aprovadas, o enclave se libertará dos constrangimentos que hoje ainda limitam sua audácia antidemocrática”, afirma o pesquisador.
O antropólogo e professor da Uerj Luiz Eduardo Soares Foto: Acervo Pessoal
Coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania no governo do Rio entre 1999 e 2000, quando foi demitido pelo governador Anthony Garotinho após denunciar a existência de uma “banda podre” na polícia, Soares diz que os mandatários estaduais são reféns das corporações. O status de secretaria dado pelo governador afastado Wilson Witzel (PSC) às polícias Civil e Militar, por exemplo, seria fruto disso.
“O Rio engrenou o retrocesso antes do conjunto do País. O fim da Secretaria de Segurança foi o último gesto de um processo que pode ser definido como a rendição do poder civil à força das corporações policiais, das quais os governadores tornaram-se reféns”, aponta.
Confira abaixo a entrevista ao Estadão
Como o senhor avalia essas medidas que buscam dar mais “autonomia” às polícias, como a criação de um Conselho Nacional de Polícia Civil e lista tríplice para escolher o comandante-geral da PM?
Analisadas em conjunto, as medidas propostas apontam numa mesma direção: a autonomização das polícias, relativamente às autoridades política, civil e republicana. A intenção é blindar as instituições policiais dos controles externos e torná-las ainda mais opacas do que já são. Esse movimento que visa ao insulamento corporativo é extremamente grave porque, se bem sucedido, consolidaria o enclave em que as polícias se encapsularam desde a promulgação da Constituição. Elas formaram um enclave institucional, refratário à Constituição e à cultura democrática. Desde 1988, elas nunca se submeteram aos poderes da República.
Como assim?
As polícias, a despeito de contradições e resistências internas respeitáveis – porém isoladas –, formaram um “gueto” não homogêneo, que cultiva e preserva valores, visões de mundo, crenças e práticas da ditadura. Enquanto a sociedade, apesar das contradições, começava a enfrentar o racismo e as desigualdades, o enclave permanecia impermeável aos avanços sociais, reativando a memória da escravidão e a violência típica do regime militar. O enclave foi viabilizado pela cumplicidade de segmentos importantes do MP e da Justiça, assim como de governadores e políticos. Se as medidas propostas forem aprovadas, o enclave se libertará dos constrangimentos que hoje ainda limitam sua audácia antidemocrática.
O Rio foi na linha desse projeto de lei ao dar status de secretaria para as polícias. O que o senhor tem achado dessa experiência de fim da Secretaria de Segurança?
O Rio engrenou o retrocesso antes do conjunto do País. O fim da Secretaria de Segurança foi o último gesto de um processo que pode ser definido como a rendição do poder civil à força das corporações policiais, das quais os governadores tornaram-se reféns.
Bolsonaro tem os militares como base e costuma frequentar cerimônias de formatura País afora, especialmente no Rio (onde três a cada quatro agendas dele são com militares). O senhor vê uma tentativa de “bolsonarizar” as polícias? Qual é o perigo disso?
A maioria dos policiais era de bolsonaristas avant la lèttre, antes de Bolsonaro. O presidente apenas deu corpo e inscreveu no campo político a cultura do enclave: as crenças e práticas herdadas da ditadura, refratárias ao Estado democrático de direito, insubmissas ao controle externo e à autoridade civil republicana. As milícias são apenas a hipertrofia mais ostensiva de uma patologia institucional patrocinada pela pusilanimidade que se generalizou.
Caio Sartori, O Estado de São Paulo, em 12 de janeiro de 2021