terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Brasil fica para trás na estratégia de vacinação contra a covid-19 e acende alerta

Ausência de informações sobre estratégia nacional levanta receio de que o país desperdice sua expertise na imunização contra o coronavírus. Governo admite que vacina não será oferecida a toda a população em 2021


Um voluntário recebe a vacina contra o coronavírus desenvolvida pela AstraZeneca.JOHN CAIRNS / AP

“Este vírus vai continuar entre nós para sempre”

Enquanto laboratórios anunciam resultados preliminares promissores de suas vacinas contra o coronavírus e o mundo já desenha seus planos de vacinação, ainda não se sabe quase nada sobre quais serão as estratégias que o Brasil deverá adotar. O país ―onde a pandemia voltou a ganhar velocidade nas últimas semanas― dispõe de um Programa Nacional de Imunizações (PNI) reconhecido mundialmente, mas tem visto a disputa ideológica contaminar as decisões sobre as ações de combate ao vírus deste o início da crise. Diante da ausência de informações sobre o plano vacinal, pesquisadores e parlamentares receiam que o país desperdice sua expertise e não consiga apresentar uma estratégia consistente à sociedade logo que as vacinas sejam registradas. Na última semana, o Ministério da Saúde admitiu que a vacina contra a covid-19 não deverá ser disponibilizada para toda a população em 2021 e que a lógica de imunização deve ser semelhante à da vacinação contra a gripe, que prevê a aplicação do medicamento em grupos específicos.

Por enquanto, nenhum laboratório solicitou ainda o registro de sua vacina à Anvisa e o órgão diz que precisará de pelo menos 60 dias pra analisar eventuais pedidos. No mundo, ainda não há um medicamento imunológico licenciado, mas os países já começam a informar parte de suas estratégias. A Espanha, por exemplo, já anunciou que dividiu a população em 15 grupos e definiu quais teriam prioridade para receber a vacina: idosos em casas de repouso, cuidadores e pessoas com deficiência. No Brasil, um comitê técnico (do qual participam representantes do Governo, secretarias estaduais e municipais da Saúde, entidades de classe e organismos internacionais) foi criado em setembro para pensar nas estratégias. Uma reunião está prevista para a esta terça-feira para discutir uma primeira versão de um plano de vacinação para a covid-19. O país optou por esperar os registros dos imunizantes para avaliar quais serão incorporados no SUS e, a partir daí, desenvolver seu plano nacional.

O Brasil já tem um acordo para a transferência de tecnologia da vacina da AstraZeneca e participa de um consórcio global para ter prioridade na aquisição de outras nove vacinas, o Covax Facility. Também tem dialogado com laboratórios, ainda que não haja novos contratos de aquisição avançados neste momento. Alguns Estados já fizeram acordos para adquirir vacinas promissoras, como por exemplo São Paulo com a Coronavac e a Bahia com a Sputinik V. Mas desde que a corrida por uma vacina entrou na retórica ideológica de Bolsonaro, paira uma desconfiança sobre as futuras ações de imunização. O Ministério da Saúde afirma que trabalha com a possibilidade de incorporar diferentes vacinas no plano nacional, mas a possibilidade de rejeição de determinados imunizantes ganhou força desde que o presidente desautorizou seu ministro a firmar um contrato de intenção de compra da Coronavac, adquirida pelo seu adversário político e governador de São Paulo, João Dória.

O ministro Eduardo Pazuello garante que o plano nacional está, sim, sendo construído e chegou a afirmar que parte dele já estaria pronto. “Podem ficar tranquilos. Estamos acima do momento, estamos adiantados. Quando estivermos com dados logísticos das vacinas, a gente fecha o plano”, afirmou na última semana, sem apresentar maiores detalhes. Pazuello disse apenas que a lógica segue a mesma de outras campanhas: estudar os grupos prioritários e as áreas mais afetadas. No dia seguinte, porém, a equipe técnica do Ministério da Saúde afirmou que o que está definido são os objetivos do plano: reduzir a mortalidade e proteger pessoas mais expostas, já que neste momento não há capacidade de produção de vacina para toda a população brasileira.

“Definimos objetivos para a vacinação, porque não temos uma vacina para vacinar toda a população brasileira. Além disso, os estudos não preveem trabalhar com todas as faixas etárias inicialmente, então não teremos mesmo como vacinar toda a população brasileira”, disse a coordenadora do Programa Nacional de Imunizações, Francieli Fantinato. Gestantes e crianças, por exemplo, não entraram nos testes dos imunizantes. Segundo Fantinato, os detalhes logísticos de um plano nacional de vacinação só devem ser definidos após o registro pela Anvisa. Por enquanto, a pasta trabalha em uma fase preparatória para desenvolver sua estratégia.

Mas a demora para algumas definições preocupa especialistas e parlamentares. A cobrança para que o Governo apresente um plano de vacinação para a covid-19 está na Justiça. O Supremo Tribunal Federal recebeu pelo menos quatro ações sobre o tema, motivadas pelo discurso de Bolsonaro contra a obrigatoriedade da vacinação e por sua rejeição à Coronavac. A Corte deverá tomar uma decisão no dia 4 de dezembro, mas nesta semana o ministro Ricardo Lewandowski, que é relator das ações, antecipou o voto favorável à iniciativa. Lewandowski declarou que, na iminência de aprovação de várias vacinas, “constitui dever incontornável da União considerar o emprego de todas elas no enfrentamento do surto da covid-19”.

A microbiologista Natalia Pasternak alerta que um atraso no planejamento da vacinação é prejudicial, mesmo com a expertise do SUS, especialmente no caso do coronavírus. O cenário que se desenha no momento é que os países precisarão adotar diferentes vacinas para atingir a imunização coletiva e, num país continental como o Brasil, exige-se um plano complexo. Os medicamentos imunológicos mais promissoras atualmente envolvem diferentes necessidades de logística e armazenamento (alguns precisam de ultracongeladores), então é importante que o Governo planeje quais deverão ser incorporadas e quais seriam as mais adequadas para cada região, além de desenvolver um sistema de controle da vacinação e das doses de cada usuário.

“O Ministério da Saúde está devendo esse planejamento. Espero que estejam planejando e só não tenham comunicado ainda à população. Pensar que não há um plano é desastroso”, afirma Pasternak. A pesquisadora argumenta que é preciso pensar na aquisição de equipamentos (como câmaras frias para determinados medicamentos), nas possibilidades de distribuição, nas necessidades de ampliação de estruturas de postos de saúde e mesmo um plano de capacitação rápida para profissionais. “Quais vacinas vão pra quais regiões? A Coronavac e a da AstraZeneca são mais fáceis de armazenar. Quem vai ser atendido com qual vacina? E fazer um acompanhamento adequado, porque cada uma delas tem seus regimes de doses. Tudo isso precisa de planejamento e treinamento de pessoal”, explica. Para ela, a falta de transparência do Governo sobre isso deixa a população desamparada e confusa, além de estimular teorias da conspiração contra as vacinas.

A questão também tem preocupado parlamentares da comissão externa da Câmara que acompanha as ações de enfrentamento à pandemia. O ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha (PT), opositor de Bolsonaro e membro do colegiado, teme que o Brasil priorize a vacina da AstraZeneca e opte por um plano de vacinação mais restrito diante da guerra política protagonizada pelo presidente. “Acredito que o desejo do atual Governo é um plano limitado de vacinação, usando apenas a vacina de Oxford (Astrazeneca). Ele torce pra que esta seja a primeira registrada, quando o Brasil deveria ter uma postura mais ousada e participar de vários projetos, mas pra isso tem que ter investimento. E o Governo está querendo retirar recursos da Saúde em 2021″, afirma.

A vacina da AstraZeneca ―a principal aposta do Governo até o momento― deve refazer testes após um problema de falta de transparência sobre os dados preliminares. Novos dados apresentados sobre seu estudo geraram dúvidas sobre sua autêntica eficácia. Isso deve acarretar atrasos no seu registro, mas o Brasil diz que não modifica seu planejamento. O Ministério da Saúde dialoga com outros laboratórios, mas mesmo assim já admitiu que não deverá oferecer a vacina da covid-19 a toda a população em 2021. A estratégia, assim como na imunização contra a gripe, será a de definir grupos prioritários com base em mortalidade, exposição e análise epidemiológica. “O fato de determinados grupos da população não serem imunizados não significa que não estarão seguros, porque outros grupos que convivem com aqueles estarão imunizados e dessa forma não vão ter a possibilidade de se contaminar”, afirma o número 2 da pasta, Élcio Franco.

O risco de desigualdade na vacinação

As vacinas só poderão ser distribuídas nacionalmente pelo SUS se tiverem aval da Anvisa e forem implementadas pelo Governo Federal. São Paulo, por exemplo, pode incluir a Coronavac em seu programa, mas não pode distribuir para outros Estados. Nesse sentido, há um risco de que haja desigualdade na distribuição das vacinas, já que Estados mais pobres podem não ter recursos para adquiri-las. Isso já aconteceu no país, mas nos últimos anos o programa nacional foi ganhando robustez e promovendo campanhas unificadas e amplas de imunização. “O Governo Federal deve garantir calendário mais amplo possível. Até porque o Estado isolado dificilmente vai ter força para garantir a transferência de tecnologia”, argumenta Padilha. Por enquanto, o Governo de São Paulo não diz se trabalha com um plano próprio ou se esperará as diretrizes do Governo Federal. Afirma apenas que trabalha nas estratégias de vacinação e que elas serão divulgadas no momento oportuno.

Enquanto isso, a pandemia volta a ganhar força no Brasil. O ministro Pazuello admitiu nesta semana novos “repiques” de infecções, especialmente nas regiões Sul e Sudeste, mas não apresentou novas ações para conter os contágios. A estratégia continua voltada ao tratamento de pessoas já infectadas. O país segue falhando em uma política de controle e rastreio de casos, mesmo dispondo de um amplo exército de agentes de saúde, presentes em praticamente todos os municípios. O ex-ministro Mandetta chegou a justificar que, no início da crise, essa estrutura não foi utilizada para o rastreio porque havia escassez de equipamentos de proteção individual e testes.

Mas nove meses e duas trocas de ministros depois, o país continua sem uma política efetiva de controle de casos. E quase sete milhões de testes RT-PCR que poderiam ser usados para controlar a pandemia estão vencendo nos estoques do Governo, conforme noticiou o Estadão. O Ministério da Saúde diz a empresa responsável pelos testes já pediu a prorrogação da validade desses insumos à Anvisa e que monitora o caso. Os testes venceriam em dezembro e janeiro. A pasta também diz que não há risco de falta de testes. “Estamos repetindo os mesmos erros. No começo do ano, a gente demorou a reagir. De novo, vemos aumento de casos na Europa e também não nos preparamos para o aumento que chegaria aqui. Nunca tivemos um planejamento realmente organizado, centralizado, e direcionado pelo Ministério da Saúde. Passaram-se nove meses. Não deu tempo até agora de termos um plano de enfrentamento?”, questiona a microbiologista Natalia Pasternak.

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BEATRIZ JUCÁ, EL PAÍS / São Paulo - 01 DEC 2020

Desmatamento anual na Amazônia cresce 9,5% e bate novo recorde

Floresta perdeu área de 11.088 km² entre agosto de 2019 e julho de 2020, segundo dados do Inpe. Mourão minimiza destruição e elogia medidas de combate aplicadas pelo governo Bolsonaro.

Quase 47% do desmate da Amazônia foi registrado no Pará

O desmatamento na Amazônia entre agosto de 2019 e julho de 2020 atingiu o maior patamar em mais de uma década. Foram 11.088 km² de devastação, a maior taxa registrada desde 2008, segundo dados divulgados nesta segunda-feira (30/11) pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Os números superaram o já alto índice registrado no período anterior, que havia sido de 10.129 km², e representam um aumento de 9,5% em relação aos dados consolidados pelo Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes) entre agosto de 2018 e julho de 2019.

Desde que foi iniciado, em 1988, a maior taxa medida pelo Prodes foi de 29.059 km², registrada em 1995. A partir de então, a taxa de desmatamento sofreu forte queda até chegar aos 4.571 km² em 2012.

De acordo com o Prodes, o estado que mais desmatou neste período foi o Pará, responsável por 47% do desmate do bioma. Em seguida aparecem Mato Grosso, Amazonas e Rondônia. 

Esse é o primeiro levantamento anual do desmatamento medido pelo Prodes que reúne a devastação registrada apenas no governo de Jair Bolsonaro. Os dados do ano passado incluíam os registros de agosto a dezembro de 2018.

Ao comentar o índice, o vice-presidente Hamilton Mourão minimizou a destruição registrada. "Podemos observar o início de uma tendência decrescente. Havia expectativa de que o resultado atual que fosse ser divulgado nos daria um aumento em torno de 20% do que ocorreu o ano passado. Foi um pouco menos da metade disso aí", alegou, acrescentando que, ainda assim, "não é para comemorar".

Mourão disse ainda que 45% do desmatamento ocorreu em áreas consolidadas. Outros 30% teriam sido em áreas públicas, o que o vice-presidente chamou de "grande problema, a mais flagrante de todas as ilegalidades, que tem ser combatida".

Segundo Mourão, apesar de o trabalho de combate ter começado tarde neste ano, em maio, "os esforços que estão sendo empreendidos começam a render frutos".

Depois de diversos ataques públicos feitos por membros do governo de Bolsonaro ao trabalho do Inpe, que culminou na exoneração do ex-diretor Ricardo Galvão por defender a ciência, houve apenas elogios durante a cerimônia de divulgação de dados nesta segunda-feira.

O ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, Marcos Pontes, parabenizou os cientistas pelo trabalho e falou sobre a importância para o país do sistema de monitoramento feito no Inpe. Já o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que revelou durante reunião ministerial em maio gravada em vídeo a intenção de aproveitar a pandemia para "passar a boiada", não participou do evento.

Fiscalização em baixa

A notícia da alta do desmatamento e os comentários de Mourão foram recebidos com bastante crítica por especialistas. 

"Se tivesse baixado pelo menos um pouco o desmatamento, talvez daria pra dizer que as ações caríssimas dos militares na Amazônia tivessem tendo efeito", disse à DW Brasil Gilberto Camara, ex-diretor do Inpe. "Mourão com todo o seu Conselho da Amazônia não está resolvendo nada", analisa.

"Tudo é deprimente: o número, a forma como eles tratam o dado", pontua Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, sobre a postura de Mourão. "O general não apresentou nenhum plano, nenhuma solução, nenhuma perspectiva, nenhuma meta, absolutamente nada. O ministro do Meio Ambiente sequer estava presente", adiciona. 

A notícia da alta não surpreendeu entidades que acompanham a política ambiental no país. "Este cenário já era sabido. E, ainda assim, a resposta do governo federal frente ao aumento do desmatamento tem sido maquiar a realidade, militarizar cada vez mais a proteção ambiental e trabalhar para coibir a atuação da sociedade civil, ferindo a nossa democracia", afirma Cristiane Mazzetti, porta-voz de Amazônia do Greenpeace.

Segundo levantamento do Observatório do Clima, mais de 3.400 militares foram destinados à Operação Verde Brasil 2. "[A operação] falhou em conter tanto o desmatamento quanto as queimadas, que até novembro eram 20% mais numerosas na Amazônia do que o já escandaloso índice de 2019", argumenta a entidade.

Desde que Bolsonaro foi eleito, multas por crimes ambientais foram praticamente suspensas, o Fundo Amazônia foi paralisado, funcionários de carreira do Ibama e ICMBio perderam postos de comando, leis foram flexibilizadas, houve aumento de invasão de terras públicas.

Para Camara, há pelo menos um fato a ser comemorado, a continuidade da independência do Inpe. "Apesar de o governo ter tentado várias vezes desqualificar o Inpe, foi uma vitória do instituto ter aguentado a pancada e mantido o trabalho. As denúncias feitas pela imprensa nesse sentido também foram muito importantes", comenta.

Deutsche Welle, em 01.12.20

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

O espectro da fome

Até o fim de 2020, 5,4 milhões de brasileiros devem cair na vala comum da miséria.

 Ante o impacto planetário da pandemia, a atribuição do Prêmio Nobel da Paz para o Programa Mundial de Alimentos da ONU (WFP, na sigla em inglês) foi mais que oportuna. A principal agência humanitária das Nações Unidas responde pelo maior programa de combate à fome no mundo. Como notou a própria entidade, o prêmio é um “poderoso lembrete de que a paz e a erradicação da fome são indissociáveis”.

Em todo o mundo, cerca de 821 milhões de pessoas estão em situação de insegurança alimentar. São 135 milhões que passam fome, e a eles se juntarão mais 130 milhões. Ou seja, a fome dobrará.

A situação no Brasil também é alarmante. Em 2004, 35% dos domicílios estavam em situação de insegurança alimentar. Essa parcela chegou a cair para 22,6% em 2013. Agora, porém, como alertou ao Estado Daniel Balaban, chefe do escritório brasileiro do WFP, o País caminha “a passos largos” para voltar ao Mapa da Fome. Os passos foram alargados com a pandemia, mas começaram a ser trilhados bem antes dela. Com a recessão de 2014, milhões de domicílios passaram para o estado de insegurança alimentar, chegando a 36,7% do total em 2018. Em cinco anos, a fome aumentou 43,7%. Até o fim de 2020, 5,4 milhões de brasileiros devem cair na vala comum da miséria, totalizando quase 15 milhões, 7% da população.

Os desafios mais dramáticos enfrentados pelo WFP no mundo vão muito além dos problemas que afligem o Brasil, envolvendo a atuação em zonas de conflito onde a fome chega a ser utilizada como arma para aniquilar populações tidas por inimigas. Mas há os desafios análogos. O Comitê do Nobel apontou que o prêmio ao WFP também simboliza a “necessidade de solidariedade e multilateralismo”. O que o multilateralismo é no cenário internacional, a cooperação federativa é no nacional. “O grande drama é que não há uma unicidade, um comando que lidere o Brasil como um todo para sair desta pandemia”, alertou Balaban. “O governo federal tem uma linha difusa, não sabe se apoia ou não a OMS, se apoia ou não a quarentena.”

Outra diferença em relação às calamidades enfrentadas pelo WFP é que a fome no Brasil não é causada pela falta de comida, mas de dinheiro. Em relação a políticas públicas, não há como exagerar a importância deste fato, mas também não se pode minimizar o escândalo nele implícito: o País produz muito mais do que o suficiente para alimentar toda a população – é um dos maiores exportadores de alimento do mundo – e ainda assim milhões de famílias passam fome.

O auxílio emergencial mostrou a importância de construir uma salvaguarda contra a miséria. Em razão dele, segundo a FGV Social, o número de pobres caiu 23,7%, mas com o fim do programa esse contingente voltará à pobreza. O Planalto tenta elaborar um novo programa de renda mínima – se não por mais nada, pelo seu valor eleitoral –, mas, como sempre, de maneira desarticulada e inepta. O governo já propôs de tudo, até medidas ilegais, como o uso de precatórios, mas reluta em encampar mudanças estruturais que poderiam reduzir gastos (como a reforma administrativa, o Pacto Federativo ou a PEC dos gatilhos emergenciais), ou promover mecanismos distributivos (como a reforma tributária), ou reduzir a dívida pública (desestatização).

Como disse o Papa Francisco em sua encíclica Todos irmãos: “Ajudar os pobres com dinheiro deve sempre ser um remédio provisório para enfrentar emergências. O verdadeiro objetivo deveria ser sempre consentir-lhes uma vida digna através do trabalho”. Mas, se os quadros do governo batem cabeça para garantir um programa de renda que lhe garanta a reeleição, não há nada remotamente parecido com um roteiro de recuperação, produtividade, trabalho e educação.

Os cavaleiros do apocalipse jamais cavalgam sós. Com a peste, vem a fome; e com elas, a guerra e a morte. O Brasil não é assolado por conflitos civis, mas a criminalidade é devastadora. Se o flagelo do crime não pode ser reduzido à carência material, ela é sem dúvida a sua mola principal. Não é admissível que na 9.ª maior economia do mundo tantas pessoas morram pela fome ou pela bala.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, 30.11.20


Novo ministro do Supremo de Bolsonaro surpreende com defesa do Estado laico

Magistrados como Kassio Nunes Marques devem ser terrivelmente fiéis à Constituição, sem maracutaias políticas que acabam manchando a lei.


Kassio Nunes Marques ao chegar para sabatina no Senado que confirmou sua indicação ao STF, em 21 de outubro. ADRIANO MACHADO / REUTERS

Por JUAN ARIAS

O presidente Jair Bolsonaro havia anunciado que a primeira nomeação de um novo magistrado do Supremo Tribunal Federal seria alguém “terrivelmente evangélico”, o que criou preocupação visto que o Brasil, pela Constituição, é um Estado laico. O novo ministro do STF, Kassio Nunes Marques, porém, surpreendeu, na última quarta-feira, ao defender enfaticamente a laicidade do Estado, que deve respeitar todas as confissões religiosas igualmente sem se identificar com nenhuma.

Segundo Nunes Marques, “a laicidade do Estado não significa Estado ateu, mas Estado de todas as religiões e de religião alguma”. E acrescentou que “o fato é que o Estado não deve professar religião alguma e que se manter neutro não significa manter uma postura hostil ou impeditiva da religiosidade”.

A postura impecável do novo magistrado na defesa da laicidade do Estado contrasta com a ideia quase obsessiva de Bolsonaro desde que era um simples deputado, quando defendia que o Estado brasileiro não é laico, mas cristão. “Deus acima de tudo. Não tem essa historinha de Estado laico, não”, gritou durante a campanha eleitoral, acrescentando: “o Estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude. As minorias têm que se curvar para as maiorias”.

Não é descabido pensar que o sonho de Bolsonaro e dos pastores evangélicos, que já têm três partidos próprios no Parlamento e estão presentes em outros 16, é mudar a Constituição para eliminar sua laicidade e trocá-la pela Bíblia, para criar uma espécie de República islâmica.

E o sonho dos evangélicos, que passam de 30% da população, sempre foi ter um presidente deles. Até agora só conseguiram que um deputado, o pastor Marco Feliciano, presidisse a importante Comissão Parlamentar de Direitos Humanos. O pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, já havia profetizado que “era a vontade de Deus que um evangélico chegasse à presidência”.

Com Bolsonaro o conseguiram só pela metade, pois na verdade sempre foi católico e se fez rebatizar na Igreja Evangélica por cálculos eleitorais, já que essas igrejas poderosas movimentam milhões de votos sob o lema “o irmão vota no irmão”.

Todos os presidentes até agora nas campanhas eleitorais tiveram que se render aos evangélicos e se ajoelhar para pedir sua bênção, inclusive a candidata agnóstica Dilma Rousseff, escolhida por Lula para substituí-lo. Dilma foi obrigada, para não perder o voto dos evangélicos, a enviar-lhes uma carta se comprometendo a não tocar na lei contra o aborto durante seu mandato. Dilma foi eleita e cumpriu sua promessa.

O deputado Feliciano, que foi coroinha aos 13 anos na Igreja Católica e se converteu ao evangelismo quando conseguiu sair do mundo das drogas, hoje é um evangélico que chega a dizer que “os católicos adoram Satanás e têm seus corpos entregues à prostituição”.

No Brasil, o reino de Deus é cada vez mais deste mundo. As igrejas evangélicas e pentecostais atuam cada vez mais como um tea party à brasileira.

O pastor Feliciano, que dirige uma das igrejas mais importantes, chegou a dizer que os africanos carregam uma maldição divina desde os tempos de Noé, que faz com que vivam na miséria.

Ainda é cedo para saber se o novo ministro do Supremo, Nunes Marques, se manterá firme na defesa da Constituição e do Estado laico. E ainda é difícil saber o que Bolsonaro pensou da defesa da laicidade do Estado feita por seu magistrado. Como é cedo para saber se, em se tratando de assuntos que dizem respeito ao delicado tema das denúncias de corrupção da família Bolsonaro, o novo magistrado continuará sendo coerente com seu juramento de defender a Constituição em vez de ser um lacaio do presidente que o escolheu a dedo.

Para não cair no pessimismo, prefiro pensar que o presidente tenha ficado decepcionado com seu novo ministro e que este preferirá não sujar sua carreira de alto jurado da mais alta corte e, como acaba de fazer, seja fiel à Constituição.

Prefiro pensar que essa defesa aberta da laicidade do Estado estabelecida na Constituição continue alinhada com a independência que todo magistrado do Supremo deve ter, o que nem sempre tem sido o caso, pois levou não poucas vezes a relações espúrias entre alguns magistrados e o mundo político, ao que tantas vezes se dobraram, traindo a importante separação entre as instituições que devem ser independentes, como exige a Constituição.

Mais do que “terrivelmente evangélicos”, os magistrados do Supremo devem ser terrivelmente fiéis à Constituição, sem maracutaias políticas que acabam manchando a Carta Magna dos brasileiros.

Juán Árias é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente por EL PAÍS, edição de 27.11.2020.

Com eleições sem incidentes, Barroso refuta ilação de Bolsonaro sobre eficiência: “Não controlo imaginário”

Enquanto sugere fraude no sistema, presidente busca partido para iniciar sua campanha pela reeleição. Ministro do TSE diz que há pessoas que acreditam até que a Terra é plana


O presidente Jair Bolsonaro, ao votar no Rio no segundo turno das eleições municipais, neste domingo. ANTONIO LACERDA / EFE

Após o susto no primeiro turno, com ataque hacker e atraso de quase três horas nas apurações, as eleições deste domingo voltaram ao eixo. Pouco mais de quatro horas após a conclusão da votação na maior parte do país, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) concluiu a apuração da totalidade dos votos das 57 cidades onde ocorreram segundos turnos para prefeituras. 

Oficialmente, a apuração terminou às 21h11, de acordo com o presidente da Corte, Luís Roberto Barroso. Mesmo assim, não faltou espaço para que o presidente da República, Jair Bolsonaro, voltasse a imitar a estratégia frustrada do presidente Donald Trump sobre potenciais fraudes no pleito. 

“Espero que possamos em 22 ter um sistema de votação seguro ao eleitor de que, em quem ele votou, o voto efetivamente foi para aquela pessoa. A questão do voto impresso é uma necessidade. Está na boca do povo”, disse Jair Bolsonaro sem base na realidade.

AFONSO BENITES, do EL PAÍS / Brasília - 30 NOV 2020

OMS pede que Brasil leve covid-19 a sério

Chefe da entidade afirma que estado atual da epidemia no país é "muito, muito preocupante" e que são necessárias ações. Tedros recomenda ainda que grandes festas de fim de ano sejam evitadas em todo o mundo.

O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, afirmou nesta segunda-feira (30/11) que a situação da epidemia de covid-19 no Brasil é "muito preocupante".

"O Brasil teve seu ápice em julho. O número de casos estava diminuindo, mas em novembro os números voltaram a subir. O Brasil precisa levar [isso] muito, muito a sério. É muito, muito preocupante", afirmou Tedros a jornalistas.

Após uma diminuição no ritmo da epidemia e uma queda no número de mortos, o Brasil vem enfrentando nas últimas semanas um aumento dos casos e de óbitos em decorrência da covid-19.

Na semana passada, a taxa de contágio no país foi a maior desde maio, segundo dados do Imperial College de Londres, no Reino Unido. A estimativa da instituição pôs o índice em 1,30 – ou seja, cada 100 pessoas contaminadas transmitiam o vírus para outras 130, em média.

De acordo com dados divulgados no domingo, o total de infectados no Brasil desde o início da epidemia é de 6.314.740, enquanto o total de óbitos chega a 172.833.

Tedros fez ainda um apelo para que, em todo o mundo, seja evitada a realização de festas de fim de ano com grande número de pessoas, como forma de conter a propagação do novo coronavírus.

"É recomendável comemorar em casa, evitar reuniões com pessoas de fora, e se houver encontros, essas pessoas devem estar, de preferência, no exterior [das casas], com distância física e usando uma máscara", aconselhou.

"Todos temos que nos perguntar se, nestas circunstâncias, é preciso viajar, se é realmente necessário, pois [este] é o momento de ficar em casa e seguro", completou.

Na semana passada, Tedros destacou a primeira queda clara nos casos globais de infecção desde setembro, especialmente por causa da desaceleração do contágio na Europa. No entanto, ele advertiu que o cenário poderia mudar rapidamente. Hoje, o diretor-geral reforçou o alerta.

"A pandemia vai mudar a maneira como celebramos, mas isso não significa que não possamos fazê-lo", disse Tedros, que admitiu entender o desejo das famílias se reunirem, embora afirme que é preciso atenção. "Temos que considerar os riscos que corremos com nossas decisões", acrescentou.

O diretor-geral da OMS admitiu ainda o temor de que as festas de fim de ano se tornem o fator de produção de uma nova onda de infecções no mundo, já que não há garantias de uma vacinação em massa até lá.

Tedros também recomendou que sejam evitados "os shoppings, se houver muita gente neles", sugerindo que a população tente ir em horários de menor movimento e busque optar pelo comércio eletrônico.

Deutsche Welle, em 30.11.20

Eleições de 2020 trazem derrotas para Bolsonaro e vitória da direita

Nenhum candidato apoiado pelo presidente em capitais é eleito, mas partidos da direita e centro-direita saem fortalecidos. PT não conquista prefeitura de nenhuma capital, e esquerda indica novo equilíbrio de forças.

Condução desastrada do país durante a pandemia pode ter prejudicado candidatos apoiados por Bolsonaro, aponta analista

O resultado final das eleições municipais, concluídas neste domingo (29/11), confirma o desempenho ruim do presidente Jair Bolsonaro ao tentar apoiar aliados para o comando de prefeituras e, ao mesmo tempo, referenda o sucesso de partidos de direita e centro-direita, que viram o seu número de prefeitos e vereadores crescer.

Bolsonaro havia declarado apoio a sete candidatos nas capitais, e todos perderam. Celso Russomanno (Republicanos) em São Paulo, Coronel Menezes (Patriota) em Manaus, Bruno Engler (PRTB) em Belo Horizonte Marcelo e Delegada Patrícia (Podemos) no Recife ficaram pelo caminho já no primeiro turno. No segundo turno, também foram derrotados Marcelo Crivella (Republicanos) no Rio, Capitão Wagner (Pros) em Fortaleza e Delegado Eguchi (Patriota) em Belém.

Candidatos de perfil bolsonarista, mas que não tinham recebido apoio formal do presidente, também perderam em João Pessoa, onde Nilvan Ferreira (MDB) foi derrotado por Cicero Lucena (PP), e em Cuiabá, que viu Abilio (Podemos) ser superado por Emanuel Pinheiro (MDB).

A exceção foi Vitória, que elegeu Delegado Pazolini (Republicanos), um político sintonizado com a pauta bolsonarista. Em junho, ele havia invadido um hospital para denunciar supostas "farsas" relacionadas ao combate da pandemia do coronavírus apontadas pelo presidente. E, em agosto, atuou para impedir que uma menina de 10 anos, grávida após ser estuprada seguidas vezes pelo tio, fizesse o aborto na cidade.

Direita fortalecida, bolsonarismo não

Apesar do fracasso de Bolsonaro em emplacar aliados, na análise geral dos números, os partidos mais beneficiados pertencem ao campo da direita. Um exemplo é o DEM, que elegeu quatro prefeitos de capitais — Rio de Janeiro, Curitiba, Florianópolis e Salvador, contra apenas um em 2016. No total, a legenda elegeu 465 prefeitos, 74% a mais do que no último pleito, e governará para 12% da população nas cidades brasileiras.

O DEM já controla a presidência da Câmara, com Rodrigo Maia, e do Senado, com Davi Alcolumbre. Ambos aguardam um posicionamento do Supremo Tribunal Federal que deve permitir que disputem a reeleição para os respectivos cargos.

Outro partido que teve bom desempenho é o Republicanos (ex-PRB), que elegeu 211 prefeitos, o dobro do que no pleito passado, e teve a maior votação para vereador nas capitais. O PSD, que elegeu dois prefeitos de capitais, fez 655 prefeitos, 21% a mais que no último pleito.

"Esta é uma eleição da qual a direita sai fortalecida, mas o bolsonarismo, não", afirma à DW Brasil a cientista política Tassia Rabelo, professora da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Um dos fatores que prejudicou a performance de Bolsonaro foi a falta da estrutura e da marca de um partido, aponta Rabelo. Eleito pelo PSL, o presidente deixou a legenda em novembro de 2019 para tentar criar um partido próprio, o Aliança pelo Brasil, que não obteve o número de assinaturas necessário para ser registrado. Nestas eleições, ele decidiu apoiar pontualmente candidatos de partidos diversos, com os quais tinha identidade ou vínculo político. 

"Partidos são uma instituição atualmente mal avaliada pela sociedade, a confiança neles não chega a dois dígitos há mais de uma década. Mas eles fazem a diferença na política, e essa eleição é um exemplo disso", diz Rabelo, que também aponta para a condução desastrada do país durante a pandemia do coronavírus como um elemento que prejudicou o presidente.

A direita mostra a sua cara

O cientista político Henrique Carlos de O. de Castro afirma que esta eleição revelou a consolidação de um eleitorado identificado com a direita, que pela primeira vez numa disputa municipal assumiu de forma clara a sua posição no espectro ideológico — mais que no pleito de 2018, quando o apoio a Bolsonaro foi em grande parte resultado de uma onda anti-PT.

"Até pouco tempo atrás, não era aceitável na cultura política brasileira a identificação com a direita. Na ditadura, não se falava em direita, a Arena não falava que era direita. Depois, o PP se dizia, no máximo, de centro-direita, enquanto a identificação com a esquerda dava uma impressão vaga de esperança, de mudança. A esquerda era entendida como portadora da novidade e a direita, como algo nefasto", afirma.

"Nesta eleição, vimos candidaturas que fizeram questão de se colocar como de direita, e uma direita sem ‘vergonha', que faz questão de mostrar a sua cara", conclui O. de Castro, que é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador da Pesquisa Mundial de Valores (World Values Survey) no Brasil.

Nesse contexto, Bolsonaro não seria uma liderança "tão forte como ele acredita", pois sua maior qualidade teria sido apenas aproveitar o clima político de 2018 para se lançar como o mais "raivoso" dos antipetistas, considera O. de Castro. Dois anos depois, vê-se que a maior parte dos que o elegeram, afirma o cientista político, não são "seguidores" do presidente que votam cegamente em quem ele apoia, mas eleitores de direita que avaliam as opções pensando nos candidatos e na sua cidade. Esse é um dos motivos que impulsionaram o crescimento do DEM e partidos do Centrão, como Republicanos, PSD, PP e PL.

"Os partidos [do Centrão] vão agora pressionar mais a presidência, querendo seu quinhão no governo, pois é um governo de direita. E aí veremos se a movimentação mais para frente será no sentido de apoiar uma reeleição de Bolsonaro, ou se tentarão outra candidatura mais palatável", afirma O. de Castro.

O PSDB, que tradicionalmente polarizava com o PT, vem atravessando uma crise de identidade e teve resultados mistos no pleito. Elegeu quatro prefeitos para capitais, três a menos do que em 2016, e um total de 521 prefeitos, 35% a menos do que no último pleito. Mas saiu vitorioso na cidade mais populosa do país, com a reeleição de Bruno Covas em São Paulo.

Cenários para 2022

Muitas mudanças no cenário político ainda podem ocorrer até a próxima eleição nacional, mas o resultado do pleito deste ano dá pistas sobre como serão as movimentações para a disputa de 2022.

Rabelo, da UFPB, diz que tanto a direita quanto a esquerda devem se fragmentar no primeiro turno, com o objetivo de conseguir mais holofotes para seus respectivos líderes. Em qualquer lugar onde haja segundo turno, afirma, há um desincentivo estrutural para coligações amplas já no primeiro turno — tirando poucas exceções, como ocorreu com a candidatura de Manuela D'Ávila à prefeitura de Porto Alegre, que uniu PCdoB e PT desde o início da campanha.

No segundo turno, ela vê chances de um embate entre um candidato representando a esquerda e outro da direita, como tem ocorrido nas eleições presidenciais no Brasil desde a redemocratização.

Apesar do desempenho fraco do PT, que pela primeira vez na sua história não elegeu nenhum prefeito de capital, ela destaca que o partido ainda teve bastantes votos para vereador — entre as capitais, foi o segundo mais votado — indicando que a legenda não está totalmente fora da próxima disputa nacional.

Do lado da direita, O. de Castro projeta que a elite econômica do país fará o possível para lançar alguém menos extremista que Bolsonaro, um nome que não crie "polêmicas desnecessárias" que acabam sendo prejudiciais à economia e à imagem do Brasil no exterior. Uma opção é a do governador paulista João Doria, do PSDB, fortalecido pela reeleição de Covas e com chances de derrotar a esquerda em um segundo turno. Se isso ocorrer, Bolsonaro ainda sairia candidato, porém mais isolado na extrema direita.

Num cenário em que o candidato moderado da direita não consiga fazer frente a Bolsonaro, que ainda terá o comando da máquina federal e poder para alavancar a sua candidatura, e o atual presidente vá ao segundo turno contra alguém da esquerda, o professor da UFRGS projeta que, se esse nome não tiver a "mácula do PT", terá chances de vitória.

Ele diz que o resultado de Guilherme Boulos (Psol) em São Paulo, a votação de Manuela D'Ávila (PCdoB) em Porto Alegre e a vitória de Edmilson Rodrigues (Psol) em Belém indicam um novo equilíbrio de forças dentro da esquerda, que pode acabar beneficiando uma melhor articulação desse campo em um segundo turno.

"O PT deixou de ser sinônimo de esquerda e passou a ser apenas 'uma' das forças dela. E a esquerda pode se tornar mais forte ao se dividir, porque começa a ver alternativas a um partido só e a saber a atuar junta", diz.

Deutsche Welle, 30.11.20.

sábado, 28 de novembro de 2020

Friedrich Engels: um ídolo socialista completa 200 anos

De herdeiro industrial a revolucionário: sem o filósofo nascido em Wuppertal, talvez a obra máxima marxista "O Capital" nunca viesse ao mundo. Em seu bicentenário, Engels permanece tão contraditório quanto inspirador.


Friedrich Engels jovem (foto tirada entre 1857 e 1859)

Quando Friedrich Engels nasceu, em 28 de novembro de 1820, o mundo se encontrava em reviravolta. A partir da Inglaterra, a revolução industrial se alastrara como um incêndio descontrolado, com a formação de hordas de operários.

Também em Wuppertal, ao sul da Região do Ruhr, no oeste da Alemanha, as chaminés das fábricas fumegavam sem parar. Ali Friedrich Engels, pai, mantinha uma próspera manufatura têxtil. E, de filho de industrial, que aprende e compreende exatamente como o capitalismo funciona, seu primogênito se tornaria o mais famoso crítico do sistema, ao lado de Karl Marx.

Contraditório? Talvez. Mas sem dúvida uma virada surpreendente, que fascina até hoje. "Para mim, Engels era bipolar", especula o artista Eckehard Lowisch, que concebeu uma escultura do sociólogo e revolucionário para as comemorações dos 200 anos de seu nascimento.

"Um homem que de manhã saboreava camarões e champanhe, e de noite perambulava com os amigos pelos bairros pobres de Manchester", prossegue o escultor. "Ele era ambos: capitalista e revolução. Seja como for, possuía um grande senso de justiça."

Entre herança capitalista e revolta social

Primeiro de nove filhos, Friedrich Engels era a esperança do patriarca, que o tirou da escola, pouco antes de se qualificar para o estudo universitário, a fim de que começasse a formação como comerciante. Pai e filho estavam em conflito constante: a contradição entre a carolice pietista e a conduta capitalista repugnava o jovem. Sob o pseudônimo Friedrich Oswald, publicou as Cartas de Wuppertal, seus primeiros escritos socialistas.

"Reina uma terrível miséria entre as classes mais baixas, sobretudo entre os operários de fábrica de Wuppertal", formula, tão loquaz quanto drástico, o rapaz de 19 anos, "apenas em Elberfeld, de 2.500 crianças em idade escolar, 1.200 são privadas de aulas e crescem nas fábricas, só para que o dono não precise pagar a um adulto, cuja vaga essa criança ocupa, o dobro do salário que dá a ela."

O que impulsiona o jovem Friedrich? Após a formação profissional, em 1841 ele cumpre voluntariamente o serviço militar na Guarda de Artilharia real-prussiana, em Berlim. Como ouvinte, frequenta palestras universitárias de filosofia, letras orientais e finanças, e circula nos meios intelectuais de esquerda. No ano seguinte, em Colônia, finalmente se encontra pela primeira vez com Karl Marx, na época ainda editor-chefe do jornal Rheinische Zeitung.

Miséria operária na Inglaterra

O pai envia Engels para sua fábrica de fiação de algodão em Manchester, onde ele conhece a jovem irlandesa Mary Burns. Com a futura companheira, atravessa o bairro operário da cidade inglesa, confrontando-se com as desumanas condições de trabalho e moradia dos trabalhadores têxteis.

Ele coloca suas impressões no papel no estudo social A situação da classe operária na Inglaterra: "Em muitos casos, a família não é totalmente dissolvida por a mulher trabalhar, mas posta de cabeça para baixo", já que, enquanto "a mulher sustenta a família, o homem fica em casa, cuida das crianças, varre o chão e cozinha."

Torna-se cada vez mais estreita a colaboração com Marx, que nesse ínterim emigrara para Paris. Engels escreve para o almanaque Deutsch-Französische Jahrbücher, editado por Marx e Arnold Ruge. Quando as primeiras assembleias comunistas se realizam em 1845, em Elberfeld, ele é um dos oradores.

Em seguida vai para Bruxelas, acompanhando Marx, ambos empreendem viagens juntos. Em 1847, em Londres, filiam-se à Liga dos Justos, a futura Liga Comunista. É para essa associação que, no ano seguinte, redigem o Manifesto Comunista.

Simbiose Marx-Engels


Amigos inseparáveis: Engels (esq.) com Marx e filhas na década de 1860

"Sem Friedrich Engels, muitos dos escritos de Karl Marx jamais teriam existido", afirma o historiador econômico Werner Plumpe, da Universidade de Frankfurt. Foi só através do empenho do amigo que as ideias se transformaram em postulados políticos. E sem o dinheiro do herdeiro industrial, Marx provavelmente teria morrido de fome.

"O Manifesto Comunista é um trabalho de equipe, que em grande parte foi escrito por Marx, mas que deve a Engels, acima de tudo, a urgência que se percebe até hoje nos escritos dele. Ou seja, essa disposição de se forçar a um posicionamento político claro, e então dizê-lo e defendê-lo com veemência. Isso é algo que atravessa todo o Manifesto", analisa Plumpe.

Quando, no começo de 1849, os operários vão às barricadas em Barmen e Elberfeld, Engels está junto, e mais tarde participará da Revolução de Baden. Após a derrota, foge para a Suíça, seguindo depois para a Inglaterra, onde a partir de 1850 atua como procurador, e mais tarde como sócio dos negócios paternos.

Engels dava apoio financeiro ao amigo Marx, e mais ainda para suas publicações: muitas vezes é quase impossível distinguir um autor do outro. Por exemplo, foi ele que, a partir de anotações, compilou postumamente os volumes dois e três da obra máxima marxista, O Capital.

Em 1869, após vender suas ações da firma familiar, vai juntar-se a Marx em Londres. Após a morte do companheiro, em 1883, Engels se transforma na principal figura do socialismo internacional, em especial da social-democracia alemã. Na China, é venerado até hoje: em 2014 o país até doou a Wuppertal uma polêmica estátua do pensador.

Friedrich Engels reaparece agora em Wuppertal como figura multifacetada. "Através da digitalização, estamos hoje diante de gigantescas reviravoltas, que também transformam a arte", diz o escultor Lowisch. Para sua estátua de Engels, que projetou no computador, ele mandou cortar, de um único bloco de mármore, 64 placas, que amontoadas formam a figura em tamanho natural do filósofo, morto em 1895.

Para o bicentenário, sua cidade natal havia proclamado um "Ano Engels", em que lhe ergueria um monumento vivo, com festas de rua, concertos, exposições, tours e debates. Devido à pandemia de covid-19, as festividades tiveram que ser canceladas, inclusive a reabertura da Casa Engels, uma das antigas cinco moradias da família em Wuppertal.

Em vez disso, numerosos eventos se realizarão pela internet, a fim de que – nas palavras dos organizadores – "o novembro seja sem contatos, mas não sem Engels".

Deutsch Welle, em 28.11.2020

Porandubas Políticas

 Por Gaudêncio Torquato 

Véspera de eleição, uma historinha com um sábio da política mineira.

Quiçá e cuíca

Benedito Valadares, governador, foi a Uberaba para abrir a Expozebu. E passou a ler o discurso preparado pela assessoria. A certa altura, mandou ver e leu alto: "cuíca daqui saia o melhor gado do Brasil". Ali estava escrito: "quiçá daqui saia o melhor gado". A imprensa caiu de gozação. Passou-se o tempo. Tempos depois, em um baile na Pampulha, o maestro, lembrando-se do famoso discurso na terra do zebu, começou a apresentar ao governador os instrumentos da orquestra. Até chegar na fatídica cuíca. E assim falou: "e esta, senhor governador, é a célebre cuíca". Ao que Benedito, querendo dar o troco, redarguiu com inteira convicção:

- Não caio mais nessa não. Isto é quiçá!

(Historinha enviada por J. Geraldo)

Clima tépido

Nem quente, a ponto de fervura, nem frio capaz de causar hipotermia. Digamos que o clima nesses dias que antecedem o segundo turno esteja tépido. Pelo menos por aqui na maior metrópole brasileira. Sinto um sopro - um vento que se espalha pelo centro da sociedade na direção de Guilherme Boulos -, o que não quer dizer que ele chegará ao pódio. Mas essa última pesquisa Datafolha lhe dando 45% de intenção de voto contra 55% de Bruno Covas é surpreendente.

Surpresa?

A causa: o rápido crescimento do candidato do Psol nas pesquisas. Interessante é analisar o perfil de ontem do Boulos: líder do MSTT, Movimento dos sem Terra e sem Teto, coordenou invasões em propriedades, enfrentou a polícia, sendo, na época, considerado radical, revolucionário, depredador de propriedade privada. Hoje é palatável. Moderou o discurso. Bom de debate. E representa o antibolsonarismo e o antidorismo. Contra Bolsonaro e Doria. Ambos com alta rejeição na capital.

Imponderável

Costumo lembrar que São Paulo é, por excelência, o espaço do Senhor Imponderável dos Anjos. Elegeu Maluf, depois elegeu Erundina, elegeu Jânio quando Fernando Henrique já havia feito pose na cadeira de prefeito, elegeu Marta Suplicy, elegeu Fernando Haddad, numa espécie de passeio pela gangorra. Apenas lembranças. Bruno Covas tem 10 pontos de diferença hoje. Tirar essa distância em quatro dias é ser maratonista melhor que Usain Bolt, o maior velocista de todos os tempos, sendo o único a vencer três vezes em Olimpíadas as provas de 100 m e 200 m.

Antilulismo

Mas Bruno Covas pegou a fama de corajoso, como o avô Mário, venceu um câncer, aparece bem na TV, e, de certa forma, encarna o perfil do antilulismo. São Paulo abriga a maior população antipetista do país. Portanto, ele também agrega um posicionamento que puxa uma carga grande de votos. O psolismo é primo-irmão do petismo. Mas o voto, desta feita, carrega intensa indignação. Quem causa maior furor hoje? Quem tem esse termômetro? O eleitor está furioso, raivoso, crítico, exigente.

O bolsonarismo

Bate no nosso sistema cognitivo uma forte sensação de que o bolsonarismo tende a entrar numa rota de declínio. Indico alguns fatores: a) a economia continuará tateando na escuridão; b) o Centrão ganhou força na eleição, o que lhe motivará a aumentar o custo da fatura política, gerando cofres abertos, divergências, apoios, de um lado, e desapoios, de outro; c) formação de um bloco central, unindo grandes partidos, com vistas a 2022; d) o desprestígio do Brasil no cenário internacional, a partir da vitória de Joe Biden; e) desentrosamento entre Bolsonaro e parcela vigorosa das Forças Armadas ; f) a indeclinável dureza da identidade bolsonarista, com viseira que só mostra a base de adeptos e simpatizantes.

Cadete

Leio texto de Thaís Oyama, colunista do UOL: "Diante da insatisfação dos generais, Bolsonaro procura os cadetes. Na noite de 16 de outubro Bolsonaro dormiu junto aos cadetes numa ala comum do Hotel de Trânsito da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), em Resende/RJ. Não foi a primeira vez que o presidente foi à academia participar da cerimônia de entrega dos espadins aos aspirantes a oficiais do Exército. A Aman é a incubadora dos oficiais e futuros comandantes da Força Terrestre".

Cansaço da equipe

No terceiro ano das administrações, os governantes se obrigam a mostrar seus feitos em todas as áreas. Se a folha de serviços não estiver cheia de coisas, ocorre o que se chama de "reversão de expectativas". Frustração. Decepção. Desprezo. Procura de novos protagonistas. A equipe ministerial, por seu lado, se esvai em cansaço. Indisposição. E até desejo de se retirar de campo. Um ou outro. Paulo Guedes, por exemplo, está frustrado com a derrota de seu programa de privatização. E se mostra esgotado. Começa a repetir as mesmas intenções, as mesmas previsões, o mesmo vocabulário. Linguagem tatibitate, que não leva a nada. Palavras, palavras, onomatopeias, exclamações, interrogações.

O copo transborda

O fato é que: ninguém suporta mais os pés de páginas transmitidos por Bolsonaro em seus encontros informais (mas combinados) com apoiadores e jornalistas; ninguém aguenta mais as frases de efeito ou palavras "bolsonárias" para abrir manchetes de jornais; só mesmo as duas bandas envolvidas suportam o bate boca diário pelas redes sociais; saturaram as sequências na mídia sobre rachadinhas, Flávio e Queiroz; até os programas de humor, com vozes imitando protagonistas, começam a perder a graça. O copo transborda. E ninguém vê isso?

O Brasil em mutação

Em Barbacena/MG, terra de Andradas e Bias Fortes, donas do poder político desde o Império, foi eleito prefeito um professor de 28 anos, ex-vereador de uma única legislatura. Nesta mesma Barbacena, o segundo vereador mais votado, um palhaço ambulante (literalmente), com roupas e adereços próprios da figura representada, faz como o prefeito, representando os descrentes, insatisfeitos, e os eleitores que não aceitam o status quo da política. Mensagem enviada pelo advogado Júlio Azi Campos.

Final de ano menos festivo

As famílias vão entrar daqui a pouco no clima de confraternização. Mas o clima não será tão animado. A pandemia está aí com seus números ainda altos. A Covid-19 sai das ruas e entra nas casas. Agora, a contaminação chegou forte nos grupos do meio da pirâmide, que desleixaram suas atitudes prevencionistas. Está longe de ir embora.

A briga das vacinas

Politizaram as vacinas. Vacinas comunistas e vacinas liberais. Uma nova muralha, não da China, mas contra a China, se constrói por nossas plagas, a partir desse pedreiro, arquiteto e pintor, de nome Jair Bolsonaro, que tentará evitar que a tal vacina chinesa pule a muralha. Até prometeram comprá-la se for aprovada pela Anvisa. Promessa. Pois tudo será feito contra o que pode vir daquele território oriental. Teremos um 2021 pontuado por frases como: "já tomou sua vacina? A chinesa ou a inglesa? A chinesa ou a americana?"

Doria x Bolsonaro

Podem até não gostar do estilo João Doria de governar. Falam que abusa da publicidade, do modus operandi de sua comunicação autoelogiativa, etc. Há até um blog do Tom Cavalcanti, que imita o governador em suas entrevistas diárias sobre as ações de seu governo para combater o corona 19. Mas o fato é que ele lidera o esforço no país para trazer a vacina da China, fazendo negociações, parceria entre o laboratório chinês e o Instituto Butantã, que é um exemplo de seriedade no campo da imunologia.

2022, distante

Cerca de seis milhões de doses já chegaram a São Paulo. Doria, por essas coisas, tornou-se alvo de Bolsonaro. Até o momento, o governador tem se ancorado, como frisa, na base da ciência, enquanto o presidente monta no cavalo da politiquice. Até 2022, tem um oceano para escoar por baixo da ponte. Olhem para a história.

Napoleão

Lembrem-se de Napoleão, que invadiu a Rússia em pleno inverno. Faltavam suprimentos para o Exército. Não era fácil para os franceses obter comida com os camponeses que viviam nas áreas agrícolas ao redor. Napoleão teve que repensar sua estratégia e decidiu não mobilizar seus soldados para tomar São Petersburgo. Eles não tinham mais energia para viajar até o norte, e muito menos pra enfrentar um potencial ataque das forças do marechal Kutuzov. Napoleão estava em território estrangeiro sob a sensação de derrota.

Explodir o quê?

Sem outra escolha senão recuar, os franceses começaram, em meados de outubro de 1812, a marchar rumo a oeste para a área entre os rios Dnieper e Dvina. Enfurecido pela situação, Napoleão ordenou que seus engenheiros explodissem o Kremlin após sua partida, mas eles conseguiram destruir apenas uma torre. Com pouco para comer e despreparados para o inverno, as forças de Napoleão voltaram para Paris, sofrendo grandes perdas ao longo do caminho. Candidatos: não cometam o desatino de invadir 2022 antes do tempo. Tendo alvos concretos para implodir ou explodir. Não há, na atual paisagem, condição de explodir algo concreto como barragens, adutoras, prédios.

Fecho a coluna com um pouco de humor para adoçar a amargura da campanha eleitoral.

Encenação da paixão

O "causo" se deu na encenação da Paixão de Cristo numa cidadezinha da Paraíba. O dono do circo, em passagem pela cidade, resolveu encenar a Paixão de Cristo na sexta-feira santa. Elenco escolhido dentre os moradores e no papel de Cristo, o cara mais gato da cidade. Ensaios de vento em popa. Às vésperas do evento, o dono do circo soube que 'Jesus' estava de caso com sua mulher. Furioso, deu-se conta que não podia fazer escândalo sob pena de perder o investimento. Bolou uma maneira. Comunicou ao elenco que iria participar fazendo o papel do 'centurião'.


- Como? - reclamaram - Você não ensaiou!

- Não é preciso ensaiar, porque centurião não fala!

O elenco teve que aceitar. Dono é dono. Chegou o grande dia. Cidade em peso compareceu. No momento mais solene, a plateia chorosa em profundo silêncio. Jesus carregando a cruz ... e o 'centurião' começa a dar-lhe chicotadas.

- Óxente, cabra, tá machucando! Reclamou Jesus, em voz baixa.

- É pra dar mais veracidade à cena, devolveu o centurião.

E tome mais chicotada. Chicote comendo solto no lombo do infeliz. Até que Jesus enfureceu-se, largou a cruz no chão, puxou uma peixeira e partiu pra cima do centurião:

- Vem, desgraçado! Vem cá que eu vou te ensinar a não bater num indefeso!

O centurião correndo, Jesus com a peixeira correndo atrás, e a plateia em delírio gritando:

É isso aí! Fura ele, Jesus! Fura, que aqui é a Paraíba, não é Jerusalém, não!

 Gaudêncio Torquato, Professor Titular na USP, é cientista político e consultor de marketing político.

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sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Hackers atacam TRF-1, capturam dados e comemoram com imagem de ‘diabo’

    Um ataque hacker atingiu, nesta sexta-feira, 27, os sistemas do Tribunal                         Regional da Primeira Região (TRF-1). Os invasores dizem ter obtido                                 acesso a  arquivos em mais de 40 bases de dados do tribunal.

O ataque foi comemorado nas redes pelo grupo, que afirma ter capturado os dados e que, dessa forma, conseguiu mostrar a “vulnerabilidade” do sistema do TRF-1. O tribunal, que abrange casos de 13 Estados e do Distrito Federal, é o que abriga mais processos no País.

Em um site usado por hackers para expor vazamentos, foram publicados nomes de arquivos que estariam em quatro das 47 bases de dados do TRF-1 acessadas pelos invasores.

Os arquivos, no entanto, não foram publicados no vazamento. Ao Estadão, a assessoria do TRF-1 confirma o ataque e diz que o banco de dados do tribunal “está em manutenção para analisar uma possível falha na segurança”. “A equipe do tribunal está avaliando agora, mas a princípio houve somente uma divulgação de material que já era de domínio público.”

Após o ataque, o site do tribunal foi retirado do ar para adoção de medidas preventivas. Segundo informou o órgão, a Secretaria de Tecnologia da Informação colocou todos os serviços em “modo restrito” para investigação e providências. “Não se identificou nenhum ativo de Tecnologia da informação comprometido”, diz o TRF-1.


Hackers TRF-1

Ataques

Este é o quarto ataque contra órgãos federais em menos de 30 dias, com investidas que vêm prejudicando serviços e minando a credibilidade de órgãos públicos.

No dia 3 de novembro, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) foi alvo de hackers que bloquearam o acesso a informações restritas e pediram pagamento de resgate para liberá-las.

A invasão, considerada uma das mais graves já registradas contra órgãos públicos, paralisou as atividades no STJ e suspendeu o andamento de processos.

Em seguida, no dia 5, o Ministério da Saúde foi alvo. Sites da pasta foram desfigurados e o ataque foi apontado como motivo para que dados sobre novos casos de covid-19 deixassem de ser computados no País.

No dia 15, quando ocorreu o primeiro turno das eleições municipais, os hackers realizaram ações contra o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Tanto este ataque quanto o ao Ministério da Saúde foram reivindicados pelo mesmo grupo. O CyberTeam – liderado pelo hacker conhecido como Zambrius, de Portugal – diz ter atacado ao menos outras 61 páginas com o domínio “.br”. De 2017 para cá, foram 140.

Nenhum grupo ainda assumiu publicamente a invasão ao STJ. A investida contra o TRF-1 foi revelada por um hacker identificado como M1keSecurity.

Patrik Camporez e Vinícius Valfré, de BRASÍLIA para O Estado de São Paulo.

Senado mexicano aprova fim do foro privilegiado para o presidente

Câmara Alta aceita alterar a Constituição para julgar condutas delitivas dos mandatários. Reforma ainda precisa ser referendada por mais de metade dos Legislativos estaduais


O presidente Andrés Manuel López Obrador em uma de suas entrevistas coletivas matutinas neste ano. PRESIDENCIA / EFE

O Senado mexicano aprovou nesta quinta-feira uma reforma constitucional que permitirá julgar presidentes no exercício do mandato. A medida, que é histórica, elimina a blindagem oferecida até agora aos mandatários, alheios ao ecossistema jurídico vigente para o resto dos cidadãos. Para entrar em vigor, a decisão do Senado ainda precisará ser aprovada por mais da metade dos Legislativos estaduais (17 de 32).

Após quase dois anos dando voltas no Congresso, a iniciativa – que já tinha passado pela Câmara dos Deputados – foi aprovada com 89 votos favoráveis. A eliminação do foro presidencial foi uma das promessas de campanha de Andrés Manuel López Obrador e uma das primeiras iniciativas do seu Governo. Em dezembro de 2018, o Executivo mandou sua proposta à Câmara, mas a falta de acordos entre seu partido, o centro-esquerdista Morena, e as demais formações políticas fez a aprovação demorar.

A medida dá nova redação a dois artigos da Constituição, o 108 e o 111. O primeiro incorporará a ideia de que o presidente poderá ser processado e julgado por traição à pátria, corrupção, crimes eleitorais e qualquer outro delito que venha a ser imputado a ele durante o exercício do mandato. O segundo prevê que qualquer acusação contra o chefe do Executivo deverá passar pelo Senado.

Esta segunda parte provocou críticas de parte da oposição. O senador Damián Zepeda, do conservador Partido Ação Nacional (PAN), criticou a reforma e a qualificou de simulacro. “Dizer que o presidente vai abrir mão do foro é falso, e não vale enganar as pessoas. Não é verdade que possa ser processado como qualquer cidadão”, disse.

A senadora Xóchitl Gálvez, também do PAN, criticou igualmente o espírito da reforma. “Hoje se quer retirar o foro do presidente, mas na realidade não se retira. Este Governo usa meias verdades. É importante que os mexicanos saibam que hoje os delitos pelos quais o presidente pode ser julgado foram ampliados, mas não estamos lhe retirando o foro privilegiado.”

Já Martí Batres, senador pelo Morena, comemorou a aprovação. “Hoje em dia o presidente não podia ser julgado por mais de uma centena de delitos federais e pelas centenas de delitos contidos em seu conjunto pelos códigos penais dos Estados. Hoje em dia o presidente não pode ser julgado por furto, lesão corporal, invasão de residência, ocupação, homicídio culposo. Mas com esta reforma poderia ser julgado por qualquer delito. A imunidade ficaria eliminada.”

PABLO FERRI, da Cidade Do México, em 27 NOV 2020, para EL PAÍS 

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Brasil tem 691 mortes por covid-19 em 24 horas

País registra ainda mais de 37 mil novos casos de coronavírus, elevando total para 6,2 milhões, enquanto mais de 171,4 mil pessoas morreram em decorrência da doença.

UTI de hospital de São Paulo com pacientes de covid-19

O Brasil registrou oficialmente 691 mortes ligadas à covid-19 e 37.614 casos confirmados da doença nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados nesta quinta-feira (26/11) pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) e pelo Ministério da Saúde.

Com o novo número, o total de infectados no país vai a 6.204.220, enquanto o total de óbitos chega a 171.460. Ao todo, 5.528.599 pacientes se recuperaram da doença, segundo o ministério. O Conass não divulga número de recuperados.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais de casos e mortes devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

São Paulo é o estado brasileiro mais atingido pela epidemia, com 1.229.267 casos e 41.773 mortes. O total de infectados no território paulista supera os registrados na maioria dos países do mundo, exceto Estados Unidos, Índia, França, Rússia, Espanha, Reino Unido, Itália, Argentina e Colômbia.

Minas Gerais é o segundo estado com maior número de casos, somando 406.880, seguido de Bahia (392.381), Rio de Janeiro (346.024), Santa Catarina (343.007) e Rio Grande do Sul (308.647).

Já em número de mortos, o Rio é o segundo estado com mais vítimas, somando 22.394 óbitos. Em seguida vêm Minas Gerais (9.904), Ceará (9.545), Pernambuco (8.987) e Bahia (8.185).

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 81,6 no Brasil, uma das mais altas do mundo – só fica abaixo dos índices registrados na Bélgica (140,75), Peru (111,55), Espanha (94,25), Itália (86,09), Reino Unido (85,15), Argentina (84,76) e México (82,10), desconsiderando os países nanicos San Marino e Andorra.

A cifra brasileira também supera a dos EUA (80,15), nação mais atingida pela pandemia no planeta.

Já a taxa de contágio do coronavírus para esta semana no país é a maior desde maio, segundo dados do Imperial College de Londres, no Reino Unido, divulgados na terça-feira. A estimativa da instituição põe o índice em 1,30 – ou seja, cada 100 pessoas contaminadas transmitem o vírus para outras 130, em média.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 12,8 milhões de casos, e da Índia, com 9,2 milhões. Mas é o segundo em número de mortos, depois dos EUA, onde morreram mais de 263 mil pessoas.

A Índia, que chegou a impor uma das maiores quarentenas do mundo no início da pandemia e depois flexibilizou as restrições, é a terceira nação com mais mortos, somando 135 mil.

Ao todo, mais de 60,8 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus no mundo, e 1,4 milhão de pacientes morreram em decorrência da doença.

Deutsche Welle

Bolsonaro desiste de depoimento presencial no inquérito sobre suposta interferência na PF

Por meio da Advocacia-Geral da União, presidente informa que 'declina do meio de defesa' e pede que inquérito seja encaminhado à Polícia Federal para elaboração de relatório final

 O presidente Jair Bolsonaro desistiu de prestar depoimento presencial no inquérito que mira suposta interferência indevida na Polícia Federal. Responsável pela defesa de Bolsonaro, a Advocacia-Geral da União (AGU) informou nesta quinta-feira, 26, ao Supremo Tribunal Federal (STF), que o presidente “declina do meio de defesa” de se explicar às autoridades e pede que o processo seja logo encaminhado à PF para elaboração de relatório final.

Defesa de Moro diz que desistência de Bolsonaro em prestar depoimento ‘surge sem justificativa’

O depoimento do presidente era a única etapa que faltava para a conclusão dos investigadores. Assim que for finalizado, o relatório da PF será enviado à Procuradoria-Geral da República (PGR), a quem cabe decidir se há provas suficientes para a apresentação de uma denúncia contra Bolsonaro.

As investigações apuram acusações do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, sobre suposta interferência indevida de Bolsonaro para trocar o comando da PF. Em abril, o ex-juiz da Lava Jato deixou o governo após pressão do Planalto para substituir o então diretor-geral da corporação, Maurício Valeixo, pelo diretor da Abin, Alexandre Ramagem, um nome próximo da família presidencial.

Em nota, a defesa de Moro afirmou que recebeu ‘com surpresa’ a decisão de Bolsonaro em abrir mão do depoimento. “A negativa de prestar esclarecimentos, por escrito ou presencialmente, surge sem justificativa aparente e contrasta com os elementos reunidos pela investigação, que demandam explicação por parte do Presidente da República”, afirmou o criminalista Rodrigo Sánchez Rios, que representa o ex-juiz da Lava Jato.

A AGU alegou ao STF que a divulgação da reunião ministerial do dia 22 de abril, marcada por ofensas e xingamentos e tornada pública por ordem do então ministro Celso de Mello, ‘demonstrou completamente infundadas quaisquer das ilações que deram ensejo ao presente inquérito’. O presidente também relembra que o prazo de prorrogação concedido às investigações está chegando ao fim.

“Assim, o peticionante vem, respeitosamente declinar do meio de defesa que lhe foi oportunizado unicamente por meio presencial no referido despacho, aliás, como admitido pelo próprio despacho, e roga pronto encaminhamento dos autos à Polícia Federal para elaboração de relatório final a ser submetido, ato contínuo, ainda dentro da prorrogação em curso, ao Ministério Público Federal”, anotou a AGU.


O presidente Jair Bolsonaro e o ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro. Foto: Dida Sampaio / Estado de São Paulo

Conforme mostrou o Estadão em maio, parte dos investigadores que atuam no inquérito avalia que, até o momento, não foram encontradas provas que o incriminem e aponta que a tendência é que o procurador-geral da República, Augusto Aras, peça o arquivamento do caso.

O entendimento desse grupo é o de que, neste momento, as acusações do ex-ministro da Justiça Sérgio Moro provocam mais estrago político do que jurídico para Bolsonaro.

A controvérsia em torno da forma como deveria ser o depoimento do presidente da República gerou desgaste não apenas entre o STF e o Palácio do Planalto, mas dentro da própria Corte. Celso de Mello havia determinado que o presidente fosse ouvido pessoalmente pela PF, por ser investigado no inquérito. No entanto, durante sua licença médica em setembro, o ministro Marco Aurélio suspendeu o inquérito e barrou a realização do depoimento presencial.

Um recurso da AGU contra a decisão de Celso de Mello está pendente para julgamento no Supremo. O único ministro que já votou foi o próprio Celso, que defendeu a posição de uma oitiva presencial para o presidente da República. O julgamento foi suspenso e ainda não tem data para ser retomado.

Paulo Roberto Netto/SÃO PAULO e Rafael Moraes Moura/BRASÍLIA para O Estado de São Paulo.


Meghan Markle sobre aborto espontâneo: 'As perdas que compartilhamos'

Em artigo para o 'The New York Times'', mulher do príncipe Harry afirma que 'talvez o caminho para a cura comece com três palavras simples: Você está bem '

Meghan Markle, Duquesa de Sussex, 

Era uma manhã de julho que começou tão normalmente como qualquer outro dia: preparei o café da manhã. Dei comida para os cachorros. Tomei minhas vitaminas. Encontrei aquela meia que estava sumida. Peguei o giz de cera fugitivo que havia rolado para debaixo da mesa. Fiz um rabo de cavalo em meu cabelo antes de tirar meu filho do berço.



Meghan escreve artigo ao NYT e revela que sofreu um aborto espontâneo de seu segundo filho  Foto: Adrian DENNIS / AFP

Depois de trocar sua fralda, senti uma cólica forte. Fui ao chão com ele em meus braços, cantarolando uma canção de ninar para nos manter calmos, a melodia alegre em forte contraste com a minha sensação de que algo não estava bem.

Eu sabia, enquanto abraçava meu primogênito, que estava perdendo meu segundo filho.

Horas depois, estava deitada em uma cama de hospital, segurando a mão do meu marido. Senti a umidade de sua mão e beijei seus dedos, molhados com nossas lágrimas. Olhando para as paredes brancas e frias, meu olhar ficou perdido. Tentei imaginar como nos curaríamos.

Lembrei de um momento no ano passado quando Harry e eu estávamos terminando uma longa viagem pela África do Sul. Estava exausta. Estava amamentando nosso filho pequeno e tentando manter uma expressão destemida aos olhos do público.

"Você está bem?", um jornalista me perguntou. Respondi-lhe honestamente, sem saber que o que eu disse iria ressoar tanto - em mães de primeira viagem e naquelas mais experientes, e em qualquer um que, à sua maneira, sofreu silenciosamente. Minha resposta nada planejada parecia dar às pessoas permissão para falar sua verdade. Mas não foi responder de modo sincero que mais me ajudou, foi a própria pergunta.

“Obrigada por perguntar,” respondi. “Poucas pessoas têm perguntado se estou bem.”


Em maio de 2018, Meghan e o príncipe Harry se casaram na Inglaterra  Foto: Ben STANSALL / POOL / AFP

Sentada em uma cama de hospital, vendo o coração do meu marido se partir enquanto ele tentava segurar os pedaços do meu, percebi que a única maneira de começar a se curar é primeiro perguntando: "Você está bem?".

Estamos? Este ano levou muitos de nós aos nossos limites. A perda e a dor atormentaram cada um de nós em 2020, em momentos ao mesmo tempo difíceis e debilitantes. Já ouvimos todas as histórias: uma mulher começa o dia, tão igual quanto qualquer outro, mas depois recebe uma ligação informando que perdeu sua mãe idosa para a covid-19. Um homem acorda se sentindo bem, talvez um pouco preguiçoso, mas nada fora do comum. O resultado de seu exame dá positivo para o novo coronavírus e, em poucas semanas, ele - como centenas de milhares de outros - morre.

Uma jovem chamada Breonna Taylor vai dormir, assim como todas as noites anteriores, mas ela não vive para ver o amanhecer porque uma operação policial deu terrivelmente errado. George Floyd sai de uma loja de conveniência, sem perceber que daria seu último suspiro sob o peso do joelho de alguém e, em seus momentos finais, chamaria por sua mãe. Protestos pacíficos tornam-se violentos. A saúde rapidamente se transforma em doença. Em lugares onde antes havia coletividade, agora há divisão.

Além de tudo isso, parece que não concordamos mais a respeito do que é verdade. Não estamos apenas brigando por nossas opiniões sobre os fatos, estamos polarizados quanto ao fato ser, de fato, um fato. Estamos discordando se a ciência é real. Discordamos se uma eleição foi ganhada ou perdida. Estamos em desacordo quanto ao valor do comprometimento.

Essa polarização, juntamente com o isolamento social necessário para combater esta pandemia, fez com que nos sentíssemos mais sozinhos do que nunca.

Quando estava no final da adolescência, sentei-me no banco de trás de um táxi no meio daquela correria e agitação de Manhattan. Olhei pela janela e vi uma mulher ao telefone chorando copiosamente. Ela estava parada na calçada, vivendo um momento privado muito publicamente. Na época, a cidade era nova para mim e perguntei ao motorista se deveríamos parar para ver se a mulher precisava de ajuda.

Ele explicou que os nova-iorquinos vivem suas vidas pessoais em espaços públicos. “Amamos pela cidade, choramos na rua, nossas emoções e histórias estão por aí para qualquer pessoa ver”, lembro-me dele me dizendo. "Não se preocupe, alguém naquela esquina vai perguntar se ela está bem."


Meghan e príncipe Harry têm um filho, Archie, que nasceu em 2019  Foto: Henk Kruger/African News Agency via AP

Agora, todos esses anos depois, em isolamento e com o lockdown, lamentando a perda de um filho e a perda da crença compartilhada do meu país em relação ao que é verdade, penso naquela mulher em Nova York. E se ninguém parasse? E se ninguém a visse sofrendo? E se ninguém a ajudasse?

Eu gostaria de poder voltar e pedir ao taxista para parar. Isso, eu me dou conta, é o perigo de viver isolado - onde momentos tristes, assustadores ou importantíssimos são vividos sozinho. Não há ninguém parando para perguntar: “Você está bem?”.

Perder um filho significa carregar uma dor quase insuportável, vivida por muitos, mas falada por poucos. Na dor de nossa perda, meu marido e eu descobrimos que a cada 100 mulheres, entre 10 e 20 delas sofreram aborto espontâneo. No entanto, apesar do espantoso ponto em comum por essa dor, a conversa permanece um tabu, cheia de vergonha (injustificada) e perpetuando um ciclo de luto solitário.

Algumas corajosamente compartilharam suas histórias; elas abriram a porta, sabendo que quando uma pessoa fala a verdade, isso dá licença para todos nós fazermos o mesmo. Aprendemos que quando as pessoas perguntam como qualquer um de nós está, e quando realmente ouvem a resposta, com o coração e a mente abertos, o fardo da tristeza geralmente fica mais leve - para todos nós. Ao sermos convidados a compartilhar nossa dor, damos os primeiros passos em direção à cura.

Portanto, neste Dia de Ação de Graças, enquanto planejamos um feriado diferente de todos os anteriores - muitos de nós separados de nossos entes queridos, sozinhos, doentes, assustados, divididos e talvez lutando para encontrar algo, qualquer coisa, pela qual ser grato - vamos nos comprometer a perguntar uns aos outros "Você está bem?". Por mais que possamos discordar, por mais distantes fisicamente que estejamos, a verdade é que estamos mais conectados do que nunca por causa de tudo o que suportamos individual e coletivamente este ano.

Estamos nos ajustando a uma nova normalidade, onde os rostos são ocultados por máscaras, mas isso está nos forçando a olhar nos olhos uns dos outros - às vezes cheios de cordialidade, outras vezes, de lágrimas. Pela primeira vez, em muito tempo, estamos realmente nos vendo como seres humanos.

Estamos bem? Vamos ficar. 

The New York Times / The New York Times

Mais um incidente diplomático

Eduardo Bolsonaro se sente à vontade para ofender a China porque nada lhe acontece

É muito prejudicial ao País que o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) presida a Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional (CREDN) da Câmara dos Deputados.

Em 2018, os seus eleitores podem ter julgado que ele reunia as condições necessárias para o exercício de um mandato parlamentar, mas seu comportamento ofensivo e irresponsável no trato com outras nações mostra que o deputado não está à altura da presidência de uma das mais importantes comissões permanentes da Casa. Compete à CREDN, por exemplo, apreciar projetos de lei, tratados internacionais e outras proposições referentes às áreas de defesa e de política externa brasileiras. Compete à comissão, ainda, o acompanhamento e a fiscalização das ações do Poder Executivo no âmbito daquelas áreas, como dispõe a Constituição.

As reiteradas aleivosias do deputado Eduardo Bolsonaro podem servir muito bem como combustível para incendiar os ânimos das hostes bolsonaristas nas redes sociais, altamente inflamáveis por natureza, mas, ao fim e ao cabo, têm causado enormes danos à imagem do Brasil e elevado de forma significativa o risco de prejuízos financeiros para o País.

O mais recente incidente diplomático causado pelo filho “03” do presidente Jair Bolsonaro – certamente não terá sido o último – envolveu mais uma vez a China, nada menos do que o maior parceiro comercial do Brasil. Em uma série de mensagens publicadas no Twitter, logo depois apagadas, o deputado Eduardo Bolsonaro acusou o Partido Comunista da China e empresas chinesas de praticar “espionagem cibernética”. As acusações feitas pelo parlamentar não se sustentam. Baseiam-se em teorias conspirativas e têm como pano de fundo a disputa comercial e geopolítica entre os Estados Unidos e a China para venda de equipamentos da rede 5G em todo o mundo.

A gravidade do ato hostil do deputado Eduardo Bolsonaro pode ser medida pelo tom da resposta do porta-voz da embaixada da China no Brasil, a mais incisiva até o momento (o “03” é useiro e vezeiro nas ofensas ao país asiático). Em comunicado, a embaixada chinesa recomendou que Eduardo Bolsonaro, sem citá-lo nominalmente, evite “ir longe demais no caminho equivocado” de atribular a relação entre os dois países. Caso contrário, prossegue a embaixada, “deverá arcar com as consequências negativas e carregar a responsabilidade histórica de perturbar a normalidade da parceria China-Brasil”.

A embaixada chinesa teve o cuidado de lembrar o que está em jogo. “Ao longo dos 46 anos de relações diplomáticas, a parceria sino-brasileira conheceu um rápido desenvolvimento graças aos esforços de ambas as partes. A China tem sido o maior parceiro comercial do Brasil há 11 anos consecutivos, e é também o país com mais investimentos no Brasil”, diz o comunicado. Entre os meses de janeiro e outubro deste ano, as exportações do Brasil para a China somaram US$ 58,5 bilhões, correspondentes a um terço de todas as exportações do País. É disso que se trata do ponto de vista econômico.

A irresponsabilidade do deputado Eduardo Bolsonaro, ao se engajar em atos e palavras de hostilidade contra países dos quais não tem suficiente conhecimento, conflita com a melhor tradição diplomática brasileira e fere os princípios que regem as relações exteriores do Brasil consagrados na Constituição. Até quando? Talvez o deputado se comporte com tamanho desassombro reiteradas vezes, a despeito dos males que causa ao País, porque receba mais incentivos do que admoestações de seu pai, assim como um filho malcriado cujas travessuras mais entretêm do que constrangem.

O atrevimento do presidente da CREDN causa fissuras em relações externas construídas ao longo de muitos anos, pautadas pela confiança e pelo respeito mútuos. Caso Eduardo Bolsonaro continue a fazer o que faz, repetidamente, sem que nada nem ninguém lhe aplique o devido corretivo, tais fissuras podem se tornar rachaduras irreparáveis.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 26.11.2020

Sem lanterna de proa – 3

Se migrarmos para um cenário de dominância fiscal, seremos levados a um quadro caótico      

Por Nathan Blanche

Este é meu terceiro alerta nos últimos meses de que o barco Brasil continua num mar de incertezas quanto ao equilíbrio fiscal. Para se ter ideia das dificuldades do governo para elaborar o Orçamento de 2021, até a data de hoje não foi instaurada a Comissão Mista do Orçamento do Congresso. Sem essa peça básica de planejamento e execução orçamentária para o ano que vem e sem avanços nas necessárias reformas fiscais, é grande a possibilidade de o País zarpar para uma rota de elevada incerteza a partir de janeiro.

Um sinal claro do caos fiscal que se aproxima no próximo ano e causa tanta insegurança nos agentes econômicos e no Tesouro Nacional está no cronograma de vencimento de títulos públicos da dívida interna. Até abril de 2021 vencem R$ 605,3 bilhões em títulos, um aumento de 71% em relação aos R$ 354,5 bilhões que venceram até abril de 2020. Olhando o volume completo de vencimentos para 2021, é R$ 1,1 trilhão em títulos a serem pagos pelo Tesouro, um aumento de 40,5% ante os R$ 782,5 bilhões programados para 2020.

Tradicionalmente, o que se faz é rolar a dívida, pagando dívida velha com emissão de dívida nova. Mas em meio aos crescentes riscos fiscais, os prêmios exigidos para as novas emissões estão aumentando semanalmente. Em 17/9/2020, por exemplo, foram leiloadas LTNs (títulos prefixados) com vencimento em janeiro de 2024 pagando juros de 5,51%. Poucos dias depois, em 1.º/10, as taxas subiram para 6,12%.

O aumento dos prêmios exigidos pelo mercado financeiro nada mais é do que a precificação dos crescentes riscos fiscais, o que encarece o custo do serviço da dívida no futuro, comprometendo o processo de consolidação fiscal ao longo do tempo. Para fugir das taxas mais elevadas presentes nos juros futuros o Tesouro acaba optando por suprir suas necessidades de financiamento ofertando títulos de prazos mais curtos. Troca-se, assim, a estratégia de consolidação fiscal de longo prazo pelas necessidades emergenciais de curto prazo.

O resultado desse quadro é uma aceleração do crescimento da dívida. Entre 2013 e 2019 a dívida aumentou 23,8 pontos porcentuais. Mas em 2020, em meio aos enormes gastos no combate à pandemia e aos efeitos nocivos para a arrecadação, a dívida bruta deve atingir 97% do PIB, um aumento de 21 pontos porcentuais apenas em um único ano!

Sem a retomada do processo de ajuste fiscal, como avanço das privatizações e reformas que foquem no controle dos gastos (como as PECs emergencial, do Pacto Federativo e da reforma administrativa), caminharemos facilmente para que a dívida supere os 100% do PIB no médio prazo.

Vários economistas vêm alertando para o risco iminente de um cenário de dominância fiscal, ou seja, quando o custo fiscal do aumento das taxas de juros pelo Banco Central (BC) supera os benefícios da política monetária no combate à inflação. Mesmo com um BC tendo a devida autonomia de ação para colocar a taxa de juros onde ela deve estar para controlar a inflação, num cenário de dominância fiscal o uso da Selic como instrumento primordial da política monetária dentro do regime de metas de inflação perde sua eficácia. O resultado seria a volta de um processo inflacionário, que seria tanto maior quanto maior for o desequilíbrio fiscal e o endividamento público.

Não estamos nesse ponto ainda, mas, no limite, caso migremos para um cenário de dominância fiscal, seríamos conduzidos a um quadro caótico semelhante à década de 1980, no qual a inflação era a variável de ajuste dos desequilíbrios econômicos e fiscais.

Não sem motivo a inflação começou a ganhar novamente espaço nos noticiários e ser motivo de preocupação. Dúvidas quanto às causas e à duração da recente alta dos preços no atacado e no varejo, em contexto de aumento da incerteza sobre a trajetória fiscal, têm levado muitos analistas a revisar suas apostas quanto ao momento em que o BC começará a subir juros. Em meio a essa discussão, surge a questão do repasse aos preços da depreciação cambial. Dirigentes do BC afirmaram que, caso haja pressão de demanda de câmbio no final do ano, não hesitariam em intervir no mercado, ofertando proteção (hedge) para conter novo movimento de depreciação da moeda. Não é o objetivo da autoridade monetária controlar a inflação por meio de política cambial, mas a soma de todas essas fontes de pressão, em contexto de crescente risco fiscal, parece exigir da autoridade monetária medidas que vão além do eventual aumento antecipado da taxa de juros.

Paulo Guedes, conhecido por ser superlativo em suas falas, recentemente, disse que “o Brasil pode ir para uma hiperinflação muito rápido, se não rolar a dívida pública satisfatoriamente”. Mas a tomar pela nossa enorme dívida e pela falta de ações concretas para contornar seu crescimento, não se deve ignorar o alerta do ministro. Por outro lado, o caminho não é só “... vender ativos, privatizar, desalavancar os bancos públicos e até vender um pouco de reservas”, como ele destacou. Isso pode alterar o nível da dívida, mas não a sua dinâmica, que exige respeito ao teto dos gastos e reformas fiscais. O trabalho é árduo e exige foco e articulação política.

Nathan Blanche é sócio-diretor da Tendência Consultoria Integrada. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 26.11.2020.

No País das Maravilhas

No país de Jair Bolsonaro, os pobres e desempregados, que vão enfrentar inevitável redução de renda, podem esperar

No país do presidente Jair Bolsonaro, os pobres e desempregados podem esperar. Sem qualquer plano factível para enfrentar a inevitável redução da renda de milhões de seus compatriotas em razão do fim do auxílio emergencial, Bolsonaro escolheu a negação: comporta-se ora como se o problema não fosse dele, ora como se os pobres afinal não existissem.

Não se pode dizer que o presidente seja incoerente. Para quem jura que em 1970 participou da repressão à luta armada durante a ditadura militar – mesmo que se possa comprovar facilmente que, na época, ele tinha apenas 15 anos de idade – não é difícil inventar que governa o País das Maravilhas.

Movido por devaneios desse tipo desde que tomou posse, Bolsonaro é uma inesgotável fonte de fantasias a respeito dos feitos de sua administração e do país que preside. Não fossem os “inimigos” do Brasil – a oposição, a imprensa, os governadores, o Congresso, o Supremo Tribunal Federal, a OMS, a ONU, os países europeus, a China, o coronavírus, a libertinagem no carnaval e o que mais aparecer –, estaríamos gozando a glória do pleno desenvolvimento econômico, social e moral.

No Brasil de Bolsonaro, por exemplo, não há racismo. Sem dedicar uma única palavra de conforto à família de um homem negro brutalmente assassinado por seguranças brancos num supermercado de Porto Alegre, crime que chocou o País, o presidente preferiu dizer que vivemos em harmonia racial e que o lugar de quem denuncia o racismo é o “lixo”.

Também no Brasil de Bolsonaro, não há devastação da Amazônia e do Pantanal e nunca se protegeu tanto o meio ambiente como em seu governo. Todas as críticas de governos estrangeiros e da imprensa a respeito do inegável avanço do desmatamento, diz o presidente, são fruto de uma campanha internacional destinada a manchar a imagem do País e prejudicar sua economia.

Na Shangri-lá exuberante de Bolsonaro, só “moleques” e “maricas” têm medo da pandemia de covid-19, pois afinal bastam algumas doses de cloroquina, o elixir bolsonarista, para derrotar o coronavírus. No começo, Bolsonaro qualificou a doença como “gripezinha”; agora, a ameaça de recrudescimento da pandemia é tratada pelo presidente como “conversinha”. De diminutivo em diminutivo, Bolsonaro – que trocou de ministro da Saúde até que encontrasse um que lhe fizesse todas as vontades, que faz campanha descarada contras as medidas de prevenção e que agora se empenha em desestimular a vacinação – esquiva-se da responsabilidade pela tragédia dos 170 mil mortos e de uma economia em frangalhos. 

No mundo encantado de Bolsonaro, ao contrário, a economia do Brasil está sempre prestes a “decolar” e “voltou com muita força”, nas palavras de seu auxiliar Paulo Guedes. A esta altura, porém, quem lida com dinheiro e não gosta nem um pouco de perdê-lo tem demonstrado enorme dificuldade em acreditar nos prognósticos panglossianos do ministro da Economia e de seu chefe a respeito da recuperação do País e do encaminhamento de reformas e privatizações. Os terríveis números sobre inflação, escalada da dívida e desemprego deveriam bastar para desautorizar o otimismo não raro delirante do Palácio do Planalto.

Assim, aparentemente incapaz de encarar o mundo real em toda a sua aspereza, Bolsonaro nada tem a oferecer ao País para mitigar a crise que ele, ao contrário, ajuda a alimentar. Rejeitando todas as soluções que implicam algum grau de desgaste político e eleitoral, pois não pensa em outra coisa a não ser em sua sobrevivência no cargo e em sua reeleição, o presidente parece convencido de que, para resolver os problemas, basta fingir que eles não existem.

Esse estado de negação pode funcionar para os fanáticos que acreditam que Bolsonaro é o taumaturgo cujo toque haverá de curar a escrófula moral do País. Para todos os outros brasileiros, em especial os que não têm como compartilhar da ilusão bolsonarista porque estão concentrados demais em obter a próxima refeição, resta esperar que os demais Poderes, bem como as forças organizadas da sociedade, trabalhem o mais rápido possível para restabelecer a razão.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 26.11.2020

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Com a perda da imunidade, Trump pode enfrentar processos após deixar o poder

Presidente e suas empresas são alvos de investigações que vão de obstrução de Justiça a fraude fiscal, mas no cargo ele não pode virar réu


O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, durante um comício em 28 de outubro Foto: BRENDAN SMIALOWSKI / AFP

A vitória do democrata Joe Biden não significa apenas uma derrota eleitoral para Donald Trump. Ao deixar a Casa Branca, o presidente republicano perderá a imunidade que o cargo lhe confere. Isso significa que, assim que ele deixar o poder, o Departamento de Justiça pode retomar a acusação de possível obstrução de Justiça contra Trump apontada no inquérito especial sobre a interferência russa nas eleições de 2016, ou abrir um inquérito sobre suas deduções fiscais.

A Constituição americana não prevê a imunidade do presidente, mas há uma política de décadas do Departamento de Justiça de que o chefe de Estado não pode virar réu. Essa orientação não impede que investigações sejam abertas, mas ele pode usar o cargo para, por exemplo, não prestar depoimentos ou não apresentar seus dados fiscais — o que Trump já fez em processos anteriores que o envolviam.

O inquérito sobre a interferência russa, conduzido pelo promotor especial Robert Mueller, não obteve provas de que o republicano entrou em conluio com a campanha de desinformação de Moscou, mas detalhou episódios em que ele teria tentado impedir o seguimento da investigação.

Outro caso que poderia ser retomado é o da violação das leis de financiamento eleitoral em sua campanha de 2016. Na época, a equipe de Trump pagou pelo silêncio de duas mulheres que alegavam ter tido relações sexuais com o então candidato. O ex-advogado de Trump, Michael Cohen, se declarou culpado e foi condenado a três anos de prisão. Cohen, porém, disse que seu ex-cliente orientou o pagamento, que não foi declarado como despesa de campanha.

A eventual reabertura desses dois casos ficará a cargo do Departamento de Justiça, o que terá implicações políticas para o futuro governo de Joe Biden, que se elegeu com a promessa de reduzir a polarização no país.

— A decisão de processar um ex-mandatário tem sempre uma conotação política, e, com Trump, Biden vive um impasse — disse Oliver Stuenkel, coordenador da Escola de Relações Internacionais da FGV-SP — Processá-lo vai contra o discurso do democrata de retomar o diálogo, e irá minar a articulação que ele precisará ter com os republicanos no Congresso. Por outro lado, deixar Trump escapar ileso vai gerar uma revolta na ala mais progressista democrata.

No flanco fiscal, a reportagem do New York Times que mostrou que Trump ficou sem pagar imposto de renda em dez dos 15 anos anteriores ao seu governo também pode dar origem a processos criminais. O republicano alegou que teve perdas significativas em seus investimentos e propriedades, o que lhe permitiu pagar apenas US$ 750 de imposto no ano de sua posse, e o mesmo valor no ano seguinte, já na Casa Branca.

Já existe um processo em que o presidente foi chamado a entregar suas movimentações financeiras. A ação corre na Justiça de Nova York e foi aberta inicialmente para investigar o pagamento a Stormy Daniels, uma das mulheres do caso em que Michael Cohen foi condenado. Trump conseguiu enrolar o embate judicial até o momento, levando-o até a Suprema Corte. Porém, com ele fora da Casa Branca, a ação deve ganhar mais força, já que os procuradores terão maior acesso a documentos do presidente e poderão intimá-lo a prestar depoimento.

A imobiliária da família de Trump também é investigada pela Procuradoria Geral de Nova York sob suspeita de ter subvalorizado algumas de suas propriedades para conseguir benefícios fiscais. Ainda que o caso corra em âmbito civil, caso os investigadores encontrem evidências de uma conduta intencional, ele poderia se tornar criminal e envolver Trump.

Fora das disputas judiciais, a situação financeira de Trump também enfrentará desafios. Segundo uma reportagem do Financial Times, o presidente tem cerca de US$ 900 milhões em dívidas imobiliárias que vão vencer nos próximos quatro anos. Ele também deverá pagar mais de US$ 300 milhões de empréstimos que também vencem nos próximos anos, conforme mostrou outra reportagem, do New York Times.

Além disso, o republicano também é alvo de duas acusações de difamação, em ações movidas por mulheres que alegam terem sido abusadas sexualmente pelo presidente — ele chamou as duas de mentirosas, o que fez com que elas o processassem. Em ambos os casos, Trump se negou a prestar depoimento e a fornecer uma amostra de seu DNA. Fora da Casa Branca, ele pode ser intimado a fazer os dois.

Camila Zarur, O Globo