quarta-feira, 25 de novembro de 2020

"Todo ajuste que o Ministério da Economia apresenta, o Presidente diz que não quer"

Economista afirma que falta do comprometimento do governo com agenda reformista resultará em ambiente econômico instável e prevê flexibilização do teto dos gastos      

O governo de Jair Bolsonaro errou na calibragem do pacote fiscal lançado no primeiro semestre deste ano para conter os efeitos econômicos da pandemia e, por enquanto, não dá sinais de que conseguirá colocar a dívida em uma trajetória sustentável, na avaliação da economista Zeina Latif. Para ela, algumas falhas na condução da economia durante a quarentena são perdoáveis, pois todos estavam “no escuro”, mas o governo não se esforçou para limitar os gastos. “É o governo que tem de segurar as rédeas, porque o Congresso quer gastar. Tem de ter articulação do governo”, diz Zeina.

Segundo a economista, agora seria o momento para avançar nas reformas estruturais, mas a falta de disposição de Bolsonaro para adotar medidas impopulares aumenta o desafio. “Tudo que o Ministério da Economia leva, ele (o presidente) diz que não quer. Por isso que muitos analistas falam: ‘vamos parar de nos enganar, porque não vai ter reforma estrutural relevante e a gente vai ser forçado a aumentar a carga tributária’.”

Zeina, porém, é contra o aumento de impostos, pois a iniciativa poderia resultar em uma atividade econômica mais fraca. Diante desse cenário que combina dívida crescente e falta de comprometimento do governo com reformas, ela prevê um ambiente macroeconômico instável, o que prejudicará o crescimento, e alguma flexibilização da regra do teto de gastos (lei que limita as despesas federais ao valor do ano anterior, corrigido pela inflação).

● O FMI aponta que a dívida brasileira deve chegar a 100% do PIB neste ano. Que impacto isso terá na economia?

Estamos falando de um Brasil que já destoava nesse conceito de outros países emergentes parecidos conosco, como vizinhos da costa do pacífico na América Latina. Se já destoávamos, agora destoamos ainda mais. Além de esse número ser elevado, estamos em uma trajetória de crescimento da dívida. Isso traz preocupação e, por isso, alguns economistas acham que será inevitável o aumento da carga tributária. Eu acho que seria muito importante evitar esse aumento. Se temos esse quadro de dívida elevada e crescente, mas ao mesmo tempo um governo que sinaliza seu compromisso, de forma crível, de manter a responsabilidade fiscal, de fazer reformas, fica mais fácil navegarmos. Porque aí os investidores falam: ‘Está elevada, mas sei que, lá na frente, tudo vai dar certo; o governo está comprometido’. Essa sinalização é essencial. Não se trata apenas do número em si, mas da expectativa de que, lá na frente, vai conseguir consertar. Aí é possível evitar o aumento da carga tributária e uma postura mais defensiva de investidores. Hoje a gente já vê investidores não querendo mais financiar o Brasil, mas é claro que o espaço para piorar é grande.

● Além de subir carga tributária, medida a qual a sra. é contra, que outras iniciativas podem ser adotadas para evitar uma deterioração fiscal maior?

O certo é fazer reformas estruturais para conter o crescimento de despesa obrigatória. Os economistas que falam que vai ter de aumentar a carga tributária, no fundo, estão falando o seguinte: ‘o governo não vai fazer reforma’. Como fazer reforma é difícil e chega uma hora em que os credores dão cartão vermelho, aí o governo, sem opção, é obrigado a aumentar a carga tributária. Aumentar a carga tributária é coisa de país preguiçoso. Não fizemos a lição de casa, bateu o desespero, e aí criamos uma CPMF. Todo esforço tem de ser feito para desenhar uma estratégia crível para a contenção de gastos obrigatórios.

Zeina Latif é economista com doutorado pela USP. Consultora econômica, foi economista-chefe da XP e passou por instituições financeiras como o Royal Bank of Scotland, ING, ABN Amro e HSBC. É colunista do Estadão.

● A OCDE e o FMI estão orientando os países a aumentarem os impostos e a progressividade deles para pagar a conta da covid. A excepcionalidade do momento, dada a explosão de gastos que foi necessária por causa da pandemia, não permite um aumento?

Considerando a situação do Brasil, que já tem uma carga tributária que destoa e que tem uma estrutura tributária que gera muitas distorções e machuca o crescimento econômico, acho que (aumentar impostos) seria agravar a crise. Quando a gente fala de a dívida pública ter uma trajetória sustentável, tem de olhar o denominador (da relação dívida/PIB). Se tentamos fazer o ajuste via carga tributária e desconsideramos o efeito disso no PIB, acho que será pior. Esse é o grande legado do Alesina (Alberto Alesina, economista italiano morto neste ano, conhecido como ‘o pai da austeridade’): se for para fazer ajuste fiscal, tente fazer pelo lado da despesa estrutural. Do lado da arrecadação, vai ser menos eficiente. Se se falasse assim no Brasil: ‘Estamos fazendo uma reforma tributária que vai ter uma tremenda simplificação, eventualmente um aumento da carga, mas já em uma base menos distorcida’, aí poderíamos começar a conversa. Agora, nessa estrutura tributária que temos, é tiro no pé. Algumas pessoas falam que tem de aumentar a carga tributária porque ela historicamente está baixa em relação ao passado recente, mas aí seria via eliminação de renúncias tributárias - o que não é uma agenda fácil.

● Quando a sra. fala de reformas que poderiam resolver o problema fiscal, o que é prioridade?

Do lado de contenção de despesas, não tem bala de prata. Não é que vai fazer uma reforma, do tipo da reforma da Previdência, e vai resolver. Vai ter de trabalhar em várias frentes. E a gente se preocupa porque tem recomendações básicas de política econômica que todo mundo sabe que precisam ser feitas, mas há pouca disposição do presidente Jair Bolsonaro. Tudo que o Ministério da Economia leva, ele diz que não quer. Para a reforma administrativa, ele diz que não pode mexer com os atuais servidores. Rever as políticas sociais, reempacotá-las, ele também não quer. Refazer a PEC Emergencial para reduzir a folha em situações de emergência, não quer. Por isso que muitos analistas falam: ‘vamos parar de nos enganar, porque não vai ter reforma estrutural relevante e a gente vai ser forçado a aumentar a carga tributária’. Não dá para descartar esse cenário.

● Se houvesse uma vontade real de fazer as reformas, quanto tempo teríamos para aprová-las? Ou dar uma sinalização de que elas vão avançar é suficiente?

Uma sinalização forte é ter um consenso no governo, não é o ministro da Economia falar uma coisa, mas a Casa Civil pensar outra e o presidente não se comprometer. Primeiro tem de ser crível o compromisso. Temos de olhar e entender que é uma agenda de governo. Esse consenso interno se traduz em articulação e diálogo no Congresso. Quando o (ex-presidente Michel) Temer entrou, a gente viu as expectativas inflacionárias desinflando, o mercado cambial também, porque se enxergava um plano de voo e, ao mesmo tempo, a sinalização de que haveria capacidade de aprovação no Congresso. Não havia sido feito ajuste fiscal nenhum ainda, mas já via o mercado melhorando as expectativas e os preços de ativos. Tendo credibilidade, você vai ganhando tempo, o que não quer dizer que você não tenha de entregar resultado. A forma como o governo faz hoje é muito atabalhoada, manda várias PECs de uma vez, congestiona o Congresso.

● Se o governo continuar com essa postura, qual será o resultado na economia?

A tendência é ter alguma flexibilização da regra do teto, explícita ou não, para encaixar algum Bolsa Família mais turbinado. O que vejo é que tem um grau de incerteza. A gente não sabe qual é o Orçamento do ano que vem. Acho que não será um cenário em que o governo revoga a regra do teto, porque, quando o mercado financeiro reage, isso assusta (o governo). Então, acho que vai ser um ambiente ruidoso, com alguma flexibilização na regra do teto, ainda que informal.

“Como fazer reforma é difícil e chega uma hora em que os credores dão cartão vermelho, aí o governo, sem opção, é obrigado a aumentar a carga tributária”

● Mas que impacto tem isso na economia em geral?

É um ambiente macroeconômico um pouco mais instável. Aquilo que a gente já tem visto. Por exemplo, o dólar destoando do que seria o sugerido pelo cenário internacional. O câmbio poderia estar mais próximo de R$ 4,50 se a gente tivesse um compromisso fiscal. O Banco Central possivelmente vai ter de subir juros antes da hora. Você vai tendo uma piora, ainda que não degringole o ambiente macroeconômico, como foi o cenário com Dilma (Rousseff), mas ele fica um pouco mais instável. Isso não é boa notícia, porque, quando a gente fala em recuperação da economia, um ambiente macroeconômico mais estável é pedra fundamental. Só o fato de você não saber para onde vai o dólar gera incertezas. Isso machuca o crescimento.

● Em março, os economistas foram quase unânimes ao defender aumento dos gastos do governo para reduzir os impactos da crise da pandemia. Houve um erro de calibragem nesses gastos?

A gente gastou demais. Tinha de ter gastado menos. Eu estava na outra ponta.

● Mas aí não teríamos uma crise social ainda mais aguda, além da deterioração da relação dívida/PIB, dado que o PIB recuaria ainda mais?

É que o diabo mora nos detalhes. Uma coisa é ter de fazer socorro, mas gente desperdiçou recursos na ajuda aos Estados. Foi um volume de recursos além da queda de receita. Tem Estado que está com um caixa que nunca teve. Houve alguma contrapartida dos Estados? Exigiram ajustes? Nada. Esse auxílio emergencial foi absolutamente descalibrado. O auxílio emergencial era para dar subsistência para pessoas vulneráveis. Olha o crescimento das vendas do varejo e da indústria. É absolutamente artificial. Errou na dose.

● Não há um impacto positivo? A queda no PIB será menor.

Não. É sonho de uma noite de verão. É transitório, porque é um crescimento artificial. A fatura já está chegando. Por que o câmbio está assim? Tem de tomar cuidado. Eu fui contra o tempo todo ao discurso de 'vamos gastar e depois a gente vê'. Não existe isso. Recurso público tem de ser usado com zelo. O Brasil, em relação aos emergentes, destoou de novo. A gente gastou como se fosse a Alemanha e gastou mal, porque a gente se preocupou muito em sustentar o consumo e podia ter calibrado mais para ajudar novas empresas.

“A tendência é ter alguma flexibilização da regra do teto, explícita ou não, para encaixar algum Bolsa Família mais turbinado.”

● A que a sra. credita esse erro de calibragem?

Tem coisa que é perdoável. Ali, na largada, seria injusto querer que o governo conseguisse tudo. Era impossível. Estava um pouco no escuro mesmo. Agora, o Congresso foi lá e aprovou o auxílio emergencial de R$ 600. O governo tem de chegar e falar: ‘nossos estudos estão falando que não pode ser tudo isso e que tem de ser muito focalizado’. É o governo que tem de segurar as rédeas, porque o Congresso quer gastar. Se o governo manda medida para aumentar gasto, o Congresso vai aprovar e até vai fazer mais. Tem de ter articulação do governo. O governo não usou os recursos na saúde totalmente. Veio um auxílio emergencial com problema de calibragem e operacional. Teve funcionário público e militar que receberam o auxílio. Faltou essa calibragem e pensar no dia seguinte.

● Ainda dá tempo de consertar?

Geralmente, quando tem uma crise econômica, é aí que a gente faz reformas. Então não vamos desperdiçar essa crise, né? A crise é séria e não só no nível federal. Nos Estados, a situação vai ficar complicada, porque eles têm de voltar a pagar a dívida. Parte do aumento da arrecadação dos Estado foi artificial. Então não vai seguir nesse ritmo. As despesas são crescentes. Tem Estado que ainda não fez reforma da Previdência. Tem Estado que fez, mas foi tímida, foi meramente aumentar a contribuição, sem mexer nas regras para a aposentadoria. É muito importante que o governo mapeie os riscos e identifique o que se pretende fazer para lidar com esses assuntos. Se flexibilizar a regra do teto sem ter feito um esforço mínimo para conter despesas, aí a gente vai ter uma piora mais sensível do ambiente macroeconômico. Os agentes vão falar: ‘você está criando despesas no curto prazo e nem se preocupou em cortar no longo prazo?’.

Por Luciana Dyniewicz. Publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 25.11.2020

Um ministro sem rumo

Paulo Guedes, da Economia, tem uma vaga ideia de onde está, ignora para onde vai e desconhece, portanto, como chegar lá.

 O ministro da Economia, Paulo Guedes, tem uma vaga ideia de onde está, ignora para onde vai e desconhece, portanto, como chegar lá. Na escuridão, será cobrado ao mesmo tempo para arrumar as contas públicas, ampliar o âmbito da recuperação econômica, aumentar os investimentos e, acima de tudo, cuidar da reeleição do presidente da República. Será complicado combinar os dois primeiros itens, mas pelo menos esse desafio fará sentido. A resposta será possível com um plano bem cuidado, crível e apresentado de forma competente ao mercado. Mas planejamento é algo estranho ao ministro e credibilidade é uma palavra muito longa para seu chefe. Atender a todas as cobranças será impossível. A mera tentativa será desastrosa, como tem sido até agora.

Nos próximos dois anos, prometeu o ministro, o governo vai jogar no ataque, depois de ter jogado na defesa na primeira metade do mandato. Haverá, segundo ele, reformas, privatizações, prosperidade e abertura comercial. As privatizações deveriam ter rendido R$ 1 trilhão em pouco tempo, segundo sua promessa anterior. Mas nada foi vendido, até agora, nem ele explicou por que a história será diferente a partir de agora, com o mesmo presidente e com tanta gente, no governo e em torno dele, interessada em usar as estatais para seus propósitos.

Sem surpresa, o ministro continua reciclando as promessas, jogando-as para a frente e nunca explicando como vai cumpri-las. Com a mesma firmeza, sempre sujeita a uma reconsideração, ele negou a manutenção do auxílio emergencial em 2021 – exceto se houver uma segunda onda de covid-19.

Mas a pandemia, segundo ele, está amainando no Brasil. Não há bom motivo, portanto, para preocupação diante das notícias de recrudescimento. “Parece que está havendo repiques. São ciclos, vamos observar. Fato é que a doença cedeu substancialmente. As pessoas saíram mais, se descuidaram um pouco. Mas tem características sazonais da doença, estamos entrando no verão, vamos observar um pouco.”

Ciclos, características sazonais, chegada do verão – tudo isso compõe um aranzel desconexo e distante dos fatos. A mudança da curva de contágio, o aumento de casos e a ocupação crescente de leitos de hospitais vêm sendo mostrados pelas estatísticas. A taxa de transmissão da covid passou de 1,10 em 16 de novembro para 1,30 no balanço divulgado na terça-feira passada.

Os números foram coletados e organizados pelo centro de controle de epidemias do Imperial College, de Londres. É a maior taxa desde a semana de 24 de maio, quando foi alcançado o nível de contaminação de 1,31. Nesse patamar, 100 pessoas passavam o vírus a 131. Pela última informação, o contágio é de 100 para 130. Não se pode, portanto, falar de epidemia controlada em nível nacional.

Com a fala sobre a pandemia e sobre a expectativa de atuação econômica, o ministro se mostrou, portanto, amplamente distante dos fatos, tanto quanto esteve, quase sempre, desde o ano passado. Em quase dois anos, só uma reforma, a da Previdência, foi aprovada, graças ao trabalho de parlamentares. Além disso, a discussão já havia avançado no governo do presidente Michel Temer.

Outros projetos importantes para a economia, como a chamada PEC Emergencial, continuam travados. Na mesma condição está a reforma administrativa, pouco mais ambiciosa que uma revisão de critérios do RH. Na área tributária o ministro, além de apresentar uma proposta modesta de fusão de duas contribuições, nada fez além de defender, até agora sem sucesso, a recriação da malfadada CPMF.

O ministro falou ainda sobre abertura comercial, mas sem explicar como se conseguirá, por exemplo, vencer a resistência, muito forte em alguns países da Europa, à confirmação do acordo entre União Europeia e Mercosul. Essa resistência tem sido alimentada pela política antiecológica do governo brasileiro, jamais criticada por Paulo Guedes.

Enfim, para jogar no ataque, o governo precisaria, em primeiro lugar, de um roteiro para 2021. Mas nem o Orçamento do próximo ano está definido. Ficará também para mais tarde, talvez para 2020.

Editorial de O Estado de São Paulo, em 25.11.2020

Biden: 'Não seremos um terceiro mandato de Obama'

Em entrevista à rede americana NBC, o presidente eleito dos EUA prometeu representar em seu governo 'todo o povo americano' e procurou sair da sombra de Barack Obama, de quem foi vice por 8 anos.



Foto de 10 de novembro de 2020 do presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, sorrir durante pronunciamento em Wilmington, Delaware. Biden completa 78 anos nesta sexta-feira (20) — Foto: Carolyn Kaster/AP

O presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, disse que seu governo não será um "terceiro mandato de [Barack] Obama", de quem foi vice durante oito anos. A declaração foi dada nesta terça-feira (24) em sua primeira entrevista exclusiva desde a eleição de 3 de novembro.

“Não seremos um terceiro mandato de Obama", disse Biden ao programa Nightly News da rede norte-americana NBC.

Biden disse ainda que sua administração quer representar todo o "espectro do povo americano, assim como todo o espectro presente dentro do Partido Democrata". Ele disse que deverá enfrentar "desafios únicos", que não existiam quando foi vice-presidente dos EUA.


Biden apresenta seus indicados para a cúpula do governo em evento na cidade de Wilmington, no Delaware, em 24 de novembro de 2020 — Foto: Joshua Roberts/Reuters

"Estamos em um mundo totalmente diferente do que estávamos durante a administração Obama-Biden", disse o democrata. "O presidente [Donald] Trump mudou todo o cenário."

Biden disse também que não exclui a possibilidade de indicar, para o seu governo, algum republicano que tenha declarado seu voto em Trump.

“Eu quero esse país unido", disse Biden.

A entrevista foi concedida no mesmo dia em que o presidente eleito apresentou formalmente parte da equipe do novo governo. A gestão do democrata vai colocar, pela primeira vez na história do país, uma mulher na chefia da inteligência dos EUA e um latino na Segurança Interna e imigração.

O atual governo autorizou na segunda (23) o início oficial da transição aos nomeados por Biden — o site oficial do time democrata ganhou inclusive o endereço com final .gov. A medida foi tomada a contragosto por Trump, que ainda tenta reverter a derrota alegando fraude, sem prova nenhuma.

G1

Fim das coligações reduz número de partidos nas Câmaras em 73% das cidades

Impacto foi maior nas pequenas cidades. Queda da fragmentação partidária, segundo professor da FGV, forçará líderes políticos a rever estratégias eleitorais.

O fim das coligações para eleições de cargos proporcionais provocou uma reviravolta nas Câmaras pelo país, sobretudo nas pequenas e médias cidades. Um levantamento feito pelo G1 com base nos resultados das disputas em mais de 5 mil municípios mostra que, em 73% deles, houve redução no número de partidos com representação nos Legislativos municipais.

O total de cidades que tinham até três partidos subiu de 262 para 1.565. Houve crescimento também, mas um pouco menor (17%), no total de cidades que tinham entre 4 e 6 partidos.

Prefeitos de 3,4 mil cidades devem ter apoio da maioria da Câmara Municipal

PSDB lidera em cidades populosas e MDB, nos pequenos municípios

No geral, Câmaras com até seis partidos, que até 2016 representavam 50% dos municípios, agora são 82% do total. Em contrapartida, caiu a quantidade de municípios com mais de seis legendas nos Legislativos locais. Em 2016, essas cidades representavam 50% do total; agora, são apenas 18%.

Os dados sugerem uma redução da chamada fragmentação partidária nos municípios. Isso pode ter efeitos positivos para os prefeitos, que deverão negociar com menos legendas para governar, na análise de especialistas.

Para Carlos Pereira, cientista político e professor da Escola de Administração Pública e de Empresas (Ebape) da Fundação Getúlio Vargas, os dados demonstram um forte impacto do fim das coligações para eleições de cargos proporcionais. Segundo ele, o resultado das urnas representa um “choque” na organização das disputas políticas, o que levará os líderes a repensar suas estratégias eleitorais.

“O ponto mais importante desses dados é o impacto fortíssimo tanto na redução de Câmaras que têm muitos partidos quanto o aumento de Câmaras com poucos partidos. É um aumento considerável. Um crescimento de quase cinco vezes no número de cidades com até três partidos não é pouca coisa. Isso é quase uma revolução no sistema eleitoral, e levará os líderes políticos a rediscutir suas estratégias eleitorais, sem dúvida”, observa Pereira.

Pesquisa mostra que o número de partidos na maioria das câmaras de vereadores vai cair

Média de partidos se mantém estável nas grandes cidades

O cruzamento dos dados considerando o tamanho da população das cidades e a média de partidos com representação nas Câmaras municipais, outra forma de analisar a fragmentação partidária, mostra o impacto das urnas nos pequenos municípios.

Em cidades com até 20 mil moradores, a média de partidos no Legislativo local era de 5,9 em 2016. Esse número caiu para 4,1. A queda das médias se mantém até a faixa dos municípios com até 150 mil habitantes. A partir daí, os dados ficam praticamente estáveis, com pequenas variações das médias das duas eleições.

“O fim das coligações criou uma dificuldade para os partidos nos pequenos municípios, onde a competição tende a ser menor. Criou-se um freio e muitos partidos não conseguiram eleger seus candidatos. Já nas grandes cidades, a competição tende a ser mais difusa, com uma diversidade maior de nichos eleitorais e partidos competitivos. Daí, portanto, essas diferenças quando observarmos as cidades maiores e os grandes centros”, afirma Pereira.

Nas capitais, também houve mudanças no total de partidos com representação nas Câmaras, mas em uma magnitude menor. Recife teve a maior variação negativa. Em 2016, havia 21 partidos com representação na Câmara Municipal, número que neste ano caiu para 16.

No total, 11 capitais apresentaram queda de um a cinco partidos com representação, como foi o caso de Teresina, João Pessoa, Rio Branco, entre outras. Quatro capitais mantiveram o número de partidos no Legislativo, enquanto outras dez apresentaram aumento, entre uma e quatro legendas.

Para Carlos Pereira, o rearranjo das forças locais produzirá impactos na disputa federal de 2022, mas ela não deverá ser generalizada.

Ele explica que, em cidades nas quais o partido com maior força eleitoral é coincidente com o grupo político do deputado, a tendência é que ele seja reeleito. Mas quando não houver coincidência, sobretudo nos municípios pequenos, o impacto poderá ser diferente.

“Existem deputados que têm bases eleitorais muito estáveis, em dois, três ou cinco municípios contíguos. Nesse caso, a predominância de um partido alinhado com esse deputado não deverá gerar perda de votos. Mas em situações de desalinhamento, porque agora temos mais municípios com menos partidos com representação, esses deputados podem enfrentar problemas nas urnas", disse Carlos Pereira.

"Por outro lado, temos um terceiro grupo, que são os deputados eleitos pelo voto de opinião, sobretudo nos grandes centros. Acredito que esses não deverão ter muito problemas para se reeleger”, explica o professor da Ebape/FGV.

Efeitos negativos

A redução da fragmentação partidária, na avaliação de Carlos Pereira, deverá ser melhor analisada nos próximos anos. Ele chama atenção para o impacto do controle do Legislativo local e para a redução das chances de renovação política.

Segundo ele, sempre houve o desejo no Brasil de reduzir a fragmentação partidária porque ela dificulta o trabalho da governabilidade, mas existe também o efeito colateral de agora haver muitas cidades com poucos partidos na Câmara municipal.

Em 14 cidades, a Câmara será controlada por apenas um partido. Em 12 dessas cidades, o partido que controla o Legislativo é o mesmo do prefeito eleito. Todas os municípios têm como característica o fato de serem cidades com até 10 mil habitantes.

“Toda eleição precisa gerar representação e governo. Com a redução de número de partidos, com certeza vai ganhar em capacidade de governar do prefeito, já que agora temos menos fragmentação, especialmente nas cidades pequenas, mas justamente por ter menos partidos nas Câmaras temos uma perda de representação e também do controle do Legislativo sobre o Executivo. Então, o que temos que verificar daqui para frente é qual o ponto de equilíbrio entre governabilidade e representação e, claro, o controle que deve ser feito pelo Legislativo”, lembra Pereira.

Por Fábio Vasconcellos, G1

"A democracia brasileira precisa da esquerda unida", diz Marcelo Freixo

Em entrevista, deputado pelo Psol comenta o bom desempenho do correligionário Boulos nas eleições municipais e defende uma frente de esquerda em torno de um projeto comum, deixando de lado o personalismo.



"Se, em 2022, tivermos no 2º turno uma candidatura da direita liberal e outra da esquerda, o Brasil já venceu", diz Freixo

O deputado federal Marcelo Freixo (Psol) era o principal nome da esquerda para a disputa da prefeitura do Rio de Janeiro. Após duas tentativas frustradas, em 2012 e 2016, ele encabeçava as pesquisas de intenção de voto ao lado do ex-prefeito Eduardo Paes (DEM).

Causou surpresa, portanto, a sua decisão de não concorrer neste ano, anunciada em maio. A falta de união dos partidos de esquerda foi o principal motivo apresentado para a desistência. Com Psol, PT e PDT nadando em raias diferentes, o caminho ficou aberto para o atual prefeito Marcelo Crivella (Republicanos) chegar ao segundo turno.

Fora do páreo no Rio, onde o Psol indicou veto a Crivella, Freixo concentrou suas energias nas articulações para a disputa em São Paulo, onde Guilherme Boulos (Psol) representa seu partido e a esquerda no segundo turno.

O deputado federal foi pessoalmente encarregado de costurar o apoio de Ciro Gomes (PDT) à campanha. O pedetista se juntou a Lula (PT), Flávio Dino (PCdoB) e Marina Silva (Rede), que voltaram a subir juntos em um mesmo palanque – agora virtual – após sucessivas brigas internas na esquerda.

Em entrevista à DW Brasil, Freixo exalta o sucesso de comunicação da campanha de Boulos e sua vice Luiza Erundina (Psol) em São Paulo e defende a necessidade de a esquerda construir uma frente em torno de um projeto comum, no lugar do personalismo.

"Se a gente ganha São Paulo, muda tudo. Se não ganha, o Boulos sai com uma força muito grande. Mas não ele enquanto pessoa, e sim uma forma de fazer política. A esquerda precisa 'despersonificar' um pouco seus projetos, para conseguirmos estar mais juntos enquanto um campo de atuação. E a democracia brasileira vai precisar muito da gente", avalia. "Há muito tempo eu digo que não estaremos juntos se o debate entre nós for de nomes."

Na entrevista, Freixo também faz um balanço das eleições de 2020, vê uma retração do bolsonarismo e dos outsiders, avalia o cenário para a eleição da Presidência da Câmara dos Deputados em fevereiro de 2021 e fala sobre seu lugar como homem branco na abertura de espaços plurais na política.

DW: Que balanço você faz das eleições municipais até aqui?

Marcelo Freixo: Com o golpe e a vitória de [Jair] Bolsonaro, algo saiu do lugar. Esta eleição municipal marca um processo de retorno do pêndulo ao lugar da política. Houve uma bomba de destruição em massa jogada sobre a política brasileira, que foi a Lava Jato. Isso desmontou uma noção de política sem a construção de alternativas. Como o poder estava na mão da esquerda na época, ela é a grande derrotada em um primeiro momento. Só que a Lava Jato é destrutiva para todas as instituições e manifestações políticas. Não à toa, quem emerge como alternativa da Lava Jato é o subterrâneo, o Bolsonaro, que vem com uma estética subterrânea, uma linguagem subterrânea, a lógica da violência, reafirmando não ser da política.

Em 2020, vemos esse pêndulo voltar para o debate da política, das cidades, processo que tem como grande derrotada a direita bolsonarista. Não dá para generalizar pela direita, porque em cidades médias há a vitória de setores liberais importantes, como DEM e PP. Ou seja, os partidos que compõem o Centrão e a direita clássica, como o PSDB, saem vitoriosos em processos importantes. Quem perde são os candidatos bolsonaristas, que são amplamente derrotados ou vão para o segundo turno em dificuldade. Quem o Bolsonaro apoiou sai com muita dificuldade. E quem vence é o debate da política. As figuras outsiders começam a perder muito espaço.

E os partidos de esquerda?

Tentam colocar uma narrativa de que o Bolsonaro perdeu "assim como o PT". É muita forçação de barra, porque, comparado a 2016, o PT recuperou muitos espaços. É evidente que o partido não tem mais a hegemonia que tinha há algum tempo. Mas não sai derrotado e recupera espaços relevantes perdidos em 2016 e 2018. O PT está no segundo turno em 18 cidades importantes. É diferente da última eleição municipal, logo após o golpe contra a Dilma. Recife é um capítulo à parte, mas Porto Alegre, São Paulo, Vitória e Belém são cidades onde uma frente de esquerda começa a ser criada, um debate mais amplo da esquerda.

Este pode ser um caldo de cultura muito importante para 2022, que vai dialogar com o tabuleiro de 2020. Ao mesmo tempo, Bolsonaro mostra um desgaste eleitoral muito rápido. Para quem se elegeu em 2018, é um sinal de fragilidade política, e pode ser que ele chegue a 2022 mais fraco do que a gente poderia imaginar agora.

Qual tem sido o seu papel na articulação da frente de esquerda que se formou nesse segundo turno?

Trabalhei muito para eleger vereadores no Rio, no primeiro turno, e ajudei em outras cidades. No segundo turno, fiquei com a tarefa de trazer o Ciro para a campanha do Boulos, e conseguimos. Já estavam Lula e Flávio Dino, e vieram Ciro e Marina, que também estão juntos em Porto Alegre (RS) e Belém (PA). É claro que não se pode criar uma ilusão e achar que está tudo resolvido no meio da esquerda. Mas ficou claro que é possível estarmos juntos. Se nós tivermos um projeto, podemos estar juntos. Há muito tempo eu digo que não estaremos juntos se o debate entre nós for de nomes. Aí não vamos escapar do debate hegemonista.

Qual é o projeto? O que estamos defendendo e o que queremos alcançar juntos? Se a gente tiver maturidade para esse debate, temos condições de estar juntos. São aprendizados específicos para cada um de nós. O nome do Ciro é muito forte, assim como o do Dino. O que o Boulos está fazendo em São Paulo é de uma força muito grande. A eleição está muito disputada lá. Se a gente ganha São Paulo, muda tudo. Se não ganha, o Boulos sai com uma força muito grande. Mas não ele enquanto pessoa, e sim uma forma de fazer política. A esquerda precisa "despersonificar" um pouco seus projetos, para conseguirmos estar mais juntos enquanto um campo de atuação. E a democracia brasileira vai precisar muito da gente.

Até onde é possível ir o arco de alianças para derrotar o bolsonarismo?

Num primeiro momento, precisamos buscar o campo das forças de esquerda. Se a gente conseguir isso, pode ter uma candidatura competitiva. Depois, vai depender da conjuntura. O mais importante para nós é derrotar a experiência da extrema direita, porque ela é ameaçadora da democracia. Se, em 2022, tivermos no segundo turno uma candidatura da direita liberal e outra da esquerda, o Brasil já venceu. A democracia vence, e vamos para o debate de projetos. Agora, se tiver uma candidatura da extrema direita, o nosso arco de alianças terá que ser mais amplo.

A gente acabou de ver as eleições dos Estados Unidos: os setores à esquerda dos Democratas apoiaram um candidato que não era o preferido, mas era importante para derrotar o Trump. A conjuntura fala no momento adequado. Neste momento, o que devemos fazer, evidentemente, é fortalecer um projeto de esquerda e uma unidade desse campo de forma menos personalista e mais em torno de um projeto de país. Se a gente conseguir isso, chega a 2022 com condições de pensar além.

O Psol dividiria palanque com Luciano Huck ou Sergio Moro?

Eu não sei se as figuras outsiders da política vão ter vida em 2022. Este ano mostrou o contrário. A experiência não foi boa no Brasil. Eu conheço bem o Sergio Moro, tive muitos enfrentamentos com ele. É uma figura em que muito pouca gente confia. Não é alguém que prime por um projeto coletivo, muito pelo contrário. É difícil pensar em qualquer tipo de aliança, até pelo papel que ele cumpriu na República, muito ruim. Não vejo nenhum programa em que o Sergio Moro possa estar defendendo o mesmo que nós. Buscar essa solução de outsider para a política é insistir no que aconteceu em 2018, só que tentando pegar um nome melhor.

A gente deve deixar o pêndulo onde está, na política, e fazer esse debate de programas. Por exemplo, o que vamos defender para a questão da saúde, no momento do pós-pandemia, em 2022? Qual vai ser o papel da saúde pública e sua relação com o teto de gastos? O que a gente vai fazer com a educação tendo aprovado o Fundeb? Qual será o papel do Estado? Este é o debate que a gente tem que fazer e aprofundar. Quem vai defender o melhor projeto para o país e como? Isso o outsider não acompanha. Ele é muito mais a negação de uma institucionalidade do que a solução dos problemas dessas relações políticas. A gente tem que aprofundar a solução política na política.

Somadas, as candidaturas de esquerda receberam mais votos do que a de Marcelo Crivella (Republicanos) na eleição para prefeito do Rio de Janeiro. Com maior organização, era possível ter ficado com essa vaga?

Política não é matemática, por mais que a matemática possa ser útil à política. Eu acho que dava para ter ido além, mas a gente precisa entender que o Rio de Janeiro não é São Paulo. Primeiro, o Rio tem 40% da sua população composta por evangélicos, o que não acontece em outras capitais, com a particularidade de terem como líderes nomes da política, como o Silas Malafaia, o Pastor Everaldo, o RR Soares. Isso começa no governo Garotinho, por meio do Cheque Cidadão. Ele faz uma mistura de política com religião e traz para dentro do Estado. O Rio de Janeiro nunca mais foi o mesmo depois disso. E nada contra a religião evangélica, estou só comparando entre as cidades.

Ao mesmo tempo, o Rio tem as milícias, com uma força que também não existe nas outras capitais. Eu fui para São Paulo no primeiro turno e passei um dia lá com o Guilherme. Andamos por toda a periferia. Aqui no Rio de Janeiro, você não pode fazer isso. Há uma relação de religiosidade, território, crime, polícia e política  caminhando juntos, que não se vê em nenhum outro lugar. Disputar uma eleição no Rio não passa pelos marcos democráticos que outras cidades têm. É completamente diferente. Não é porque o Boulos chegou [ao segundo turno] em São Paulo que eu ganharia no Rio. O raciocínio não é assim. Para se ter ideia, a principal fake news do segundo turno é comigo. É um negócio criminoso, associando esquerda à pedofilia. Não se tem isso em São Paulo ou em outros debates.

Mesmo nesse cenário, você aparecia com 18% das intenções de voto em dezembro do ano passado, segundo o Datafolha, atrás do Eduardo Paes (22%) e bem à frente do Crivella (8%). As chances não seriam maiores?

Não dá para dizer, somados os votos da esquerda, que ganharia a eleição. Se eu fosse candidato e tivesse uma unidade da esquerda como eu propus desde o início, nós iríamos ao segundo turno muito fortalecidos, com um projeto para o Rio de Janeiro, buscando governabilidade. No Rio, não basta ganhar eleição. É sobre como você governa numa cidade onde um em cada três cariocas mora em área de milícia. O presidente da República tem, na sua origem, relações com a milícia, defendeu a legalização delas. Não tem governador do Estado, e o vice assumiu ainda no processo de transição. Eu não sou qualquer pessoa, fiz a CPI das milícias, sou jurado de morte e principal inimigo político deles. Como eu me torno prefeito sem uma unidade da esquerda, sem uma ampla relação para refundar o Rio de Janeiro? A cidade tem uma complexidade muito específica e grave neste momento.

A campanha do Boulos parece ser a primeira campanha bem-sucedida da esquerda na esfera digital. Como você avalia a estratégia?

Acho que a campanha do Boulos já é vitoriosa politicamente. Somado à experiência da Erundina, uma figura muito carismática, ele consegue uma eficiência de linguagem, sendo essa pessoa muito bem preparada. Ele consegue quebrar um preconceito muito grande sobre a ideia de um líder de movimento social. O Guilherme se mostra uma pessoa preparada, com condição de discutir São Paulo, o que também traz a esquerda para uma reflexão importante, sobre a preparação dos seus quadros. A gente tem os efeitos simbólicos de eleições que dialogam muito com os símbolos, mas precisamos ter quadros preparados, prontos para governar. A gente não pode se contentar só com projetos de performance política. Precisamos estar preparados para disputar o poder e assumir. O Guilherme mostra isso, ao lado da Erundina, com uma capacidade de comunicação que fez o cinza de São Paulo sorrir depois de muito tempo. Isso foi muito marcante.

Com o declínio da esquerda mais ligada ao sindicalismo, a intelectualidade ganhou espaço dentro do campo. Nesse cenário, como manter a capacidade de se comunicar com a população?

Uma das vitórias da campanha do Guilherme e da Erundina é exatamente ter conseguido se comunicar com vários setores da sociedade. Eles acertaram na comunicação. O Guilherme entendeu que não há uma juventude, mas juventudes existindo numa mesma cidade. Como é dito no livro Os Engenheiros do Caos, de Giuliano da Empoli, a ascensão da extrema direita no mundo é uma fusão da cólera com o algoritmo. Nós podemos dialogar com essa cólera e manusear os algoritmos. Precisamos saber dialogar nas redes e, ao mesmo tempo, entender e representar essa cólera. Essa indignação sempre contou com nosso apoio e não pode estar contra a gente. Tem que ser compreendida, e não pode ser canalizada para a negação da política e a construção de autoritários de plantão. Precisamos oferecer alternativas para essa cólera em um projeto de poder e, ao mesmo tempo, fazer isso chegar aos diversos setores da sociedade.

Hoje, há uma pulverização muito grande das fontes de informações, com parte da sociedade indo buscar o que lhe conforta. Passa a ser verdade o que ela quer que seja. Por isso, as fake news têm tanta capacidade de sucesso. Não tem um lugar onde você vai conferir se aquilo aconteceu ou não. As pessoas estão buscando conforto num mundo muito desconfortável. A gente tem que saber se comunicar com essa busca. Não vamos oferecer conforto, mas algo que interesse àquela pessoa ler, entender, ter acesso. Esse debate da comunicação é muito decisivo.

Acho que o grande segredo vai ser estar em um projeto nacional de país, apresentar alternativas concretas e, ao mesmo tempo, estar no território, chegar  a esses lugares e a essa juventude. Não tem mais o chão de fábrica porque não tem mais fábrica. A quantidade de trabalhadores precarizados, sem vínculos formais, hoje, é gigantesca. Como você dialoga com essa classe trabalhadora? Não é a mesma da década de 1980.

Você falou diversas vezes na importância de ter um projeto. Qual agenda um projeto comum da esquerda deveria englobar?

A primeira coisa é entender que a gente está no século 21. Não se pode abrir mão dos grandes desafios que ele trouxe, como a própria questão do emprego, a questão ambiental, climática. Isso deveria estar em pauta nos anos 1980 e 1990, mas era compreensível que não estivesse. No século 21, é impossível não ter isso como eixo central de um projeto de desenvolvimento. É impossível não ter um projeto de enfrentamento ao racismo, por exemplo, uma pauta que poderia não estar contemplada na estrutura de um projeto em 1980.

A própria eleição de tantas mulheres negras e trans é uma resposta ao bolsonarismo, por um lado. Por outro lado, é uma forma de fazer política que chegou e não vai embora. Como aliar isso a um projeto de país? Daí a ideia de não tratar como pauta identitária, e sim estrutural. Ter políticas de enfrentamento a uma estrutura racista é um projeto estrutural, e não identitário. Isso tem que estar na pauta do desenvolvimento de qualquer política de emprego, por exemplo.

Não quero fazer um debate na esquerda sobre quem é melhor. Quero saber o seguinte: neste projeto que a gente apresenta, cabem Ciro [Gomes], [Flávio] Dino, [Fernando] Haddad, Manuela [D'Ávila], Boulos e Marina [Silva]? Então, é este o projeto.

Você é padrinho político da Marielle Franco e contribuiu para abrir espaço à diversidade no campo da esquerda. Ao mesmo tempo, trata-se de um homem branco heterossexual no caminho de candidaturas com maior representatividade. Como lida com isso?

Com muita tranquilidade. Tenho 53 anos e milito desde muito novo. Quando comecei a trabalhar com direitos humanos, ninguém falava nisso. Eu tinha 21 para 22 anos quando comecei a trabalhar nas prisões, o que significa mais de 30 anos de trabalho dentro do cárcere, uma vida. Quando eu falava que dava aulas no presídio, as pessoas achavam estranhíssimo. Tanto que, em 2006, quando me elegi deputado pela primeira vez, todos os movimentos de direitos humanos apoiaram minha candidatura. Nosso papel é fazer essa transformação. Quando assumimos a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio, colocamos a Marielle na coordenação. Ela constrói um trabalho ali dentro, sempre coletivamente, e se elege vereadora. Na verdade, a gente é parceiro de trabalho.

O nosso trabalho é de formação. Nós vamos embora, e a luta vai ficar. Chegará um momento em que vai ser minha hora de parar um pouco. Nosso trabalho sempre foi visto por nós como meio, e não como fim. Novas pessoas têm que dar continuidade ao trabalho, que é coletivo. O que comecei a fazer há 30 anos não pode depender de mim. Eu tenho que ajudar a construir novos quadros que deem sequência a isso, o que eu faço com muito prazer e tranquilidade. Ainda bem que hoje um homem branco hétero tem limites. Se não existiam há um tempo atrás, o tempo passou, e hoje a gente constrói isso com muita pedagogia e tranquilidade.

A eleição para a Presidência da Câmara dos Deputados está se aproximando. Como você vê essa movimentação?

Essa eleição é muito importante, porque marca como a Câmara vai se posicionar até 2022. De um lado, tem o nome do Arthur Lira (PP-AL), principal líder do Centrão, neste momento dentro do governo Bolsonaro. O Arthur é uma liderança mito forte dentro do Congresso Nacional e já é candidatíssimo a essa vaga, dialogando com o governo. Do outro lado, você tem o grupo do Rodrigo Maia (DEM-RJ), que associa DEM, MDB, PSDB, setores divergentes e discordantes do centrão, com a possibilidade de lançar um outro nome, com vários postulantes. Fato é que a divisão entre o Centrão e esse centro liberal, grupo conduzido pelo Rodrigo Maia, são muito próximos em número de voto.

Quem decide essa eleição é a esquerda, que virou o fiel da balança com seus 134 deputados. Se boa parte da esquerda votar no mesmo candidato, define a eleição. Um candidato da esquerda não ganharia, mas o apoio vai poder decidir por um ou outro. Isso envolve a agenda do Congresso, das reformas, é muito importante. Estão anunciando a intenção de votar a reforma tributária em dezembro. Já é um esticamento de corda, um teste para a eleição de fevereiro. O Congresso está longe do fim do ano.

Deutsche Welle

Toda a nudez do Poder Judiciário virtualizado será perdoada?

Por Alexandre Ogusuku

A sociedade, há tempos, experimenta as mudanças comportamentais trazidas pela revolução tecnológica, em especial das redes sociais. As pessoas interagem mais com os celulares do que com os seus semelhantes. Esse pequeno aparelho transformou de tal monta a convivência humana que os seus reflexos são vistos nas praças, nos restaurantes, em nossas casas etc. Os olhos e os dedos humanos estão nos celulares.

No curso da Covid-19, o Poder Judiciário vem promovendo uma revolução no seu funcionamento. O atendimento às partes e aos advogados, as sessões de julgamento, as audiências, antes presenciais, agora são virtuais. Pelos celulares assistimos aos julgamentos, realizamos sustentações orais e as audiências. Também pelas redes, partes e testemunhas prestam depoimentos às autoridades judiciárias. E tudo isso, todas essas alterações, não são transitórias, constituem o que se anuncia como o "novo normal".

As novidades colocam a advocacia e a OAB em uma encruzilhada, marcam um ponto ambíguo em nossa existência: o início de um novo fluxo e o fim de um território existencial. Esse quadro exige da Ordem dos Advogados do Brasil decisões e ações que mantenham a instituição como protagonista da advocacia e da cidadania brasileira.

Uma primeira nova escolha diz respeito ao desagravo como instrumento de defesa das prerrogativas da advocacia. A defesa das prerrogativas na presente quadra requer uma atuação integrada do sistema federativo da Ordem dos Advogados do Brasil. A subseção, a seccional e o conselho federal devem atuar conjuntamente na defesa da advocacia violada, estruturados em redes.

Hoje, as ofensas à advocacia e às prerrogativas são transmitidas ao vivo pela internet e, gravadas, viralizam tão rápido como a propagação da luz. Esse processo de multiplicação digital das imagens de uma ofensa às prerrogativas, para o ofendido, tem funcionado como um verdadeiro desagravo. Tem-se a impressão de que quem desagrava a advogada e o advogado são as redes sociais e os seus influenciadores.

O procedimento e o ato do desagravo público necessitam de uma urgente ressignificação. O desagravo deve ser imediato à ofensa e a mensagem da OAB em defesa dos ofendidos deve alcançar o coração da advocacia. Esses tempos modernos cobram uma OAB rápida, eficiente e estruturada nas redes sociais. É dizer, não basta mais postar mensagens no Twitter, no Instagram ou no Facebook institucionais, é preciso viralizar essas mensagens, levando-as aos celulares de todos os advogados e advogadas.

A segunda decisão vem no bojo das modificações dos formatos das audiências. O Conselho Nacional de Justiça acaba de aprovar um minicódigo processual de audiências telepresenciais. Os celulares dos advogados, das advogadas, das partes e das testemunhas, na atualidade, representam os antigos fóruns de Justiça. Grandes prédios, secretárias, varas, gabinetes, salas de arquivos, tudo o mais, serão coisas do passado, bastam os celulares. No plano sociológico, a virtualização dos processos tende a formar um juiz asséptico ao réu, ao povo, e isso é um importante e real problema que desafia todos os operadores do direito da atualidade.

Outros já escreveram sobre os problemas jurídicos das audiências telepresenciais, como o fez Eduardo Sanz, em série de artigos publicados na ConJur. Destaque-se que a legislação processual brasileira é tímida em relação à virtualização das audiências e não contempla a prática de atos telepresenciais. O Conselho Nacional de Justiça não tem competência para legislar sobre normas processuais e, aí, caberia à OAB a defesa da legalidade no STF.

Defender a aprovação pelo Congresso de leis processuais que regrem os atos telepresenciais é, para além da modificação de um simples formato, um desejo de novas proteções e garantias à higidez e integridade dos depoimentos, a edificação de um novo conjunto normativo de prevenção e combate às fraudes processuais virtuais.

A terceira decisão nessa encruzilhada diz respeito às ações da OAB em relação ao aprimoramento do Poder Judiciário brasileiro. As provas dos antigos vícios e dos erros avolumam-se nas redes sociais. Comportamento inapropriado de juiz em praças litorâneas, conversas pré-processuais explícitas, desrespeito ao cidadão e ao seu direito de defesa, descaso com os pares da magistratura, são exemplos gravados e acessíveis em quaisquer dos sítios de buscas eletrônicas.

Impávida, a advocacia profere a clássica pergunta: e a OAB? É tempo de a OAB decidir sobre o que fazer e como usar as imagens que marcam esses vícios do Judiciário. O momento é assaz oportuno para dizer à sociedade e com ela decidir sobre qual é o juiz e o judiciário que queremos para o nosso país.

Nessa encruzilhada, as decisões da Ordem dos Advogados do Brasil muito significarão para a advocacia. Escolher bons caminhos amenizarão as trilhas dos advogados e das advogadas em nosso país. O processo tecnológico é irreversível, utilizemos os seus recursos para defender e valorizar a advocacia e trabalhar pela boa transformação do Poder Judiciário brasileiro.

Como na literatura, pelas redes, o rei ficou nu, e tecer-lhe novas vestes democráticas e republicanas é o papel daqueles que a Constituição consagrou como essenciais à administração da Justiça. Toda a nudez do Judiciário virtualizado será perdoada?

Alexandre Ogusuku é conselheiro federal OAB/SP e presidente da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas e Valorização da Advocacia. Publicado originalmente pelo Consultor Jurídico, em 25.11.2020.

Cientistas criam miniórgãos e revolucionam o conhecimento sobre a covid-19

Foto feita por microscópio mostra uma estrutura circular de um organoide com três cores: verde, azul e vermelho.CRÉDITO,KARINA KARMIRIAN, MESTRANDA UFRJ/IDOR

A foto acima revela a estrutura de um organoide cerebral feito no Rio de Janeiro. Os pontos vermelhos são neurônios e os pontos azuis indicam o núcleo das células. As manchas verdes são progenitores neurais, estruturas que dão origem às células do sistema nervoso

Imagine pegar um punhado de células humanas de diferentes tipos e, após uma série de procedimentos, transformá-las num órgão em miniatura, que funciona de verdade e pode ser observado a olho nu.

Saiba que isso já é possível nos dias de hoje: os miniórgãos (ou organoides, nome preferido entre os cientistas) são uma ferramenta poderosa, que ajuda a entender como o Sars-CoV-2, o coronavírus responsável pela pandemia atual, provoca danos em diferentes partes do nosso corpo.

Graças a essa tecnologia, os especialistas avaliaram diversos tratamentos possíveis e entenderam rapidamente que a covid-19 não era apenas uma doença que atingia o sistema respiratório, mas tinha repercussões no coração, no intestino, nos rins e até no cérebro.

Mas, afinal, como se cria um miniórgão? E quais as vantagens que ele traz em comparação com outros métodos mais antigos, como culturas de células e cobaias?

Voltar ao passado para projetar o futuro

A matéria-prima básica para a construção de um organoide são células simples presentes na pele ou no sistema urinário. Após a seleção, os cientistas realizam um procedimento que faz essas unidades se transformarem em células-tronco.

"É como se elas voltassem no tempo. Por meio de uma transformação genética, elas viram células-tronco novamente", reforça a neurocientista Marília Zaluar Guimarães, do Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino, no Rio de Janeiro (IDor).

A descrição desse processo biológico e da tecnologia capaz de torná-lo factível, inclusive, renderam o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 2012 ao britânico John Gurdon e ao japonês Shinya Yamanaka.

Mas essa é apenas uma parte da história. Depois que as células "voltam no tempo", é preciso realizar uma nova etapa. "De acordo com fatores que usamos no laboratório, fazemos com que essas células-tronco se diferenciem e se especializem novamente", completa Guimarães, que também é professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Em outras palavras, é possível pegar uma célula da pele e, seguindo alguns passos, fazer uma metamorfose para que ela vire um neurônio ou um glóbulo vermelho.

A grande sacada é que os organoides não são apenas um amontoado de células que podem ser analisados com o auxílio de um microscópio. Falamos aqui de formações mais complexas, que reúnem mais de um tipo de célula e muitas vezes são visíveis a olho nu. Trata-se realmente de um órgão em escala reduzida.

"No caso dos minicérebros, por exemplo, eles são esféricos, mas não têm a mesma formação do órgão verdadeiro. O que nos permite saber que aquela estrutura se assemelha ao original são suas características celulares e bioquímicas", aponta o biólogo Daniel Martins de Souza, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Placa de petri circular com pequenas esferas dentro representando os organoides cerebrais

Ilustração mostra tamanho de minicérebros numa placa de Petri. É possível vê-los a olho nu. CRÉDITO,GETTY IMAGEM

As origens

Numa perspectiva histórica, a possibilidade de construir miniórgãos é muito recente. Os cientistas só conseguiram botar a mão na massa de verdade nos últimos dez anos.

Apesar de jovens, os organoides já deram grandes contribuições à ciência. Um dos maiores exemplos disso aconteceu durante a epidemia de zika, que preocupou o Brasil (e o mundo) em 2015 e 2016.

Transmitido por uma picada do mosquito Aedes aegypti, o vírus provoca sintomas relativamente simples, como febre baixa, dor e vermelhidão nos olhos.

Mas a explosão de casos de microcefalia (quando o bebê nasce com o crânio e o cérebro menores do que o usual) na região Nordeste do país levantou o sinal de alerta: será que uma infecção por zika ao longo da gravidez poderia estar relacionada a essa grave complicação?

A longa lista de possíveis sequelas da covid-19

Coronavírus: o que realmente funciona para se proteger?

A suspeita foi confirmada graças às pesquisas com os organoides. Em laboratório, uma equipe liderada pelo neurocientista Stevens Rehen, da UFRJ e do IDor, utilizou minicérebros para demonstrar que o zika realmente afeta células do sistema nervoso e inibe seu crescimento, ocasionando a síndrome congênita associada à infecção pelo vírus, que causou a microcefalia e diversos outros problemas de saúde em bebês.

"Essa foi a primeira vez que o modelo dos organoides foi utilizado para entender uma doença viral", lembra Guimarães.

As vantagens

Nas últimas décadas, culturas de células e cobaias foram os principais meios para realizar os estudos preliminares com candidatos a remédios ou vacinas. A proposta estava em entender como essas novas moléculas agem numa escala menor e mais controlada antes de partir para os testes clínicos, que envolvem seres humanos.

Essas metodologias também permitem compreender como determinada doença afeta o organismo, mesmo que de maneira simplificada.

Mas as alternativas mais antigas trazem uma série de limitações, a começar por sua própria simplicidade, que não reproduz as mesmas características da vida real. "Os organoides, por outro lado, são compostos de diferentes células e têm uma estrutura tridimensional. Por isso, eles têm funções mais parecidas ao que acontece de verdade", compara o farmacêutico Kazuo Takayama, professor da Universidade de Kyoto, no Japão.

No caso das cobaias, há ainda uma limitação na quantidade de animais disponíveis para uso em experimentos. "É possível cultivar miniórgãos em laboratório quase que infinitamente, então eles podem ser usados para testes com novos medicamentos em larga escala", completa Takayama.

Conhecimento otimizado

Durante uma pandemia como a que vivemos, essa abordagem moderna também possibilitou acelerar alguns processos e obter informações essenciais com agilidade.

Sem os organoides, o conhecimento sobre a covid-19 demoraria muito mais para ficar disponível. Isso, por sua vez, impediria o avanço da ciência e atrasaria ainda mais a chegada de métodos de diagnóstico, prevenção e tratamento seguros e eficazes.

Vamos a exemplos práticos de como isso ocorreu durante os últimos meses. Diante da emergência sanitária global, muitos especialistas foram avaliar se existia alguma droga já disponível no mercado que poderia combater o vírus ou amenizar seu estrago.

Muitas dessas terapias foram testadas nos organoides. Aquelas que não funcionaram logo de cara foram descartadas. Os remédios que mostraram algum efeito inicial puderam, então, evoluir mais rápido para as próximas fases de pesquisa. Imagina quanto tempo foi economizado com essa triagem inicial?

Mas as aplicações vão muito além da área farmacêutica. Trabalhos feitos no Japão e nos Estados Unidos focaram em minipulmões e descobriram que o Sars-CoV-2 invade e destrói algumas células do sistema respiratório. Isso, por sua vez, pode gerar uma resposta inflamatória muito forte e danosa à própria saúde da pessoa acometida pela infecção.

"De forma geral, os organoides permitiram que entendêssemos que células humanas o coronavírus consegue invadir e usar para se replicar. Nosso grupo demonstrou que isso acontece no intestino, o que ajuda a explicar os sintomas gastrointestinais observados em muitos pacientes", relatam os pesquisadores Joep Beumer e Maarten Geurts, do Instituto Hubrecht, na Holanda.

Outra experiência realizada na Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá, e no Instituto de Biotecnologia Molecular de Viena, na Áustria, construiu vasos sanguíneos em miniatura. A partir daí, foi possível observar que o vírus da covid-19 invade o endotélio (a camada interna de veias e artérias).

Ilustração de um vaso sanguíneo, com células vermelhas, hemácias, e unidades do 

As pesquisas com os miniórgãos permitiram entender quais células o coronavírus invade. Hoje sabe-se que o patógeno pode afetar até os vasos sanguíneos.

Isso tem duas implicações principais. A primeira é a formação de coágulos que bloqueiam a passagem de sangue e podem dar início a infarto, AVC ou trombose. Em segundo lugar, há a suspeita de que, a partir da circulação, o patógeno consegue "vazar" para diversas áreas do corpo e afetar outros órgãos importantes.

As iniciativas não param por aí: nessa mesma linha, trabalhos com organoides continuam a avaliar as pegadas do coronavírus no fígado, nos rins, no coração e no cérebro.

Atuação nacional

No Brasil, dois grupos de pesquisa se debruçam sobre as repercussões da covid-19 no cérebro humano. No IDor, os cientistas utilizaram neuroesferas (um tipo mais simplificado de organoide) para demonstrar que o Sars-CoV-2 gera danos ao sistema nervoso, mas não consegue se replicar e produzir novas cópias virais ali.

Fotografia feita por microscópio apresenta neuroesferas (pontos azuis) e coronavírus (pontos verdes)CRÉDITO,CAROLINA PEDROSA - IDOR

Foto de neuroesferas infectadas pelo Sars-CoV-2. Os pontos azuis são o núcleo das células. O verde é o coronavírus.

Já um trabalho feito na Unicamp avaliou a presença do coronavírus nos astrócitos, um tipo de célula do sistema nervoso. "A invasão viral parece modificar a forma como essas unidades produzem energia, o que impacta o funcionamento dos neurônios", resume Souza.

Essa ação da covid-19 na massa cinzenta pode ser um caminho para explicar os sintomas neurológicos da doença, que chegam a acometer até 30% dos pacientes. Entre as manifestações mais comuns nesta região do corpo estão a perda ou o enfraquecimento de sentidos como olfato e paladar e o aparecimento de quadros de ansiedade e depressão.

Vale mencionar, no entanto, que essa é uma área em constante evolução. As pesquisas são realizadas neste exato momento e é possível que apareçam novidades num futuro próximo.

Os limites

Apesar de tantas vantagens, os organoides não são perfeitos e não permitem encontrar todas as respostas. "Essa é uma área que dá seus primeiros passos e enfrenta desafios importantes. Muitas dessas estruturas são feitas com células que ainda estão imaturas, o que significa que elas não são 100% comparáveis com os órgãos de um adulto", avalia Núria Montserrat Pulido, professora do Instituto de Bioengenharia da Catalunha, na Espanha.

A bioquímica Shuibing Chen, da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, destaca a grande variabilidade entre os modelos de miniórgãos usados pelos grupos de pesquisa. "É preciso padronizar esse material para entender as aplicações de nossos esforços no mundo real", conta.

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O investimento financeiro é outra barreira a ser considerada neste contexto. "Os materiais que usamos são caros e estamos trabalhando para criar sistemas custo-efetivos", completa Chen.

Souza destaca mais um impeditivo: os miniórgãos (ainda) são estruturas isoladas, que não interagem com outros sistemas que compõem o corpo humano. Com isso, não é possível entender como os efeitos do coronavírus nos rins, por exemplo, repercutem no coração ou no intestino. "Quem sabe no futuro não tenhamos diferentes organoides conectados, de maneira que eles interajam no laboratório?", vislumbra.

Se, em seus primeiros passos, os organoides já proporcionaram tanto conhecimento, imagine o que eles poderão fazer quando forem aperfeiçoados.

André Biernath, da BBC News Brasil em São Paulo.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Brasil tem a maior taxa de transmissão de covid-19 desde maio

Segundo a instituição científica britânica Imperial College, 100 pessoas infectadas transmitem a doença para 130 no país. É o maior ritmo de contágio em seis meses e reverte queda recente


Ministro da saúde, Eduardo Pazuello, ao lado do presidente Bolsonaro.ADRIANO MACHADO / REUTERS
O Centro de Controle de Epidemias do Imperial College, instituição científica de Londres, divulgou que o Brasil alcançou nesta semana a maior taxa de transmissão da covid-19 desde maio. O chamado ritmo de contágio (RT) chegou a 1,30 segundo os dados do instituto, o que significa que 100 pessoas infectadas transmitem a doença para 130. O número diz respeito à semana iniciada nesta segunda-feira (23) e é o maior detectado pelo College desde a semana do dia 24 de maio, quando estava em 1,31.

Pela margem de erro das estatísticas britânicas, a taxa pode estar entre 0,86 e 1,45. Logo, 100 pessoas infectadas passam o novo coronavírus para no mínimo 86 e, no máximo, 145 pessoas. Segundo os analistas, a ritmo de contágio acima de 1,00 significa que a doença está avançando, uma vez que um doente infecta mais de uma pessoa. Por outro lado, o RT abaixo de 1,00 indica uma diminuição da velocidade da taxa de transmissão.

Segundo o Imperial College, o Brasil passou cinco semanas seguidas, entre setembro e outubro, com o ritmo de contágio abaixo de 1,00. A menor taxa foi registrada há duas semanas (0,68), que coincidiu com a semana na qual houve um problema no sistema de dados do Ministério da Saúde (MS) que, segundo o órgão, atrasou a atualização da pandemia. Na segunda-feira da semana passada (16) o RT ficou em 1,10. Segundo o MS, até esta segunda (23), o Brasil tem 6.087.608 casos confirmados e 169.485 mortes pela covid-19. O país vive uma alta da média de mortes nas últimos dias, chegando a 496 por dia segundo o consórcio de veículos de imprensa, em análise feita com base nos dados oficiais das secretarias estaduais de saúde, quantidade 50% maior que a média há duas semanas.

O mesmo consórcio registrou o aumento considerável na média diária de mortes em três regiões: Sudeste (118%), Centro-Oeste (42%) e Sul (19%). Os dados batem com as estatísticas do Observatório de Síndromes Respiratórias da Universidade Federal da Paraíba, que analisa o ritmo de contágio nos Estados brasileiros. Segundo a UFPB, quatro dos seis Estados com as maiores taxas são de Sudeste ou Sul: São Paulo (1,32), Paraná (1,28), Santa Catarina (1,25) e Rio de Janeiro (1,23).

Alerta nos hospitais

Com o maior ritmo de contágio do Brasil e na região onde a média móvel de mortes mais cresce, São Paulo tem até hoje 1.210.625 casos confirmados e 41.276 mortes pela covid-19. Os dados apresentados na semana passada pelo Governo já chamavam a atenção: casos, internações e mortes vinham de duas semanas de aumento e já eram os maiores em dois meses de registro. O que mais preocupa a equipe de saúde do governador João Doria é a ocupação dos leitos de UTI do Estado. Nos números apresentados ontem pelo Governo, a taxa estava em 47,4% no Estado e 55,2% na Grande SP. Já é uma ocupação 17% maior que a semana passada, que por sua vez era 18% maior do que a anterior. “O vírus não estaciona, ele acelera quando não há cuidado. Nada contra os momentos de alegria, mas estamos perdendo vidas todos os dias no Brasil. Aqueles que querem conviver devem se proteger”, discursou Doria na última quinta-feira (19).

Apesar de minimizar algumas vezes o risco da segunda onda no Estado ao garantir que a nova crise sanitária europeia tem relação com o clima mais frio no hemisfério norte nesta época do ano, a equipe de saúde de Doria tomou providências frente aos aumentos. Na semana passada, o secretário de Saúde, Jean Gorinchteyn, informou a publicação de um decreto que impede a desmobilização de qualquer leito de UTI ou enfermaria destinados à covid-19 para outros atendimentos de todos os hospitais, públicos e privados, e suspende novos agendamentos de cirurgias eletivas. O objetivo é reservar leitos para a covid-19 frente a uma possível alta ainda maior.

“Precisamos entender como essa curva se comportará. Esse decreto nos dá tempo para analisar e tomar medidas mais definitivas”, justificou Gorinchteyn. Nesta segunda-feira (23), o secretário voltou a dizer que “algumas informações ainda estão sendo inseridas no sistema para que possamos analisá-las e, aí sim, instituir medidas de maneira mais efetiva”. O Governo marcou uma entrevista coletiva para reclassificação das regiões paulistas de acordo com o plano de retomada econômica e possível anúncio de novas medidas restritivas para o dia 30 de novembro, um dia após o segundo turno das eleições municipais.

São Paulo não é caso isolado. A taxa de ocupação de leitos de UTI para covid-19 pelo Sistema Único de Saúde (SUS) chegou a 92% na cidade do Rio de Janeiro no domingo. É a maior ocupação desde 12 de junho deste ano, segundo a Secretaria Municipal de Saúde, citou a Agência Brasil. A ocupação dos leitos de tratamento intensivo, que chegou a baixar para 59% em meados de agosto, estava na faixa dos 80% desde o início de novembro. O Ceará, cujo sistema de saúde também se viu pressionado no primeiro semestre, também vive um repique. De acordo com o jornal O Povo, a taxa de ocupação de leitos intensivos em Fortaleza chega a 56%, mas no interior a situação é pior. Na região conhecida como Sertão Central, onde Canindé é uma cidade de referência, a taxa de ocupação é de 90%.

DIOGO MAGRI, EL PAÍS

ONU pede reformas urgentes contra racismo estrutural no Brasil

Alto Comissariado para os Direitos Humanos condena morte de Beto Freitas em Carrefour como ato deplorável e insta governo brasileiro a reconhecer o racismo persistente no país. "É o primeiro passo para combatê-lo."

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos condenou nesta terça-feira (24/11) o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, ocorrido num supermercado Carrefour em Porto Alegre, como "deplorável" e uma triste amostra do racismo estrutural que aflige o país.

Segundo a entidade, a morte do homem negro de 40 anos "é um exemplo extremo, mas infelizmente muito comum, da violência sofrida pelos negros no Brasil".

O crime "oferece uma ilustração nítida da persistente discriminação e racismo estruturais que as pessoas de ascendência africana enfrentam", prossegue Ravina Shamdasani, porta-voz da alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, em comunicado.

"O legado do passado ainda está presente na sociedade brasileira, assim como em outros países. Os negros brasileiros enfrentam racismo, exclusão, marginalização e violência estrutural e institucional, com – em muitos casos – consequências letais. Os afro-brasileiros são excluídos e quase invisíveis das estruturas e instituições de tomada de decisão", destaca o texto.

Beto Freitas foi morto na quinta-feira passada, 19 de novembro, por dois seguranças de uma unidade do Carrefour, dois homens brancos, que o espancaram até a morte no estacionamento do supermercado localizado no bairro Passo D'Areia, na capital gaúcha.

"Esse ato deplorável, que aconteceu tragicamente na véspera do Dia da Consciência Negra no Brasil, deve ser condenado por todos", diz o texto das Nações Unidas.

A porta-voz de Bachelet afirma ainda que o governo brasileiro "tem uma responsabilidade particular de reconhecer o problema subjacente do persistente racismo no país, pois este é o primeiro passo essencial para resolvê-lo".

O apelo veio após o presidente Jair Bolsonaro, dois dias depois do crime, usar linguagem típica de teóricos da conspiração para denunciar o que chamou de tentativa de gerar tensões raciais artificiais no Brasil. Segundo ele, a luta por igualdade ou justiça social mascara uma busca pelo poder.

O vice-presidente Hamilton Mourão, por sua vez, declarou que não existe racismo no país, ao ser questionado se a morte pode ter sido motivada por questões raciais. "Isso é uma coisa que querem importar, isso não existe aqui. Eu digo para você com toda tranquilidade, não tem racismo", disse Mourão no Dia da Consciência Negra, um dia após o crime.

O Alto Comissariado da ONU continua sua declaração afirmando que "o racismo, a discriminação e a violência estruturais contra afrodescendentes no Brasil são documentados por dados oficiais, que indicam que o número de vítimas afro-brasileiras de homicídio é desproporcionalmente maior do que outros grupos", e que negros também são maioria nas prisões brasileiras.

Assim, a entidade pede que a investigação da morte seja "rápida, completa, independente, imparcial e transparente", a fim de assegurar a justiça e a verdade, bem como a devida "reparação" para a família de Silveira Freitas.

Também solicita às autoridades que investiguem quaisquer alegações de uso desnecessário e desproporcional da força contra pessoas que protestam pacificamente após o episódio no Carrefour.

"Este caso e a indignação generalizada que ele provocou destacam a necessidade urgente das autoridades brasileiras de combater o racismo e a discriminação racial em estreita coordenação com todos os grupos da sociedade, especialmente os mais afetados", diz o comunicado.

"Estereótipos raciais profundamente enraizados"

A porta-voz destaca ainda que o Brasil necessita de "reformas urgentes nas leis, instituições e políticas, incluindo ações afirmativas". "Os estereótipos raciais profundamente enraizados, inclusive entre os funcionários da polícia e do judiciário, devem ser combatidos", completa.

"As autoridades também devem intensificar a educação em direitos humanos, a fim de promover uma melhor compreensão das raízes do racismo, e fazer um maior esforço para encorajar o respeito à diversidade e o multiculturalismo, e promover um conhecimento mais profundo da cultura e história dos afro-brasileiros, bem como de sua contribuição para a sociedade brasileira."

Contudo, a ONU observa que, embora o Estado tenha o "dever de prevenir e reparar as violações dos direitos humanos", as empresas, como o Carrefour, também têm a "responsabilidade de respeitar os direitos humanos em todas as suas operações e relações comerciais".

"Essa responsabilidade exige que uma empresa conduza a devida diligência para prevenir, identificar e mitigar os riscos para os direitos humanos, incluindo na contratação de segurança privada", diz a porta-voz, lembrando que o Carrefour faz parte do Pacto Global da ONU, iniciativa para encorajar empresas a adotar políticas de responsabilidade social corporativa e de sustentabilidade.

Dessa forma, a rede de supermercados "deve explicar se – e como – avaliou os riscos para os direitos humanos associados à contratação da empresa, e que medidas tomou para mitigar tais riscos a fim de prevenir uma tragédia como esta", instou a entidade das Nações Unidas.

O Carrefour qualificou a morte de brutal e comunicou que irá romper o contrato com a empresa de segurança e demitir funcionários envolvidos no caso. A empresa também anunciou a criação de um fundo de R$ 25 milhões para combater o racismo.

Os negros representam 56% da população brasileira e também são os que mais morrem, ganham menos e sofrem mais com o desemprego no país. Segundo dados do Atlas da Violência 2020, 75% das vítimas de homicídios no Brasil em 2018 eram negras.

A taxa de homicídios de negros no país subiu de 34 assassinatos por 100 mil habitantes, em 2008, para 37,8, em 2018, um aumento de 11,5% na década, enquanto o número de assassinatos entre não negros caiu 12,9% no mesmo período.

Deutsche Welle, 24.11.2020

Insegurança inflacionária

A inflação estimada para o ano subiu pela 15.ª semana consecutiva, segundo a pesquisa 'Focus'. É uma má notícia para os consumidores.

Pesadelo da maior parte das famílias, a inflação estimada para o ano subiu pela 15.ª semana consecutiva, segundo a pesquisa Focus, uma consulta feita pelo Banco Central (BC) junto a cerca de cem instituições do mercado financeiro. Em um mês a mediana das projeções para 2020 subiu de 2,99% para 3,45%. No mesmo intervalo a alta de preços calculada para o próximo ano passou de 3,10% para 3,40%. São más notícias para os consumidores, especialmente num período de pouco emprego, renda baixa e muita insegurança. Mas o quadro inclui pelo menos um aspecto positivo, ou menos sombrio. Se as expectativas se confirmarem, a inflação, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), continuará abaixo da meta, de 4% neste ano e de 3,75% em 2021.

Com a inflação abaixo da meta, a taxa básica de juros, a Selic, deve ficar em 2% até o fim do ano, segundo a pesquisa Focus divulgada ontem. O superendividado Tesouro Nacional encerrará 2020 carregando juros excepcionalmente baixos. Para o fim de 2021 a projeção indica, no entanto, uma taxa de 3%, 0,25 ponto superior àquela estimada quatro semanas antes.

Essa projeção pode parecer estranha, à primeira vista. No Brasil, como na maior parte do mundo, os dirigentes dos bancos centrais têm-se mostrado dispostos a manter a política de juros baixos e crédito fácil por muito tempo, para dar espaço à recuperação dos negócios e do emprego.

No caso brasileiro, a orientação será mantida, segundo a autoridade monetária, enquanto duas condições forem observadas: 1) a expectativa de inflação deve permanecer compatível com a meta; 2) o Executivo deve manter o compromisso de condução responsável das contas públicas. Deste compromisso dependerá a evolução da dívida bruta.

Dúvidas sobre o compromisso com a responsabilidade fiscal continuam marcando o dia a dia do mercado. As preocupações aparecem na oscilação dos juros e, de modo mais sensível, na instabilidade cambial. O dólar tem estado mais barato do que até recentemente, mas sem sinal de acomodação. A cotação da moeda americana caiu, na manhã de ontem, mas em seguida subiu, depois de uma fala do ministro da Economia, Paulo Guedes. A fala, segundo fontes do setor financeiro, decepcionou quem esperava alguma indicação positiva sobre as condições fiscais em 2021.

A cobrança de sinais mais claros sobre a condução das finanças públicas tem sido feita, de modo muito diplomático, também pelo presidente do BC, Roberto Campos Neto. Executivos do mercado financeiro também têm mostrado inquietação diante do cenário fiscal obscuro. O Orçamento federal do próximo ano continuava indefinido ontem. Não se sabia se a programação financeira do poder central para 2021 estará mais clara no fim de novembro.

A incerteza sobre as contas públicas pode afetar perigosamente as expectativas de inflação. A instabilidade cambial é uma das formas de transmissão da insegurança para os preços. O efeito inflacionário da alta do dólar tem sido facilmente observado. Mas o desajuste das contas fiscais pode afetar os preços de forma ainda mais desastrosa.

Um amplo desarranjo das finanças oficiais pode produzir, nos casos mais graves, a chamada dominância fiscal. Quando isso ocorre, o aperto da política monetária pelo BC deixa de funcionar como remédio para a inflação. Pior que isso: produz o efeito contrário.

Uma elevação de juros pode normalmente gerar duas consequências, a contenção de preços e o encarecimento da dívida pública. Em situações de dominância fiscal, a desconfiança crescente em relação à dívida afeta o fluxo de recursos, mexe no câmbio e realimenta a inflação. O aperto monetário deixa de funcionar como instrumento de ajuste e se converte em fator inflacionário, gerando uma situação descrita por alguns economistas como o pior dos mundos. Não há, até agora, dominância fiscal no Brasil. Mas sobram razões para o governo se comprometer claramente com a seriedade fiscal e com o controle da dívida, deixando em segundo plano os objetivos pessoais do presidente da República.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 24.11.2020

Partido idealizado por Bolsonaro não obtém 10% de apoio

Lançado há um ano, Aliança pelo Brasil ainda é uma incógnita; brigas internas podem inviabilizar sigla que abrigaria presidente

Lançado em novembro do ano passado para ser o partido de Jair Bolsonaro, o Aliança pelo Brasil ainda é uma incógnita e ninguém arrisca dizer se, de fato, o projeto sairá do papel para abrigar a candidatura à reeleição do presidente, em 2022. Nem ele próprio, que já admite a possibilidade de se filiar a outra sigla em março de 2021.

Até agora, o Aliança conseguiu apenas 10% das assinaturas necessárias para impulsionar o projeto de Bolsonaro. O presidente deixou o PSL, legenda pela qual se elegeu, há um ano, após muitas disputas pelo controle da máquina partidária e de seus recursos. Não teve força, porém, para pôr de pé a nova legenda.

“Não é fácil formar um partido hoje em dia. A gente está tentando, mas, se não conseguir, a gente em março vai ter uma nova opção”, afirmou Bolsonaro, nesta segunda-feira, 23, ao chegar ao Palácio da Alvorada, e responder a perguntas de uma mulher que disse fazer parte do Aliança pelo Brasil em União da Vitória, no Paraná.

Bolsonaro participa, por vídeo, de reunião do Aliança, em fevereiro; presidente já admitiu que pode escolher outra legenda caso partido não vingue Foto: TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO

No papel, Bolsonaro é o presidente do Aliança. O advogado Luís Felipe Belmonte, vice-presidente do partido, disse que continua trabalhando para deixar a legenda pronta e entregá-la a Bolsonaro a tempo da campanha por um novo mandato. Belmonte afirmou, no entanto, que ele pode optar por outro partido.

“A única orientação que eu tenho dele (Bolsonaro) é para fazer o partido ficar pronto. Continuo com o mesmo propósito, mas, se depois de pronto ou até antes disso, tiver outra opção, eu não sei dizer porque é uma questão de conveniência política dele”, disse Belmonte ao Estadão. “A tendência é de que, ele tendo um partido próprio, esteja nesse partido”, emendou.

Legendas como Progressistas, PSL, Republicanos, PTB, Patriota e PL já acenaram ao chefe do Executivo. Caso Bolsonaro decida por um deles, e o Aliança se torne realidade depois, a nova sigla estará na base de apoio. “Não há nenhuma (chateação). Estamos criando um partido conservador, para abrigar pessoas com esses princípios que defendemos. Se, de repente, o presidente fizer outra opção, o Aliança será um partido aliado no grupo”, observou o advogado.

Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o Aliança tem validadas, até hoje, 42.730 assinaturas das 492 mil necessárias. Ainda de acordo com a Justiça Eleitoral, o partido possui 103.482 fichas que precisam ser finalizadas para que sejam submetidas à apreciação do tribunal. Outras 5.010 aguardam análise e 6.548 entraram recentemente no sistema. Ao todo, 38.070 apoiadores foram rejeitados, incluindo 87 eleitores mortos e 24.680 filiados a outras siglas.

Belmonte disse que a pandemia do coronavírus atrapalhou a coleta de assinaturas e estipulou 31 de janeiro como nova data limite. Afirmou, no entanto, que já enviou ao sistema do TSE 180 mil fichas que estão à espera de verificação. No último fim de semana, de acordo com ele, o Aliança conseguiu coletar mais 40 mil assinaturas. Ao ser lançado, em 21 de novembro de 2019, dirigentes do novo partido previam que até março deste ano seria possível obter o apoio necessário para torná-lo viável a tempo de concorrer às eleições municipais.

Apoiadores de Bolsonaro que participaram da fundação do Aliança também colocaram em dúvida o futuro da legenda e citaram desentendimentos internos como um sinal de que o projeto pode naufragar. O Estadão apurou que Belmonte e o secretário-geral do Aliança, o advogado Admar Gonzaga, têm divergências com a advogada Karina Kufa, tesoureira do partido.

“Podemos dizer que hoje temos uma certa unidade de procedimentos e entendimentos. Todos remam na mesma direção. As divergências são operacionais, mas já estão solucionadas”, minimizou Belmonte.

O deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), entusiasta do Aliança, disse que, se o partido for criado a tempo, lançará Bolsonaro à reeleição. “Seguimos trabalhando, mas sem saber se será o partido do presidente, em 2022. Se for criado, com certeza o presidente vai querer. Se não, já tem o plano B e o plano C também”, afirmou. Em agosto, Bolsonaro chegou a admitir até mesmo voltar para o PSL.

Jussara Soares, O Estado de S.Paulo / 24.11.2020

Uninove oferece bolsas integrais de mestrado em Direito

Estão abertas as inscrições para o mestrado em Direito da Universidade Nove de Julho (Uninove), com prazo máximo no próximo dia 2 de dezembro.


Campus da Uninove na Barra Funda (SP)Wikimedia Commons

As bolsas de estudo são integrais, nas áreas de concentração Justiça, Empresa e Sustentabilidade, sobre as linhas de pesquisa de Justiça e o Paradigma da Eficiência ou Empresa, Sustentabilidade e Funcionalização do Direito. A dedicação à produção de conhecimento é exigida em troca.

No site da Uninove, é possível acessar o edital do processo de seleção, a ficha de inscrição e outras informações complementares. (https://www.uninove.br/mestrado-e-doutorado/mestrado-em-direito/bolsa-de-estudos/ )

Consultor Jurídico

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Brasil tem mais 302 mortes ligadas à covid-19

País já soma mais de 169,4 mil óbitos em decorrência do coronavírus. Em 24 horas, 16 mil casos são registrados, elevando total de infectados para 6,08 milhões.

Funcionários de cemitério em São Paulo dispõem caixão em cova

O Brasil registrou oficialmente 302 mortes ligadas à covid-19 e 16.207 casos confirmados da doença nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados nesta segunda-feira (23/11) pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Com o novo número, o total de infectados no país vai a 6.087.608, enquanto o total de óbitos chega a 169.485. Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

São Paulo é o estado brasileiro mais atingido pela epidemia, com 1.210.625 casos e 41.276 mortes. O total de infectados no território paulista supera os registrados na maioria dos países do mundo, exceto Estados Unidos, Índia, França, Rússia, Espanha, Reino Unido, Itália, Argentina e Colômbia.

Minas Gerais é o segundo estado com maior número de casos, somando 398.014, seguido de Bahia (386.321), Rio de Janeiro (338.688), Santa Catarina (327.961) e Rio Grande do Sul (298.670).

Já em número de mortos, o Rio é o segundo estado com mais vítimas, somando 22.028 óbitos. Em seguida vêm Minas Gerais (9.794), Ceará (9.492), Pernambuco (8.926) e Bahia (8.123).

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 80,7 no Brasil, uma das mais altas do mundo – só fica abaixo dos índices registrados na Bélgica (136,74), Peru (111,13), Espanha (91,21), Argentina (83,16), Reino Unido (82,90) e Itália (82,45), desconsiderando os países nanicos San Marino e Andorra.

A cifra brasileira também supera a dos EUA (78,49), nação mais atingida pela pandemia no planeta.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 12,3 milhões de casos, e da Índia, com 9,1 milhões. Mas é o segundo em número de mortos, depois dos EUA, onde morreram mais de 257 mil pessoas.

A Índia, que chegou a impor uma das maiores quarentenas do mundo no início da pandemia e depois flexibilizou as restrições, é a terceira nação com mais mortos, somando 133 mil.

Ao todo, mais de 59 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus no mundo, e 1,39 milhão de pacientes morreram em decorrência da doença.

Deutsche Welle


Governo Biden começa a tomar forma

Antony Blinken será nomeado secretário de Estado, e John Kerry será enviado especial para o clima. Equipe democrata ainda anuncia primeira mulher para chefiar inteligência e primeiro latino para imigração.

O presidente eleito Joe Biden (à direita) e o ex-secretário de Estado John Kerry

A menos de dois meses de assumir a Casa Branca, o presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, indicou nesta segunda-feira (23/11) alguns dos principais nomes de seu futuro governo, entre eles o assessor de política externa de longa data Antony Blinken como secretário de Estado.

A equipe de transição de Biden também anunciou John Kerry, ex-secretário de Estado do governo Barack Obama, como enviado especial para o clima.

O advogado nascido em Cuba Alejandro Mayorkas será o primeiro latino a chefiar o Departamento de Segurança Interna, que supervisiona a imigração. E Avril Haines, ex-vice-diretora da CIA, será a primeira mulher a ocupar o cargo de diretora de inteligência nacional.

O presidente eleito também indicou a diplomata de longa data Linda Thomas-Greenfield como embaixadora americana nas Nações Unidas, que tem status de membro do gabinete.

Jake Sullivan, que foi assessor de segurança de Biden quando ele era vice-presidente de Obama, foi escolhido como conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca.

"Esses funcionários começarão a trabalhar imediatamente para reconstruir nossas instituições, renovar e reimaginar a liderança americana [...] e enfrentar os desafios definidores de nosso tempo – de doenças infecciosas ao terrorismo, proliferação nuclear, ameaças cibernéticas e mudanças climáticas", diz um comunicado da equipe de transição.

Citando fontes próximas a Biden, agências de notícias afirmaram que o presidente eleito nomeará ainda a ex-presidente do banco central americano (Federal Reserve, ou Fed) Janet Yellen como secretária do Tesouro. Ela não está entre os nomes anunciados pela equipe democrata, mas se for confirmada – e aprovada em seguida pelo Senado – será a primeira mulher a assumir esse cargo nos EUA.

Todos os seis indicados pela gestão democrata nesta segunda-feira são veteranos do governo Obama-Biden, entre 2009 e 2017, e têm grande experiência em suas respectivas áreas.

Kerry, que foi chefe da diplomacia americana entre 2013 e 2017 e assinou o acordo climático de Paris em 2015 em nome dos EUA – apenas para ver Donald Trump se retirar dele – será membro do Conselho de Segurança Nacional, que pela primeira vez terá um especialista em mudança climática. A indicação segue a promessa de Biden de combater o aquecimento global.

Já o ex-promotor federal Mayorkas, futuro secretário de Segurança Interna, foi diretor dos Serviços de Cidadania e Imigração dos EUA e, em seguida, ocupou o cargo de vice-secretário de Segurança Interna no governo Obama.

Sullivan, que assumirá o Conselho de Segurança Nacional, foi diretor da Equipe de Planejamento de Políticas do Departamento de Estado e subchefe de gabinete da então secretária de Estado Hillary Clinton, tendo sido o principal representante americano nas primeiras negociações para o acordo nuclear com o Irã, do qual Trump também retirou os Estados Unidos.

Blinken, futuro secretário de Estado, é ex-número dois do Departamento de Estado e assessor de longa data. Como chefe da diplomacia, ele deverá liderar um desmantelamento acelerado das políticas de "América em primeiro lugar" de Trump, incluindo o retorno ao Acordo de Paris e à Organização Mundial da Saúde (OMS), bem como ressuscitar o pacto iraniano.

"Não temos tempos a perder quando se trata de nossa segurança nacional e política externa", afirma o comunicado da equipe de Biden. "Esses indivíduos são tão experientes e testados em crises quanto são inovadores e criativos", acrescentou.

As escolhas sublinham uma ênfase em profissionais que Biden conhece bem, em contraste com a Casa Branca de Trump, em que os membros do governo eram frequentemente escolhidos sem ter uma formação ou carreira tradicional para o cargo – com alguns se mostrando incompatíveis e deixando suas funções num clima de desavença com o presidente.

Os anúncios desta segunda-feira, que antecedem a formalização dos nomes na terça, vêm num momento em que Trump se recusa a reconhecer a derrota nas eleições de 3 de novembro e bloqueia o acesso de Biden ao processo habitual de transição.

Deutsche Welle