Cada vez mais isolado e sob pedidos de afastamento antes da posse de Biden, presidente promete 'transição ordenada' após dia de caos
Donald Trump faz discurso em Washington, em meio a tentativa de derrubar os votos do Colégio Eleitoral que deram a vitória a Joe Biden Foto: TASOS KATOPODIS / AFP
Cada vez mais isolado e enfrentando pressões para que renuncie ou seja afastado do cargo, o presidente americano, Donald Trump, finalmente reconheceu que irá deixar a Casa Branca no dia 20 de janeiro, prometendo realizar uma transição de poder "ordenada" para o presidente eleito Joe Biden. A admissão veio um dia depois de ele incitar seus apoiadores a invadirem o Congresso para tentar barrar a certificação da vitória de Biden, manobra que lhe rendeu um desgaste político sem precedentes.
Há temores bipartidários sobre a capacidade que Trump terá de manter a ordem nos 13 dias de mandato que lhe restam. O líder democrata no Senado, Chuck Schumer, demandou o afastamento do presidente, assim como a presidente da Câmara, a democrata Nancy Pelosi, que o acusou de "ato sedicioso". O governador republicano de Maryland, Larry Hogan, pediu que Trump renuncie e que o vice, Mike Pence, assuma. Funcionários do governo pedem demissão, buscando se afastar da toxicidade do Salão Oval.
— São apenas 13 dias, mas cada um deles pode ser um show de horrores para os Estados Unidos — disse Pelosi.
Apesar de reconhecer que Biden tomará posse, o comunicado dicotômico do presidente dos EUA voltou a repetir as alegações falsas de fraude que, há meses, põem em xeque a lisura do sistema eleitoral, as normas democráticas e insuflam seus eleitores:
“Por mais que eu discorde totalmente do resultado da eleição, e os fatos me corroborem, haverá uma transição de poder ordenada no dia 20 de janeiro”, diz a nota. “Eu sempre disse que continuaríamos a lutar para garantir que apenas votos legais fossem contados. Por mais que isso represente o fim do melhor primeiro mandato da História presidencial, é apenas o início da nossa luta para Fazer a América Grande Novamente."
O presidente teria passado a noite de quarta esbravejando sobre o que considera serem traições, de acordo com o jornal Washington Post. Rompendo com a Casa Branca, diversos aliados republicanos, entre eles o vice Mike Pence, confirmaram a vitória de Biden na quarta e condenaram veementemente a invasão do Capitólio, que deixou ao menos quatro mortos, incluindo uma mulher baleada.
Trump, por sua vez, chegou a dizer que amava os invasores, para quem havia discursado horas antes, e que eles eram "muito especiais". Os comentários simpáticos a seus defensores lhe renderam um bloqueio temporário no Twitter e um banimento no Facebook e no Instagram até ao menos o fim do mandato.
25a emenda
Os temores em ambos os lados do espectro político são que o presidente não tenha mais condições de governar. Em uma nota nesta quinta, Schumer tornou-se o parlamentar mais sênior a demandar publicamente a remoção de Trump:
"O que aconteceu ontem no Capitólio foi uma insurreição contra os Estados Unidos, incitada pelo presidente. Esse presidente não pode permanecer no poder por nem mais um dia", ele afirmou. "A maneira mais rápida e efetiva — isso pode ser feito hoje — de remover o presidente seria se o vice-presidente invocasse imediatamente a 25a emenda. Se o vice-presidente e o Gabinete se recusarem a fazê-lo, o Congresso deve ser reunir para um impeachment."
(A foto acima registra momento histórico nas conturbadas relações de Donald Trump, enquanto Presidente da República, com as instituições democráticas nos Estados Unidos. Obrigado pela Constituição a apresentar aos Congresso Nacional - Câmara e Senado, em sessão conjunta, seu relato sobre o Estado da União, Trump ao final da leitura amarrou a cara recusando-se à gentileza protocolar de entregar o texto, que acabara de ler, à Presidente da Câmara, Nancy Pelosi, preferindo atirá-lo sobre a mesa. A Presidente da Câmara, de pronto, recolheu as folhas do discurso, rasgou-as e as atirou na direção do Presidente da República. O senhor atrás que aplaude de pé é Mike Pence, o Vice Presidente de Trump que, nessa condição, preside o Senado.)
Nancy Pelosi, a presidente da Câmara, disse que espera uma "decisão rápida" de Pence sobre a 25ª emenda.
Invasão ao Capitólio gera repúdio internacional geralmente reservado a democracias frágeis
Ratificada em 1967, a 25a emenda da Constituição americana cria um mecanismo legal para a continuidade do poder quando um presidente morrer ou estiver incapacitado de governar. Seu artigo 4º, nunca utilizado até hoje, determina que se o vice-presidente e a maioria do Gabinete constatarem que o chefe de Estado está "inapto para ocupar os poderes e realizar as funções" de seu cargo, ele será afastado imediatamente do cargo.
O presidente poderia a qualquer momento afirmar que está pronto para reassumir o cargo, o que desencadearia um voto no Congresso em caso de objeções: para que o presidente continue afastado, dois terços dos parlamentares em cada uma das Casas deveriam considerá-lo incapaz.
Segundo a mídia americana, o assunto é discutido preliminarmente entre integrantes do Gabinete que temem o comportamento errático do presidente. As conversas, no entanto, são informais e não está claro se irão para frente ou se Pence pretende endossá-las.
Dificuldades
A outra opção levantada por Schumer, um processo de impeachment, seria mais difícil, seja pelo curto tempo hábil ou por suas regras, que demandam um quórum de dois terços nas duas Casas. A Câmara é atualmente controlada por democratas, mas o Senado será controlado pelos republicanos até que o segundo turno na Geórgia seja certificado e os dois senadores recém-eleitos, empossados.
Até o momento, apenas um parlamentar republicano, o deputado Adam Kizinger, um crítico do presidente de Illinois, se pronunciou a favor da remoção, juntando-se a mais de 100 democratas. O Washington Post, em seu editorial, fez um apelo similar, afirmando que "a cada segundo que ele mantém os vastos poderes da Presidência, é uma ameaça para a ordem pública e para a segurança nacional".
Ainda assim, é crescente o número de republicanos proeminentes que condenam a postura do presidente, isolando-o cada vez mais. O ex-secretário de Justiça, William Barr, que pediu demissão no mês passado em meio a tensões diante das ofensivas de Trump para reverter o voto popular, disse nesta quinta à Associated Press que a conduta do presidente é uma "traição ao cargo e a seus apoiadores" e que "orquestrar uma insurreição para pressionar o Congresso é indesculpável".
Em tom similar, o atual secretário de Segurança Nacional adjunto, Chad Wolf, fez um apelo público para que o presidente "condene fortemente" a violência vista na véspera. O pedido fez com que a Casa Branca revogasse o processo para efetivá-lo no cargo.
Onda de demissões
A secretária dos Transportes, Elaine Chao, renunciou, na primeira baixa no governo em nível ministerial. Chao, mulher do líder republicano no Senado, Mitch McConnell, disse que havia ficado "profundamente chocada" com a invasão do Capitólio."
Em paralelo, outros integrantes do governo abandonam o navio, sendo o mais notório deles Mick Mulvaney, ex-chefe de Gabinete de Trump que atualmente ocupava o posto de enviado especial para a Irlanda do Norte. Segundo ele, o presidente não é a mesma pessoa que "era há oito meses".
— Eu não podia continuar — disse o homem à CNBC. — Aqueles que escolhem permanecer, e eu conversei com alguns deles, o fazem porque temem que o presidente ponha alguém pior em seu lugar.
No fim da noite, o Wall Street Journal anunciou que a secretária de Educação, Betsy DeVos, também entregou seu pedido de demissão.
"Não há como negar o impacto que sua retórica teve na situação, e que isso foi um ponto de inflexão para mim", diz a mensagem entregue pela secretária.
Quem também pediu demissão foi o vice-conselheiro de segurança Nacional, Matt Pottinger, um dos arquitetos das políticas de Trump para a China , e Ryan Tully, principal conselheiro do presidente sobre a Rússia. A secretária social da Casa Branca, Anna Cristina Niceta, e a chefe de Gabinete da primeira dama e ex-diretora de comunicações, Stephanie Grisham, foram outras que abandonaram o governo.
Ana Rosa Alves / O GLOBO e agências internacionais, em 07/01/2021 - 06:13