segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Os 74 milhões que votaram em Trump

Temos quatro anos para entender por que metade dos americanos ainda apoia o presidente republicano

Por Moisés Naím

Na recente eleição dos Estados Unidos, votou o maior número de pessoas em 120 anos. Quase 80 milhões votaram em Joe Biden e mais de 74 milhões, em Donald Trump. Eles se tornaram os dois políticos mais votados em toda a história do país. Imaginava-se que a pandemia e a campanha de Trump, prognosticando fraudes eleitorais, aumentariam a abstenção. Não foi o que ocorreu. Sessenta e sete por cento dos registrados votaram pessoalmente ou pelo correio.

A outra surpresa foram os 74 milhões de pessoas que votaram em Trump – 10 milhões a mais do que em 2016. Surpreenderam por causa daquilo pelo qual eles não importaram, e também por aquilo que importou. Por exemplo, eles não se importaram em votar em um presidente que mente de maneira constante e facilmente verificável. Mentir de modo compulsivo e comprovado não deveria ser suficiente para derrotá-lo nas urnas? Setenta e quatro milhões de americanos acham que não. Eles não acreditam que Trump seja um mentiroso, ou não se importam com isto, ou têm necessidade e esperanças mais importantes para eles do que a honestidade.

O fato de 26 mulheres terem se atrevido a se identificar publicamente e denunciar Trump por violência sexual, e que algumas o acusem de tê-las estuprado, não deveria ter feito com que ele perdesse o voto feminino? Não basta o vídeo do programa Access Hollywood, no qual Trump diz ao apresentador Billy Bush que “ser famoso permite que você faça o que quiser com as mulheres, inclusive agarrar sua genitália”? Não. Cerca da metade das mulheres brancas votou em Trump.


Apoiadores de Donald Trump em manifestação em Washington   Foto: Jacquelyn Martin/AP

Mas e se os 74 milhões não se importam com as múltiplas denúncias de assédio sexual contra o presidente, não deveriam importar-se com a saúde do planeta? Parece que não. Trump denunciou a luta contra o aquecimento global como uma armadilha da China para debilitar a economia americana. 

As decisões do presidente foram devastadoras para o meio ambiente. E muito lucrativas para as empresas mais poluidoras e para os lobistas que as representam. Importa aos eleitores de Trump que ele tenha nomeado para os principais cargos que deveriam regular as indústrias poluidoras os lobistas que representam essas mesmas indústrias? Obviamente, não.

Importa que o governo Trump seja caótico e inepto e tenha administrado mal a pandemia? Não parece. Os 74 milhões também não se importam com o fato de dois importantes documentos continuarem sigilosos: a declaração de renda de Trump e sua política sanitária. O que há na declaração para o presidente fazer tantos esforços para mantê-la fora do escrutínio público? Os eleitores não deveriam saber quais são os compromissos financeiros do presidente e com quem? Não deveriam saber se o presidente é um sonegador de impostos?

O outro documento que não aparece é o plano de Trump para a saúde. O presidente se dedicou a desmontar a política sanitária de Barack Obama, e prometeu reiteradamente que a substituiria por “algo muito melhor”. Os operadores políticos do presidente ofereceram uma montanha de documentos confusos, mas até agora não revelaram os detalhes do que seria este “melhor”. 

O que está claro é que eliminar a reforma sanitária de Obama sem ter com o que substituí-la será muito prejudicial para os cidadãos. Inclusive, evidentemente, para os 74 milhões que votaram nele. Ou eles não sabem disso, ou não acreditam nisso ou não se importam.

A lista de razões pelas quais não se devia votar em Trump é grande. Sua recusa em denunciar com firmeza os odiosos supremacistas brancos. Sua falta de interesse em enfrentar o racismo institucionalizado. Seus minguados sucessos na política exterior e o fato de ter cedido espaços de poder à China e à Rússia. Seus extensos conflitos de interesse. O seu autoritarismo e a maneira como minou a democracia americana. Nada disso parece importar aos 74 milhões.

Mas então, o que importa para eles? O que os leva a apoiar Trump de maneira tão incondicional? Muitas coisas. Desde o concreto (“Não subam os meus impostos”) até o espiritual (“Trump entende o que eu sinto”). Do positivo (“Vamos fazer a América grande outra vez”) ao negativo (“Se Biden ganhar, os negros invadirão os bairros da classe média”). Da defesa dos direitos (o porte de armas) à defesa de valores (“sou contra o aborto”). Desde o repúdio da imigração ilegal (“viva o muro com o México”), à oposição à globalização econômica (“quero fábricas e empregos aqui, não na China”).

A demografia dos 74 milhões é variada e confusa. Inclui significativas porcentagens de hispanos, da população rural, de homens brancos sem formação universitária. De grupos evangélicos, empresários, operários e muitas outras categorias. 

Os condados em que Biden ganhou, por exemplo, geram 70% da atividade econômica dos EUA, enquanto os que votaram majoritariamente em Trump geram apenas 30%. O fato de os institutos de pesquisa não terem antecipado o comportamento dos 74 milhões confirma que não sabemos o que, na realidade, determina seu apoio incondicional a Donald Trump. Teremos quatro anos para averiguar. / 

Moisés Naím, escritor venezuelano, é membro do Carnegie Endowment, nos Estados Unidos. Este artigo foi publicado originalmente no Brasil em O Estado de São Paulo, edição de 23.11.2020. Tradução de Ana Capovilla.

domingo, 22 de novembro de 2020

Por que os latino-americanos estão desencantados com a democracia

Geração ‘millenial’ e classes mais abastadas antecipam uma decepção, mais do que uma rejeição frontal, com o sistema democrático.

A democracia, outrora um farol com o qual o Ocidente pretendia iluminar o mundo, está perdendo adeptos. E a América Latina não é exceção. Não falamos (somente) dos líderes autoritários que florescem no continente assim como no resto do mundo, mas também daqueles que decidiram segui-los em seu desapego. O último Latinobarômetro delimitou a extensão do desencantamento: o apoio à democracia não chega à metade dos cidadãos do continente.

O complementar Barômetro das Américas confirma o panorama: na última década, o percentual de pessoas que têm certeza de que a democracia não é o melhor sistema de governo possível aumentou, mas também, e principalmente, cresceu o número daqueles com posições mais indeterminadas. O dado desagregado por países confirma que é aí, na indiferença, onde a maioria está instalada, com poucas exceções (Argentina, Uruguai, Costa Rica). As nações mais populosas do continente, Brasil e México, abrigam milhões de habitantes que se movimentam no amplo espectro do desencanto. Não surpreende que ambos tenham escolhido recentemente presidentes dispostos a atacar consensos e instituições para consolidar seu poder e o dos seus. No Brasil, 16% da população discorda que a democracia seja o melhor sistema político, e 50% está em cima do muro.

A avaliação da democracia se instala assim na ambiguidade, mais do que na rejeição visceral. Os protagonistas do desencanto são principalmente jovens e de pouco poder aquisitivo. Ambos os grupos mostram uma probabilidade substancialmente menor de manter uma clara preferência pela democracia do que seus pares mais velhos e em melhor situação econômica.

No entanto, são precisamente as classes mais abastadas que estão perdendo mais entusiasmo pela democracia. Também os millennials (nascidos depois de 1980, incluindo os primeiros centennials de meados da década de noventa).

Essas quedas são particularmente alarmantes porque abrigam a capacidade de mudar o ponto de encontro entre oferta e demanda eleitoral. As elites econômicas têm maior capacidade de definir a agenda e moldar o futuro de nossas instituições. Para moldar, em resumo, a oferta política. Por seu lado, aqueles que são jovens hoje se tornarão o centro da demanda amanhã, decidindo com seus votos se desejam um modelo alternativo ao da democracia pluralista.

Podemos representar as opiniões daqueles que estão desencantados com a democracia: respeitam menos essas mesmas instituições, principalmente os partidos políticos, veem mais corruptos entre os líderes do que no resto dos cidadãos e carregam certo viés autoritário, conservador.

Mas, embora os críticos com democracia nascidos depois de 1980 mantenham todas essas características, existem outros que são menos proeminentes entre eles e questionam alguns mitos.

Não se apreciam expectativas econômicas piores do que entre o conjunto dos democéticos. Mesmo a ausência de interesse político, embora estruturalmente presente, é menor nas novas gerações de desconfiados do que nas velhas. Algo semelhante acontece com as classes mais abastadas.

O que está acontecendo, então, para que se instale o desencanto sistêmico entre as novas gerações? Para os cientistas políticos Yascha Mounk e Roberto Roa, que trabalharam a questão da erosão dos valores democráticos como poucos em sua disciplina, talvez estejamos diante de uma visão incompleta devido à ausência de referências: já que essas gerações têm menos experiência com regimes autoritários do que as anteriores, não valorizam na mesma medida as vantagens de viver sob uma democracia. Se isso for verdade, deveríamos observar um maior diferencial de desencanto ou ambiguidade entre os nascidos antes e depois de 1980 nos países com transições mais antigas.

Existe, de fato, certa correlação entre o tempo que cada nação tem de eleições livres ininterruptas e o plus de ceticismo com a democracia demonstrado pelas novas gerações. A fragilidade da relação sugere, no entanto, que tem de haver algo mais.

Esse “algo mais” não parece ser uma radicalização das posições: segundo os dados do próprio Barômetro, os nascidos de 1980 em diante têm opiniões menos extremas sobre o aborto, o casamento igualitário e inclusive a luta contra a desigualdade do que essa mesma geração em 2012.

Mas talvez o que esteja acontecendo seja um pouco menos espetacular, mas potencialmente tão perigoso quanto. O descontentamento com a falta de resposta do sistema às demandas não incorporadas sempre esteve presente na América Latina, um continente onde o presidencialismo elitista e a desigualdade produziram democracias pouco inclusivas, de acesso restrito. Essa pulsão não desapareceu, mas talvez a ela tenha se juntado outra, aparentemente contraditória: uma espécie de preferência pela ordem sobre o conflito.

O Barômetro das Américas pergunta aos entrevistados sobre até que ponto estão de acordo com algo tão básico quanto conceder o direito de voto àqueles que são críticos do sistema de governo. Essa questão permite medir o grau de tolerância que cada indivíduo tem em relação à crítica extrema.

Acontece que aqueles que demonstram um maior desencanto com a ideia explícita de democracia também são mais favoráveis à manutenção dos direitos de voto dos críticos. Provavelmente porque eles se veem como parte desse grupo. Esses “democratas paradoxais”, que desconfiam da democracia atual, entrariam na categoria do descontentamento perene, inevitável até que os regimes se tornem mais inclusivos. Também estão aqui os segmentos de autoritarismo puro: aqueles que rejeitam a democracia em termos abstratos e concretos, que disputam o direito de voto da oposição. É impossível para eles incorporá-los à alternância de poder, porque apenas aspiram a suprimi-la. Mas é o grupo intermediário que mostra um comportamento mais sugestivo e consistente: indiferentes à democracia como conceito e indiferentes também com o direito de voto dos críticos extremos. Para uma maioria relativa de latino-americanos, a possibilidade de canalizar o conflito não é uma prioridade. O mais preocupante é, novamente, a coincidência desse padrão entre as novas gerações e as classes mais abastadas.

Porque, e se estamos assistindo ao nascimento de uma geração que anseia por ordem, funcionalidade? O autoritarismo seria então um subproduto, mais do que uma reivindicação central. O modelo chinês vem à mente: uma ditadura que, aos olhos do mundo, foi capaz de criar bem-estar para a maioria, embora em troca de um (enorme) custo para as minorias. Talvez seja esse o tipo de espelho em que os desencantados se refletem: uma ‘morte doce’ do pluralismo. ‘Doce’, é claro, apenas na aparência, e apenas para aqueles segmentos da população dispostos a consolidar sua boa posição diante da supressão do conflito formalizado. O continente tem vasta experiência com líderes que oferecem melhorias para a maioria em troca de que a população renuncie ao direito de votar contra. Videla, Pinochet, Chávez, Fujimori e Castro, entre muitos outros, fizeram carreira com essa ideia. Não faria mal, à luz desses dados, refrescar a memória com o que acaba acontecendo quando um ditador promete harmonia.

JORGE GALINDO, EL PAÍS

Trump perde feio nas urnas e na Justiça, mas segue inspirando mau exemplo no Brasil

Juiz rejeita pedido do presidente para anular milhões de votos na Pensilvânia. Magistrado apontou que ação de advogados de Trump era um "Monstro de Frankenstein" repleta de "acusações especulativas" e "sem mérito".

Republicano vem se recusando a aceitar derrota para Joe Biden

Um juiz da Pensilvânia rejeitou na noite de sábado (21/11) uma ação da campanha de Donald Trump para anular milhões de votos enviados pelo correio no estado americano. A decisão é mais um duro golpe nas tentativas do republicano de reverter sua derrota na eleição presidencial.

Ao rejeitar o pedido, o juiz ainda criticou as afirmações do advogados de Trump, que vêm apresentando ações em todo o país alegando que o presidente foi vítima de fraude eleitoral. O juiz Matthew Brann, de Williamsport, disse que a ação da equipe de Trump continha "argumentos legais forçados, sem mérito, e acusações especulativas". "Nos Estados Unidos, isso não pode justificar a privação do direito ao voto nem mesmo de um único eleitor", escreveu Brann. "Nosso povo, leis e instituições exigem mais."

Na sua decisão o juiz Brann ainda disse que o processo, assim "como o Monstro de Frankenstein", parecia ter sido "remendado ao acaso".

A rejeição da ação deve abrir caminho  para que a Pensilvânia certifique a vitória do democrata Joe Biden no estado. O anúncio oficial do resultado deve ocorrer na segunda-feira. A Pensilvânia foi um estado decisivo para que Biden ultrapassasse a marca de 270 votos necessários no colégio eleitoral para conquistar a Presidência. O democrata ficou à frente de Trump por 81 mil votos na Pensilvânia.

"Isso deve colocar o prego no caixão para qualquer outra tentativa do presidente Trump de usar os tribunais federais para reescrever o resultado das eleições de 2020", disse Kristen Clarke, presidente do Comitê de Advogados para os Direitos Civis nos Termos da Lei.

O revés na Pensilvânia também provocou reações entre membros do Partido Republicano, que começam a abandonar o presidente. O senador republicano Pat Toomey disse que a decisão anula qualquer chance de uma vitória legal na Pensilvânia e pediu a Trump que reconheça a eleição de Biden. Liz Cheney, membro da liderança republicana na Câmara dos Representantes, por sua vez, já havia pedido anteriormente para que Trump respeitasse "a santidade de nosso processo eleitoral" caso não tivesse sucesso no tribunal.

Derrotas nos tribunais e vexames

Com a posse de Biden, dia 20 de janeiro, cada vez mais próxima, a equipe de Trump tem intensificado seus esforços para tumultuar ou atrasar o calendário eleitoral de vários estados, numa tentativa de impedir que o democrata seja certificado como vencedor. No entanto, a estratégia tem fracassado até agora. Os advogados de Trump vem acumulando derrota atrás de derrota em vários tribunais.

Nos últimos dois dias, Trump sofreu ainda dois revezes em dois estados-chave. As primeiras notícias negativas para Trump vieram da Geórgia, quando o secretário de Estado, Brad Raffensperger, anunciou que uma recontagem manual e auditoria de todas as cédulas lançadas no Estado apontaram pela segunda vez a vitória de Biden. O ex-vice-presidente se tornou o primeiro democrata a vencer na Geórgia desde 1992. Os resultados, certificados pelo secretário do Estado da Geórgia deram a Biden 2,47 milhões de votos, contra 2,46 milhões de votos de Donald Trump.

Horas depois, uma delegação de republicanos de Michigan, que se reuniu com Trump na Casa Branca, disse não ter nenhuma informação "que mudaria o resultado da eleição em Michigan". Biden venceu Trump no estado por quase três pontos percentuais, abocanhando mais 16 votos no colégio eleitoral.

No Colégio Eleitoral, que determina o vencedor, Biden obteve 306 votos -muito acima dos 270 necessários - e Trump 232.

Além de derrotas nos tribunais, os advogados de Trump também têm acumulado episódios vexaminosos. Na quinta-feira, numa coletiva de imprensa, o advogado pessoal do presidente Donald Trump, Rudolph Giuliani acusou o bilionário George Soros de ter conspirado com os democratas para dar a vitória a Joe Biden. Outra advogada, Sidney Powell, chegou a acusar o falecido líder venezuelano Hugo Chávez de estar por trás de um plano para fraudar as eleições nos EUA. Mas o que mais chamou a atenção na coletiva foi o líquido escuro que escorreu sobre o rosto de Giuliani enquanto ele falava: uma mistura de suor com tintura de cabelo.

Antes disso, poucos dias após o pleito de 3 de novembro, o advogado pessoal de Donald Trump, Rudolph Giuliani, organizou uma coletiva de imprensa no pátio de uma empresa de jardinagem da Filadélfia para denunciar uma "fraude generalizada" nas eleições na Pensilvânia. Ele arregimentou supostas testemunhas de fraudes, que falaram aos jornalistas. Mais tarde, foi revelado que uma delas nem sequer era residente na Pensilvânia. Para piorar, a tal testemunha tinha ficha criminal, acumulando uma condenação em Nova Jersey por se expor sexualmente para crianças.

Últimos esforços

Apesar dos revezes, os republicanos de Trump ainda tentam reverter resultados em alguns estados. No estado de Wisconsin, a equipe de Trump pagou por uma recontagem parcial, embora as autoridades eleitorais estaduais tenham dito que isso provavelmente só aumentará a vantagem de 20 mil votos de Biden no estado, que tem 10 votos no Colégio Eleitoral. Segundo veículos da imprensa americana, observadores republicanos têm tumultuado a recontagem, contestando quase todos os votos que estão sendo recontados, como forma de atrasar o processo, que deve ser encerrado até no máximo 1 de dezembro. O atraso pode abrir caminho para que Trump conteste o resultado na Justiça.

Os republicanos também solicitaram no sábado um adiamento da certificação em Michigan com o argumento de que ocorreram irregularidades no estado. O conselho de certificação de resultados de Michigan, composto por dois democratas e dois republicanos, deve se reunir na segunda-feira.

Os republicanos pedem um adiamento de duas semanas na reunião para permitir uma auditoria completa dos resultados do condado de Wayne, o maior do estado e onde fica Detroit, cidade de maioria negra, vencida com folga por Biden.

Cada vez mais isolado, Trump também tem apelado cada vez mais para a divulgação de notícias sem comprovação nas suas redes sociais para tentar propagar a ideia de que a eleição foi marcada por fraudes. Na noite de sexta-feira, ele chegou a retuitar  uma entrevista do ativista bolsonarista Allan dos Santos ao canal de TV pró-Trump One America News Network. Santos é um dos investigados pelo Supremo Tribunal Federal no inquérito das fake news e um costumaz propagador de boatos na internet.

Em um inglês precário, Santos disse ao canal que identificou fraudes na eleição americana, mas nem ele nem o canal apresentaram provas. O Twitter inseriu na publicação de Trump um alerta de que as informações divulgadas na publicação são duvidosas.

Nos últimos dias, Trump também vem afirmando com insistência que é o verdadeiro vencedor do pleito, mesmo com Biden tendo acumulado mais delegados no Colégio Eleitoral e 6  milhões de votos populares a mais que o republicano. Trump também tem tumultuado o processo de transição, se recusando a compartilhar dados com a equipe de Biden.

Paralelamente, Trump também celebrou os bons resultados do Partido Republicano na eleição para a Câmara dos Representantes, mas neste caso evitou apontar qualquer suspeita de fraude no pleito.

Não é a primeira vez que Trump recorre a esse tipo de tática sem qualquer base. Em 2016, ele venceu no Colégio Eleitoral, mas perdeu no voto popular para Hillary Clinton. Com o ego ferido, disse que os democratas haviam arregimentado milhões de imigrantes ilegais para votar. Uma comissão foi formada pelo seu governo para investigar. Nenhuma evidência de irregularidade foi encontrada, e o colegiado foi extinto em 2018.

Oficialmente, o vencedor da eleição só é anunciado em 14 de dezembro, quando os delegados de todos os 50 estados se reúnem em Washington no Colégio Eleitoral para confirmar os resultados estaduais.

Não há nos EUA um órgão central que compile os resultados estaduais. Normalmente, o resultado é projetado logo após o pleito pela imprensa e institutos de pesquisa, que compilam dados das autoridades eleitorais estaduais. O anúncio do desfecho da eleição é facilitado quando um dos lados concede a derrota – o que não vem sendo o caso com Trump.

Deutsche Welle.

Nota do editor do blog. O titulo original desta matéria é "Trump sofre novo revés judicial em tentativa de reverter derrota".

Brasil registra mais 194 mortes por covid-19

Número total de infectados passa de 6 milhões. Mortes chegam a 169 mil.

O Brasil registrou 18.615 novos casos confirmados de coronavírus e 194 mortes ligadas à covid-19 nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) neste domingo (22/11). Os novos números elevam o total de infectados para 6.071.401, enquanto o de óbitos chega a 169.183.

O Conass não divulga o número de pessoas recuperadas. Segundo o Ministério da Saúde, 5.429.158 pessoas haviam se recuperado da doença no sábado.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais de casos e mortes devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 80,5 no Brasil, uma das mais altas do mundo. Segundo dados da Universidade Johns Hopkins, dos EUA, o Brasil é a sexta nação com a maior proporção de mortes no mundo, se desconsideradas as micronações europeias San Marino e Andorra.

Neste quesito, o país só está atrás de Bélgica (135,89), Peru (111,13), Espanha (91,21), Argentina (82,94) e Reino Unido (82,30). Está à frente dos EUA (78,20), o país com maior número absoluto de mortos do mundo.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 12,2 milhões de casos, e da Índia, com 9 milhões. Mas é o segundo em número de óbitos, depois dos EUA, onde morreram mais de 256 mil pessoas.

Ao todo, mais de 58,5 milhões de pessoas contraíram o coronavírus no mundo, enquanto mais de 1,38 milhão morreram em decorrência da doença, segundo contagem mantida pela Universidade Johns Hopkins.

Deutsche Welle

sábado, 21 de novembro de 2020

Brasil registra mais 376 mortes por covid-19

Número total de infectados passa de 6 milhões. Mortes chegam a 168 mil.


O Brasil registrou 32.622 novos casos confirmados de coronavírus e 376 mortes ligadas à covid-19 nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) neste sábado (21/11). Os novos números elevam o total de infectados para 6.052.786, enquanto o de óbitos chega a 168.989.

O Conass não divulga o número de pessoas recuperadas. Segundo o Ministério da Saúde, 5.422.102 pessoas haviam se recuperado da doença na sexta-feira.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais de casos e mortes devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 80,4 no Brasil, uma das mais altas do mundo. Segundo dados da Universidade Johns Hopkins, dos EUA, o Brasil é a sexta nação com a maior proporção de mortes no mundo, se desconsideradas as micronações europeias San Marino e Andorra.

Neste quesito, o país só está atrás de Bélgica (133,04), Peru (110,40), Espanha (98,69), Argentina (82,10) e Reino Unido (81,02). Está à frente dos EUA (77,19), o país com maior número absoluto de mortos do mundo.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 12 milhões de casos, e da Índia, com 9 milhões. Mas é o segundo em número de óbitos, depois dos EUA, onde morreram mais de 255 mil pessoas.

Ao todo, mais de 57,9 milhões de pessoas contraíram o coronavírus no mundo, enquanto mais de 1,34 milhão morreram em decorrência da doença, segundo contagem mantida pela Universidade Johns Hopkins.

Deutsche Wille

Um governo perdido

Para buscar reeleição, é preciso antes exercer de fato o mandato conquistado nas urnas.

O presidente Jair Bolsonaro tem descuidado de tarefas básicas de um governo, como a articulação política para a aprovação das leis orçamentárias. Além de dificultar a retomada de que tanto o País precisa, essa omissão naquilo que é o cerne de um governo – definir prioridades e atuar em consonância – leva o governo Bolsonaro a perder qualquer resquício de identidade. Na segunda-feira passada, por exemplo, o ministro-chefe da Secretaria de Governo da Presidência da República, general Luiz Ramos, foi ao Twitter comemorar, como se fossem próprios, resultados eleitorais de partidos do Centrão. Descumprindo suas tarefas e se esquecendo de suas promessas, o governo agora se assume como o próprio Centrão.

Segundo o general Luiz Ramos, a esquerda, e não o bolsonarismo, foi a grande derrotada das eleições de domingo passado. O argumento de sua tese é de que “os partidos aliados às pautas e ideais do governo Bolsonaro saíram vitoriosos”. O general referia-se a PSD, PP, DEM e MDB.

É uma mudança e tanto. Em 2018, os partidos do Centrão eram, nas palavras do general Heleno, a “materialização da impunidade”. Na ocasião, o atual chefe do Gabinete de Segurança Institucional chegou a parodiar um famoso samba, cantando: “Se gritar pega Centrão, não fica um meu irmão”. A letra original diz “ladrão”, em vez de Centrão. Agora, são esses partidos os grandes aliados das pautas e ideais do governo Bolsonaro.

Sem rumo, o governo não faz o que lhe cabe. Nesta semana, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), voltou a insistir na urgência de votar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 186/19, que foi apresentada pelo Executivo no fim do ano passado. Ao prever mecanismos para reduzir despesas públicas, a PEC Emergencial é fundamental para diminuir o déficit primário, permitir a realização de despesas sociais e assegurar o Orçamento de 2021.

No entanto, o governo federal faz vista grossa ao tema, como se ele não fosse de sua responsabilidade. Governar exige decisões difíceis e, perante elas, o presidente Jair Bolsonaro tem manifestado uma paralisia desconcertante. Ao falar do papel do Executivo na coordenação da pauta de votações, Rodrigo Maia lembrou que “o governo não pode transferir ao Poder Legislativo decisões que cabem a quem venceu as eleições”; no caso, as presidenciais de 2018.

Como se sabe, partidos do Centrão – justamente alguns daqueles que o general Luiz Ramos chama de grandes aliados do governo – têm obstruído a pauta de votação da Câmara dos Deputados, bem como impedido a instauração da Comissão Mista de Orçamento (CMO). Contrariando acordo entre os partidos da base feito em fevereiro, o líder do PP, deputado Arthur Lira (AL), deseja agora um nome alinhado ao Centrão na presidência da comissão.

O impasse tem causado atrasos importantes. O Congresso ainda não votou a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2021. O governo não terá base legal para realizar nenhum gasto discricionário em 2021 se a LDO não for aprovada, bem como o Orçamento. Trata-se, portanto, de ponto essencial para o governo federal. No entanto, sem aparentar nenhuma preocupação com esses detalhes – que deveriam ser prioridade do País e do próprio Executivo federal –, o presidente Jair Bolsonaro e seus auxiliares preferem fustigar partidos de esquerda valendo-se de resultados eleitorais do Centrão.

Se o governo Bolsonaro está tão interessado nas eleições de 2022, alimentando desde já intrigas com seus supostos inimigos, deveria ouvir o alerta do presidente da Câmara. “Olhando para 2022, eu penso que tem coisas mais decisivas do que até o próprio resultado eleitoral (de domingo passado). Os próximos meses no Parlamento para o governo federal terão peso muito maior do que o resultado das eleições de 2020”, disse Rodrigo Maia. Parece óbvio, mas é preciso recordar. Para buscar eventual reeleição, antes é preciso exercer de fato o mandato conquistado nas urnas em 2018. Já se vai a hora de governar.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 21.11.2020.

Desprezo de Bolsonaro pelos diferentes e os sem poder foi um tiro pela culatra

São essas pessoas, começando a reconquistar sua dignidade secularmente humilhada, que, num feliz paradoxo, poderiam se tornar o pior perigo que ameaça seu trono


Presidente Jair Bolsonaro em evento no Palácio do Planalto, no dia 19 de novembro.EVARISTO SA / AFP

Por Juan Arias

Ninguém melhor que Bolsonaro, que adora fuzis e pistolas, para estar acompanhado da expressão “o tiro saiu pela culatra”. Chegou à Presidência com sua carga de desprezo e desinteresse pelos diferentes e sem poder, algo que sempre o tinha caracterizou, mas desta vez com a força e a liberdade conferidas por ser chefe de Estado.

Esse mundo que tanto o incomoda e que ele costuma mencionar sem nenhum sinal de empatia e com adjetivos humilhantes nunca chegou tão ativo e com tanta vontade de reivindicar seu poder como com Bolsonaro. Foi uma espécie de rebelião silenciosa que se concretizou nas vitórias colhidas nas últimas eleições, as primeiras que viram serem eleitas tantas mulheres, inclusive trans, tantos negros e indígenas, tantos diferentes, enquanto fracassaram seus candidatos “machos e fortes”.

Não é que o mundo dos diferentes e portanto dos excluídos do poder, que constituem a grande maioria neste país, não tenha sido sempre mantido à margem da sociedade, sem que pudesse participar do banquete que, graças a eles, os privilegiados podem desfrutar. Foram-no sempre na história do Brasil, apesar de constituir a maioria do país e a mão de obra dos que acumularam sempre 90% das riquezas.

Eu me refiro aos nativos conquistados pelos brancos europeus, os negros herdeiros da escravidão, as mulheres que arcaram toda a vida com os trabalhos mais duros e sempre sendo humilhadas. Muitas delas passaram a vida trabalhando dentro de uma família rica, sem que nem sequer uma vez fossem chamadas por seu nome. E sempre mais mal pagas que os homens.

Todos estes excluídos, todos os sexualmente diferentes vistos quase como uma raça inferior, e talvez com maior força neste país que sempre manifestou uma carga grande de racismo, puseram em marcha uma grande revolução em defesa dos seus direitos durante este governo machista e homofóbico.

O resgate dos diferentes, começando pelas mulheres, foi crescendo no mundo graças à cultura e às lutas já conhecidas a favor de sua emancipação. No Brasil, entretanto, o trabalho foi sempre mais lento pela carga de preconceitos que arrasta. Não faz muito tempo ainda que a mulher não tinha direito de votar e era vista como propriedade e objeto de seu marido.

Quando Bolsonaro chega ao poder com sua carga de desprezo pelas mulheres, os homossexuais, os negros e os indígenas, que segundo ele são um peso inútil no país, estes já eram considerados inferiores e relegados a papéis secundários.

Sempre o mundo dos mais pobres, privados de cultura e diferentes esteve à margem do poder. A diferença hoje é que esse mundo dos sempre excluídos nunca foi tão humilhado e desprezado publicamente como com este presidente, um capitão frustrado que chegou ao poder com sede de vingança.

É fácil imaginar a raiva e humilhação que Bolsonaro deve ter sentido nas eleições do domingo ao ver derrotados seus candidatos “machos” apoiados por ele, uma grande parte militares, enquanto que os que ele mais despreza não só foram escolhidos como também, como algumas mulheres e não poucos negros e indígenas, foram os mais votados.

Deve ter sido duro para Bolsonaro ver como mulheres e trans, ou lésbicas, até ontem olhadas com maus olhos, eram eleitas e ainda tinham mais votos que seus competidores masculinos e “normais”. Nem sequer sua ex-mulher foi eleita vereadora no Rio, que é seu reino da vida toda.

Deve ter sido tão forte sua humilhação que tentou envenenar as eleições sustentando suspeitas sobre a apuração dos votos. E quando no dia seguinte seus seguidores fiéis e fanáticos lhe perguntaram sobre o resultado das eleições, pela primeira vez lhes disse que não falaria, que não estava “se sentindo bem”. Mas sentir-se mal, logo ele, o atleta macho que não se dobrou à covid-19?

Não é isso sair o tiro pela culatra? E nada mais perigoso para um governante como Bolsonaro que ver os menosprezados ressuscitarem do inferno da exclusão. São essas pessoas, começando a reconquistar sua dignidade secularmente humilhada, que, num feliz paradoxo, poderiam se tornar o pior perigo que ameaça seu trono.

Não são poucos os analistas que consideram que o triunfo desses diferentes desprezados por Bolsonaro poderá acabar sendo mais perigoso para ele, pois estes chegam com a consciência desperta de estarem reconquistando sua dignidade humilhada.

E junto com o triunfo eleitoral dos até ontem desprezados, Bolsonaro, o obsessivo pelos comunistas e por tudo o que cheire a esquerda, como se se tratasse de gente saída do inferno, para quem seu melhor lugar seria o exílio, a prisão e a câmara de tortura, sentiu nestas eleições ressurgir uma nova esquerda. Uma esquerda menos aburguesada, que reivindica os direitos dos diferentes e excluídos, dos sem-teto, que ainda são milhões neste país e vivem mal no inferno das periferias das grandes urbes, e estão escorregando para a miséria e até a fome por falta de emprego e de oportunidades.

Se outrora as esquerdas clássicas, hoje muitas delas aburguesadas, se interessavam, graças aos grandes sindicatos, pelos trabalhadores fixos para melhorar suas condições de vida, hoje a nova esquerda que surgiu com força nestas eleições se interessa, pelo contrário, pelos sem-trabalho e pela defesa dos excluídos que são os novos proletários da sociedade. Todo esse mundo que Bolsonaro gostaria de ver ser arrastado pela pandemia como peças inúteis do seu poder autoritário e machista.

Juan Arias é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente no EL PAÍS, edição brasileira, em 21.11.2020

Espancamento até a morte de cliente negro em um mercado põe sob lupa o racismo no Brasil

Vice-presidente da República chama de “lamentável” a morte de João Alberto Silveira Freitas por dois seguranças brancos em uma unidade do Carrefour, mas diz que “não existe racismo” no país


Na imagem, um protesto contra a morte de Freitas em Porto Alegre. 

A morte de um cliente negro por espancamento nas mãos de dois seguranças brancos em um supermercado na noite de quinta-feira, véspera deste Dia da Consciência Negra, foi um forte lembrete do racismo cotidiano no Brasil, refletido também nas mortes pelo coronavírus. Vídeos que circulam nas redes sociais mostram como um dos agressores dá sucessivos socos no rosto de João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, enquanto o outro o segura pelo pescoço em uma unidade do Carrefour em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Ambos foram presos. Ao comentar o caso, que provocou protestos e uma onda de comoção nesta sexta-feira, o vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, classificou-o como “lamentável”, mas negou que o Brasil seja um país racista, ainda que a vítima seja negra e os autores do crime sejam brancos. “Eu digo para você com toda tranquilidade: não tem racismo. Eu digo isso para vocês porque eu morei nos Estados Unidos. Racismo tem lá. (...) Aqui o que existe é desigualdade”, afirmou.

A polícia ainda investiga os detalhes do que ocorreu, mas segundo uma delegada citada pela imprensa local, os dois homens trabalhavam para o Carrefour e chegaram a pressionar a vítima com os joelhos quando ela já estava no chão. Os primeiros indícios colhidos pelos investigadores assinalam que tudo começou com uma discussão entre o cliente, que estava fazendo compras com sua esposa, e uma operadora de caixa, que chamou a segurança. João Beto, como era conhecida a vítima, foi levado para o estacionamento e lá morreu, após ser espancado. Uma equipe de resgate chegou a ser acionada, mas não conseguiu reanima-lo e ele faleceu ali mesmo. Os dois guardas, um deles policial militar, foram presos em flagrante. O Carrefour condenou imediatamente a agressão e anunciou o rompimento de seu contrato com a empresa terceirizada que empregava os seguranças.

O dia 20 de novembro, feriado em várias cidades brasileiras, é a data em que o país reflete, com dados e depoimentos, sobre a herança da escravidão, abolida há 132 anos. A data lembra a morte do Zumbi dos Palmares, que liderou uma sublevação de escravos. Este ano, a celebração da data, embora afetada pelo coronavírus, ganha força após os grandes protestos antirracistas nos Estados Unidos e o avanço —tímido— da eleição de prefeitos e vereadores negros no primeiro turno das eleições municipais, no domingo passado.

Pessoas próximas da vítima convocaram um protesto nesta sexta-feira em frente ao supermercado, fechado. O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), e os dois candidatos à prefeitura de Porto Alegre —Manuela D’Ávila (PCdoB) e Sebastião Melo (MDB)— se apressaram em condenar a agressão.


Imagem do momento em que João Beto foi espancado até a morte por dois homens brancos, enquanto uma mulher filmava a ação. EL PAIS

Foi nessa conjuntura que a brutal morte de Freitas ganhou as manchetes da imprensa. Uma relevância bem diferente da pouca repercussão que costumam ter os casos similares e as milhares de mortes que ocorrem todos os anos em operações policiais, tendo como alvo, principalmente, jovens negros de favelas.

Nesta sexta-feira também são notícia nacional as ameaças de morte contra a primeira vereadora negra eleita em Joinville, Santa Catarina —o Estado mais branco do Brasil, povoado no século XX por imigrantes alemães. Uma das ameaças dizia: “Agora só falta a gente matar ela e entrar o suplente que é branco”. Paradoxalmente, esse mesmo Estado elegeu em 1934 a primeira deputada negra, a educadora Antonieta de Barros. Pouco avançaram seus pares desde então, como ilustra bem o tuíte de um senador nesta semana: “O perfil do eleitor brasileiro é majoritariamente de mulheres, negras, com ensino fundamental e 37 anos. Já o perfil do eleito é: homem, branco, com ensino superior e 49 anos”.

Nestas eleições municipais, que em algumas cidades terão segundo turno no dia 29, os brasileiros elegeram mais vereadores negros do que nunca, mas o aumento é tímido, apesar das cotas: de 42% a 45%. Sua representação ainda está longe de seu peso real, porque constituem mais da metade da população. No Brasil, o termo negro também inclui, geralmente, as pessoas pardas. Como cabe a cada pessoa decidir como se declara, nestas eleições, milhares de candidatos mudaram de raça autodeclarada. Os partidos costumam burlar as cotas com candidaturas fraudulentas.

As estatísticas mostram sistematicamente que os negros brasileiros morrem mais cedo, vivem em piores condições, adoecem mais e ganham menos que seus compatriotas brancos ou nipo-brasileiros. Entretanto, estão sobrerrepresentados entre os desempregados e as vítimas da violência.

Aumentam os pedidos de boicote do Carrefour, que já se viu envolvido em um incidente diferente deste, mas que também causou revolta. Um vendedor de uma marca que oferecia produtos nos corredores de um de seus supermercados sofreu um infarto, morreu ali mesmo e os responsáveis pela loja cobriram o corpo com vários guarda-chuvas e o cercaram com caixas de cerveja até a hora do fechamento.

NAIARA GALARRAGA GORTÁZAR, do EL PAÍS

Extermínio de negros, o empreendimento mais bem-sucedido do Brasil

Mais um espancamento na conta do Carrefour. Mais um homem negro brutalmente assassinado no país. Mais um dia de negação do racismo que reparte lucros e dividendos


Manifestante protesta na porta do Carrefour, em Brasília, pelo assassinato de Beto / ERALDO PERES / AP

Esqueça a Bolsa de Valores ou a especulação imobiliária. O negócio que nunca sai de moda nem apresenta risco ao investidor é o racismo à brasileira. Fundada na colonização, capitalizada na escravidão e repaginada na era das redes sociais, a discriminação racial se consolida cada vez mais como o título de renda mais sólido para governos, empresas e pessoas físicas que lucram com a eliminação de corpos negros. Nem mesmo o brutal assassinato de João Alberto Freitas, o Beto, espancado por seguranças na porta do Carrefour, em Porto Alegre, ameaça a estabilidade dos rendimentos. Afinal, toda a cartela de aplicações está estruturada sobre a lógica da diversificação das formas de opressão e massacre.

O crime desta quinta-feira, justamente na véspera do Dia da Consciência Negra, choca pela brutalidade e frieza dos executores, mas não pelo CNPJ. Nos últimos anos, o Carrefour se especializou em protagonizar episódios de extrema violência. Não faz nem quatro meses que um funcionário morreu após sofrer ataque cardíaco em uma loja de Recife e teve o corpo coberto com guarda-sóis para que o estabelecimento continuasse funcionando normalmente. Em 2018, uma cadela morreu por golpes com barra de ferro desferidos pelo segurança de outra unidade, em Osasco. No mesmo ano, em São Bernardo do Campo, um cliente negro foi espancado por falsa suspeita de furto.



Manifestantes no protesto em frente a uma loja do supermercado Carrefour, após o espancamento até a morte de João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos. 

Uma cruel vitrine do Brasil que ainda celebra a tortura

Tortura no supermercado ecoa sensação de rotina

Em comum entre todos os episódios, a resposta padrão do Carrefour, que se comprometeu a revisar políticas internas e a afastar os agressores. Assim, a rede francesa de supermercados terceiriza responsabilidades, como se a culpa fosse somente dos indivíduos, e não de uma empresa incapaz de reprimir reiteradas práticas cruéis em seus estabelecimentos. Mas a resposta pendente nos comunicados oficiais é tão ou mais importante que ações punitivas: quando os donos e acionistas do Carrefour vão pagar essa conta?

Diante do racismo e da morte de negros, basta uma nota de repúdio. É assim que as instituições lidam com a violência discriminatória e contribuem para banalizar acontecimentos que, em qualquer sociedade de princípios igualitários, deveriam causar profunda consternação. Porém, o vice-presidente Hamilton Mourão nem se acanhou em afirmar categoricamente, mesmo no calor do assassinato de Beto, que “não existe racismo no Brasil”. Em aparições públicas anteriores, o general já havia se referido a negros como “pessoas de cor”, associou indígenas a “certa herança de indolência” e disse ter um neto bonito devido ao “branqueamento da raça”.

Comportamento tão esdrúxulo e desprezível valeria, no mínimo, uma enérgica reprimenda do Governo, além da urgente manifestação de solidariedade à família da vítima. Mas o que esperar quando o país é governado por um chefe de Estado ―Jair Bolsonaro― que tem em seu currículo as seguintes declarações:

— Ele [o deputado Hélio Lopes, negro] demorou pra nascer e deu uma queimadinha.

— Não aceitaria ser operado por um médico cotista.

— Não sou racista. Tenho até um cunhado negro.

— O afrodescendente mais leve pesava sete arrobas.

Em São Paulo, manifestantes invadiram uma unidade do Carrefour e atearam fogo em protesto contra a morte de Freitas, em Porto Alegre.

Em São Paulo, manifestantes invadiram uma unidade do Carrefour e atearam fogo em protesto contra a morte de Freitas, em Porto Alegre.RICARDO MORAES / REUTERS

No Brasil atual, o desinibido racismo propagado pelo presidente da República é tratado como brincadeira e, vez ou outra, ainda arranca gargalhadas de seus apoiadores. Seria menos desalentador se a atitude estivesse restrita a uma corrente extremista de pensamento, mas a capitalização em cima do racismo também é praxe de uma parcela da oposição a Bolsonaro. Nesta sexta, o governador João Doria afirmou que “cenas de racismo demonstram o quanto precisamos evoluir para termos uma sociedade mais justa e igualitária”. O mesmo que, antes de assumir o cargo, cravou que a polícia de São Paulo iria “atirar para matar” e classificou como exceção os episódios em que policiais agiram com violência contra a população. Sabe-se que o alvo preferido dos agentes de segurança chefiados por Doria são justamente negros e pobres, cujos assassinatos que cresceram durante a pandemia não inspiraram nada além de notas de repúdio do governador empreendedor.

Sai barato ser racista num país que brotou do sangue de escravos e continua regido por normas dos homens brancos que conservam seus privilégios pelo aperfeiçoamento de um sistema de exploração. Não é por acaso que quem comete crime de racismo, em vez de punido, acaba promovido ou eleito a um cargo público. Da mesma maneira, atribuir a vidas negras o peso de mercadoria barata, que pode ser abatida a qualquer instante sem maiores consequências, é um reflexo das cadeias empresariais que usurpam sua força de trabalho a preço de banana —e ainda arrecadam aplausos da clientela ao aproveitar o 20 de novembro para fazer marketing social com campanhas enganosas em nome da diversidade.

Não foi o primeiro nem terá sido o último espancamento físico de uma pessoa negra nas dependências de um supermercado no Brasil. Somente no primeiro trimestre deste ano, o Carrefour lucrou 757 milhões de reais. Seu faturamento anual supera 60 bilhões de reais. Mesmo que o assassinato de Beto gerasse uma onda de protestos semelhante à dos Estados Unidos em memória de George Floyd, não há previsão de retração dos ganhos por dano à imagem, assim como não houve após os episódios do passado. Enquanto as empresas seguem pregando consciência negra sem prática antirracista, o extermínio de negros permanece intocável como o empreendimento mais bem-sucedido do Brasil.

BREILLER PIRES, de EL PAÍS

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Repique em casos e mortes por covid-19 acende alerta pelo Brasil

Números estão em alta em 13 estados, revertendo três meses de queda. Reaceleração começou pelas classes mais altas. Governo paulista determina que hospitais suspendam agendamento de cirurgias eletivas.


Homem e mulher usando máscara caminham pela Avenida Paulista, em São Paulo

"As pessoas relaxaram e reduziram as medidas de proteção", aponta especialista

Após três meses de queda lenta e constante no número diário de casos e mortes pela covid-19, diversas regiões do Brasil enfrentam agora um repique da pandemia, o que pressiona os gestores públicos a reavaliar suas estratégias de saúde coletiva.

Nesta quinta-feira (19/11), o número de mortes por covid-19 no país, pelo critério da média móvel dos últimos sete dias, foi de 540 — a contagem estava abaixo de 400 no início do mês. O número de casos, pela mesma metodologia, foi de 28.598, enquanto no início de novembro ficou abaixo dos 17 mil.

Em 13 estados do país, o número de mortes diárias pela pandemia está em alta: todos os das regiões Sul e Sudeste, além de Goiás, Tocantins, Rondônia, Roraima, Amapá e Rio Grande do Norte. E esse é um dado que retrata a evolução da pandemia com atraso, devido ao ciclo da doença e à demora entre a ocorrência da morte e a sua inserção no sistema.

Outra informação relevante é o número de internações por covid-19. Na semana passada, o estado de São Paulo teve alta de 18% nessa variável em relação à semana anterior. Entre os hospitais privados, 44,7% registraram aumento dessas internações nos últimos 15 dias, segundo levantamento do Sindicato dos Hospitais do Estado de São Paulo. A ocupação dos leitos destinados à pandemia ainda está em 43,5% no estado, e é de 49,7% na região metropolitana de São Paulo.

O boletim InfoGripe desta quinta-feira, compilação realizada pela Fiocruz sobre internações por síndrome respiratória aguda grave pelo país, indica que oito capitais têm probabilidade moderada ou forte de crescimento de internações nas próximas seis semanas. 

A taxa de transmissão no país, conhecida pela sigla Rt, também voltou a crescer, segundo cálculo do Imperial College de Londres, no Reino Unido, e chegou a 1,1 na segunda-feira, após ter permanecido abaixo ou próximo de um por cerca de três meses. O resultado mais recente indica que um grupo de 100 pessoas infectadas pelo vírus o transmitirão para outras 110, ou seja, que a pandemia está se expandindo.

O percentual de resultados positivos em testes rápidos realizados em farmácia, que identificam se a pessoa já foi infectada pelo coronavírus, cresceu em dez estados na semana de 9 a 15 de novembro, em comparação com a semana anterior, segundo dados reunidos pela Associação Brasileira das Redes de Farmácias e Drogarias.

O aumento de casos e mortes por covid-19 é consequência do relaxamento das medidas de distanciamento social e proteção, única medida eficaz para combater a pandemia enquanto não houver uma vacina aprovada para a doença, aponta Antônio Augusto Moura da Silva, professor de epidemiologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

"Houve aumento do número de contatos entre as pessoas, vários estabelecimentos reabriram, o pessoal voltou a se visitar, fizeram festas, aglomerações, teve a campanha eleitoral com muita atividade corpo a corpo. As pessoas relaxaram e reduziram as medidas de proteção", diz. 

Ele cita como exemplo o uso de máscaras no Maranhão. Em maio, uma pesquisa indicou que 65% da população usava máscara ao sair às ruas, percentual que caiu para 42% em outubro.

Moura da Silva é contra o uso do termo "segunda onda" para explicar o que ocorre no país, pois, ao contrário do que ocorreu na Europa, no Brasil o número de casos e mortes não chegou perto de zero, diz. Segundo ele, há uma "reaceleração" da transmissão em um mesmo momento epidêmico.

Infecções pelo coronavírus

A fase da pandemia

Como no início da contaminação por covid-19 no Brasil, agora os primeiros sinais da reaceleração também vieram de hospital privados, que atendem pessoas das classes mais altas. Em diversas localidades, a ocupação dos leitos destinados à doença está hoje mais alta na rede privada do que na rede pública.

A dinâmica atual, porém, é diversa, afirma Moura da Silva. No início do ano, a transmissão começou pelas classes mais altas porque eram elas que tiveram contato mais frequente com pessoas que fizeram viagens internacionais e trouxeram o vírus de outros países para o Brasil. 

Quando a pandemia se agravou, porém, as pessoas das classes mais altas tiveram mais condições de se isolar e trabalhar em regime de home office, enquanto os mais pobres, por uma série de motivos, como necessidade de usar o transporte público e condições inadequadas de moradia, seguiram expostos ao vírus.

O vírus infectou proporcionalmente mais as pessoas de classes baixas do que as classes altas. Isso foi comprovado na cidade de São Paulo por meio de um inquérito sorológico divulgado em setembro. À época, o levantamento mostrou que a incidência do coronavírus entre moradores da classe D e E era cinco vezes maior do que nas classes A e B — 18,7% das pessoas de classe mais baixas apresentaram anticorpos contra o vírus, e apenas 3,1% das de classes mais altas.

Por esse motivo, a população das classes A e B está hoje mais suscetível a pegar o vírus, pois tem proporcionalmente menos pessoas com os anticorpos para a doença. "As pessoas da classes mais ricas que ficaram isoladas voltaram para o convívio social, e começou uma microepidemia nesse grupo", diz Moura da Silva.

A mesma lógica pode fazer com que o repique atual seja mais leve em locais que tiveram alta incidência da covid-19 no primeiro semestre, como Manaus e Fortaleza. 

Isso não significa que a alta atual de casos não afetará também as pessoas mais pobres, alerta a epidemiologista Carolina Coutinho, pesquisadora da EAESP/FGV. Ela afirma que muitas pessoas das classes D e E ainda não contraíram o vírus, o que pode levar a novos surtos com intensidade também nesse grupo. 

"Estamos vendo as internações no sistema privado começarem a lotar, mas por enquanto nos sistemas públicos há uma demanda leve. Mas, entre as pessoas mais pobres, há muitas que ainda não pegaram. E há a discussão sobre reinfecção, mesmo quem já teve precisa continuar se protegendo", diz.

Outro aspecto que inspira cuidados é uma instabilidade dos dados de casos e mortos por covid-19, devido a uma falha técnica em uma plataforma do Ministério do Saúde que deixou o sistema fora do ar nos dias 6, 8, 9 e 10 deste mês. O boletim InfoGripe informa que a interpretação dos dados de cidades com estabilidade ou queda nos números deve ser feito de forma "cautelosa" devido à pane no início do mês

A reação de governos

Nesta quinta-feira, o governo de São Paulo anunciou medidas preparatórias para enfrentar o aumento do número de casos. O estado determinou que todos os hospitais, públicos, privados e filantrópicos, devem interromper o agendamento de novas cirurgias eletivas, para que mais leitos fiquem disponíveis a pacientes de covid-19.

O governo paulista também proibiu os hospitais de desmobilizarem seus leitos hoje destinados a quem está infectado pelo vírus, e informou que a reclassificação das regiões do estado sobre flexibilização de atividades será feita a cada 14 dias, em vez dos atuais 28 dias, para reagir à evolução da pandemia com mais rapidez.

Já o prefeito de São Paulo, Bruno Covas, que é candidato à reeleição e está em campanha no segundo turno, tem afirmado que a pandemia está sob controle na capital paulista e que não há necessidade de alterar as regras no momento. A prefeitura, porém, informou que abrirá 200 novos leitos de enfermaria destinados aos pacientes de covid-19 em três hospitais da cidade.

No governo federal, o Ministério da Saúde entende que não é o momento de adotar medidas mais duras em relação à pandemia. Segundo reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, citando autoridades que acompanham as discussões da pasta, um alerta só será acionado se houver alta consistente no número de mortes.

Essa pode ser uma estratégia arriscada, segundo Moura da Silva, devido aos atrasos das notificações por morte por covid-19. "O ideal é acompanhar diversas fontes de informação: notificação dos casos, número de internações, taxa de ocupação de leitos e circulação de pessoas", diz.

Deutsche Welle, em 20.11.2020

O custo da pirraça

Como sempre, Bolsonaro tentou transferir uma responsabilidade que é majoritariamente de seu governo. E ainda tratou países europeus como receptadores de produtos roubados.

O presidente Jair Bolsonaro usou a mais recente cúpula do Brics para atacar os países europeus que criticam a política ambiental de seu governo. Não eram nem a hora nem o lugar apropriados para isso, mas Bolsonaro jamais se preocupou com esses detalhes protocolares que regem a relação civilizada entre os países, especialmente quando se trata de exercitar sua diplomacia da pirraça. No entanto, é difícil saber que interesses do Brasil foram defendidos por Bolsonaro quando este, em seu dialeto peculiar e claramente de improviso, decidiu denunciar “países que tenham importado madeira de forma ilegal da Amazônia”, ressaltando que “alguns desses países são os mais severos críticos ao meu governo tocante a essa Região Amazônica”.

A manifestação de Bolsonaro, em lugar de aplacar as críticas, prejudica ainda mais o Brasil. Expõe a precariedade da fiscalização e da aplicação da lei sobre a extração de madeira, acentuada durante o atual governo – que trata a preocupação ambiental como entrave ao “progresso”.

Em primeiro lugar, a maior parte da madeira extraída da Amazônia, cerca de 90%, é vendida no próprio mercado brasileiro. Ou seja, o problema é majoritariamente local e demanda uma ação firme das autoridades daqui mesmo, e não de outros países, para combater os madeireiros ilegais. Em segundo lugar, foi o próprio governo de Bolsonaro que afrouxou a fiscalização e as exigências burocráticas sobre o comércio de madeira, o que facilitou sobremaneira a exportação irregular.

Os países importadores de madeira brasileira não têm como saber se o produto que estão comprando com papelada aparentemente em ordem é ilegal. Nenhuma tábua entra em navio sem documentação oficial do governo brasileiro, emitida pelos órgãos fiscais e ambientais competentes.

Em março passado, o governo Bolsonaro eliminou a exigência de autorização específica para a exportação. Desse modo, ficou mais fácil “esquentar” madeira extraída de forma criminosa, sobretudo em reservas ambientais e indígenas. Estima-se que 90% da madeira exportada pelo Brasil possa ser, na prática, ilegal.

Essa é precisamente uma das principais razões pelas quais vários países europeus vêm pressionando o Brasil a melhorar seus controles sobre o desmatamento. Em quase todo o mundo, mas particularmente na Europa, os consumidores cobram de seus governos que só autorizem a compra de produtos de outros países se houver certeza de que sua produção envolveu as melhores práticas ambientais. No caso da madeira brasileira, em razão da leniência do governo em relação aos madeireiros, a desconfiança é crescente.

Assim, se o interesse de Bolsonaro fosse mesmo melhorar a imagem do Brasil e calar os críticos, o primeiro passo seria acionar a máquina do Estado, que ele comanda, para fazer valer a legislação ambiental brasileira, que é exemplar. Em lugar disso, preferiu, como sempre, transferir a terceiros uma responsabilidade que é majoritariamente de seu governo. E ainda tratou países europeus, importantes clientes da indústria e da agricultura brasileiras, como receptadores de produtos roubados.

Sugerir que países como Alemanha e França são cínicos ao criticar a política ambiental do Brasil enquanto compram madeira ilegal é tão imprudente quanto inútil, razão pela qual a única serventia do discurso improvisado de Bolsonaro no Brics só pode ter sido a de excitar os camisas pardas bolsonaristas nas redes sociais, tristonhos com a surra eleitoral que seu líder levou no domingo passado.

O resultado prático da bravata bolsonarista é que provavelmente as exigências europeias para autorizar a compra de madeira brasileira, que hoje já são bastante duras, ficarão muito mais rigorosas, reduzindo o mercado para os madeireiros que trabalham dentro da lei e que têm nas exportações seu principal ganho em valor agregado. Atabalhoado como sempre, o presidente colocou no mesmo patamar empresários corretos e desmatadores criminosos. Dessa confusão, Bolsonaro espera extrair dividendos políticos – e o faz, como sempre, à custa do País.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 20.11.2020

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

De Trumpiniquim a maricocéfalo

Por Eugênio Bucci

Maricas é quem só usa palavras dóceis, como as de Bolsonaro para Trump: ‘Love’

Pertencente à grande nação tupi, o povo tupiniquim foi o primeiro desta terra a descobrir os portugueses. Quando caravelas lusitanas aportaram no litoral do continente que agora habitamos, os navegantes deram de cara com os tupiniquins. Não se sabe bem que histórias contaram os índios, de geração em geração, sobre o dia em que descobriram Pedro Álvares Cabral, mas o nome deles virou um sinônimo “brasileiro”. Com razão.

No mais das vezes há um viés jocoso nessa acepção da palavra. Normalmente, quando dizem que isso ou aquilo é uma versão “tupiniquim” de uma mercadoria ou de uma ideia vinda de fora, querem dizer que ela é pior que a original estrangeira. Portanto, na fala do brasileiro que desvaloriza o próprio brasileiro quando usa a palavra “tupiniquim” como um termo pejorativo existe um preconceito contra si mesmo, um impulso autodepreciativo.

É bem verdade que outras vezes a memória da nossa ancestralidade indígena não tem preconceito algum, mas o contrário. Quando sabe devorar a identidade do outro que, chegado de “Oropa” ou França, cai na Bahia com más intenções, o brasileiro não se desvaloriza em nada, mas cria valor novo para si. O Manifesto Antropófago, proclamado por Oswald de Andrade em 1928, o “ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha”, defendeu com ênfase esse tipo de mastigação simbólica. As chanchadas no cinema brasileiro, que tantas paródias fizeram para caçoar dos galãs empostados de Hollywood, também tinham que ver com isso, embora sem o apetite revolucionário de Oswald. Se você consegue rir do opressor, meio caminho gástrico andado. “A alegria é a prova dos noves.” Assim, se o uso autopreconceituoso do termo “tupiniquim” internaliza no brasileiro a opressão vinda de fora para dentro, a antropofagia política e cultural vira a opressão do avesso e, de dentro para fora, gargalha.

Tudo isso para perguntar o seguinte: quando imita Donald Trump com tanta paixão, quando posa de cover do seu ídolo imperial, o atual presidente da terra dos tupiniquins incorre numa vertente do autopreconceito ou está apenas exercendo seu suspeito direito de fazer da política uma paródia? Devemos olhar para ele – para o presidente daqui – como um personagem que despencou de uma chanchada fora de cartaz há décadas, mais ou menos como um lobisomem de filme de Mazzaropi, ou como um vassalo voluntarista oferecendo solicitudes não solicitadas ao senhor estrangeiro que o despreza? A atitude do brasileiro que quer ser um Trump tropical fortalece ou desmerece o Brasil? Há nele um piadista de mau gosto ou um índio encarcerado que sonha em se fantasiar de Pedro Álvares Cabral para se olhar no espelho? No caso do presidente local, de quem é o preconceito? E contra quem é?

Antes de respondermos – o que, aliás, talvez não seja necessário –, levemos em conta que a divindade blonde foi destronada, o que solapa não o chão de seu servo, que pés no chão nunca os teve, mas o poleiro em que ele se dependura, pelo lado de baixo. O que estamos vendo é uma tragédia amorosa escancarada, explícita, cheia de dilacerações e lágrimas. O subalterno vai perdendo o objeto do desejo à medida que o poleiro perde a materialidade. O sôfrego adulador não reconhece que o cetro ao qual devota sua reverência genuflexa está sumindo do horizonte. Entra em desespero sentimental. Não reconhece a perda de poder em seu amo e patrão.

O espetáculo inspira pena. Quanta dor. Dia destes, o presidente dos tupiniquins usou a palavra “love”. Em seu vocabulário, o termo “love” mora no coração do termo “obediência”. Incondicional. O escritor austríaco Leopold von Sacher-Masoch concordaria. Em via de perder o ser idolatrado, o ser idolatrante enlouquece em seu fetiche adente. Sua fantasia não era devorar, nunca foi. Sua fantasia mais sublime era ser devorado. O que fazer agora? Ele entra em pane. Entra em parafusos abstratos. Endoida. Fica fora de controle. Então, para assombro dos mortais, o homem começa a falar em maricas. Ele grita: “Maricas!”. Haja maricas. O presidente destampa a sua obsessão pelo vocábulo. Ele, que nunca pensa coisa alguma, agora só pensa em maricas.

O que vem a ser isso, “maricas”, em tão presidencial vocabulário? Em primeiro lugar, o termo denota algo – no referido vocabulário – como falta de valentia. No mesmo léxico, tem que ver com “bundão”, palavra já pronunciada publicamente pela mais alta autoridade da República para insultar os jornalistas e os que adoecem com a covid-19. “Quando pega num bundão de vocês, a chance de sobreviver é bem menor”, disse ele aos repórteres em agosto. “Maricas” é quem não usa pólvora, só saliva, só palavras dóceis, como as dele para Trump. “Love”.

Niquim é o nome indígena de um peixe marinho de corpo mole e cabeça achatada (Thalassophryne nattereri). A palavra, de origem tupi-guarani, significa feio (ni) e espinhoso (quim). Com cerca de 15 centímetros quando adulto, o niquim gosta de ficar parado no fundo de areia em águas rasas. Tem espinhos venenosos no dorso. Se você pisa nele, bem, pode ser um aborrecimento e tanto. Caminhemos com cuidado.

Eugênio Bucci é Jornalista e Professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de S~~ao Paulo. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 19.11.2020.

O ataque dos maricas

Por Luís Fernando Veríssimo

Não fica claro, no discurso, se trata-se apenas de quem tem medo de morrer

O FBI, a CIA e outros órgãos da inteligência americana têm tido dificuldade em entender os relatórios que recebem dos seus agentes no Brasil. Discursos e manifestações do presidente brasileiro são monitorados regularmente, mas, de uns tempos para cá, isso tornou-se uma tarefa problemática. Para começar, ninguém parece saber quem realmente é o presidente do Brasil e faz as declarações que intrigam os agentes americanos. Há quem diga que o presidente é Hamilton Mourão, outros dizem que é Paulo Guedes, outros têm certeza de que é José Simão, e ainda outros sustentam (a opção menos provável) que é Jair Bolsonaro ou um dos seus filhos. O jeito é monitorar todos ao mesmo tempo. O objetivo é detectar e prevenir qualquer ameaça à segurança dos Estados Unidos.

Uma recente fala presidencial de improviso aumentou a confusão. Os termos do pronunciamento ainda estão sendo estudados. Eles podem indicar que o Brasil prepara-se para invadir os Estados Unidos e:

a) manter o Trump no poder, cercando a Casa Branca e repelindo qualquer tentativa de retirá-lo de lá a cusparadas — o que explicaria a críptica referência à saliva transformando-se em pólvora, no discurso do presidente;

b) sequestrar o Biden, disfarçá-lo com uma peruca loira, soltá-lo no meio de uma manifestação contra o racismo e correr atrás dele gritando “É o Trump! Pega! Pega!”.

Os analistas americanos também tentam decifrar o sentido da palavra “maricas”. Não fica claro, no discurso, se “maricas” é apenas quem tem medo de morrer e, portanto, é um desprezível, ou se o presidente estava fazendo uma ameaça velada aos americanos, avisando que brasileiros maricas podem ter medo de morrer e horror a baratas, mas não os desafiem, eles podem ser ferozes. Os americanos decidem que um ataque dos maricas virá e preparam suas defesas. A segurança nas fronteiras é reforçada. Todos devem ficar atentos a grupos barulhentos que lotam os aeroportos . São os maricas que chegam.

Luís Fernando Veríssimo é escritor. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, edição de 19.11.2020.

Com números da covid-19 em alta, Brasil tem 606 mortos e 35,9 mil infectados em 24h

Em um momento em que o número de casos e mortes pela pandemia de coronavírus voltam a subir, o Brasil contabiliza oficialmente 5.981.767 pessoas com covid-19 e 168.061 mortes, segundo o boletim mais recente do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass), divulgado nesta quinta (19/11).

Deste total, 35.918 casos da doença e 606 óbitos foram registrados nas últimas 24 horas.

O Estado com o maior número de vítimas fatais segue sendo São Paulo (41.074), seguido por Rio de Janeiro (21.806), Minas Gerais (9.648) e Ceará (9.467).

O Brasil continua como o segundo do mundo com maior número de mortes na pandemia do novo coronavírus, depois apenas dos Estados Unidos, que têm mais de 251,7 mil mortes pela covid-19, segundo levantamento da Universidade Johns Hopkins.

O Brasil foi superado em número de casos, entretanto, pela Índia (8,9 milhões), agora em segundo lugar depois dos Estados Unidos (11,6 milhões).

BBC News Brazil

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Investigação sugere elo entre grupo que tentou derrubar site do TSE e bolsonaristas

Ataque teria como objetivo "inocular na população o vírus da dúvida” sobre as eleições. Na darkweb, tentativa semelhante de ofensiva hacker custa apenas 1.000 dólares e é paga com bitcoins

O presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, durante entrevista coletiva no dia 16, em Brasília. Foto de ANTÔNIO AUGUSTO / ASCOM/TSE

Ataques como o que sofreu o site do Tribunal Superior Eleitoral na manhã de domingo, durante o primeiro turno das eleições municipais no Brasil, custam apenas 1.000 dólares (cerca de 5.400 reais) em redes clandestinas de hackers. Essa compra ilegal pode ser feita na darkweb e até em sites abertos ao público sediados no exterior, com o pagamento por meio da moeda virtual bitcoin, que é mais difícil de ser rastreada. É um tipo de ataque de negação de serviços no qual redes de computadores zumbis, infectados por vírus e manipulados sem que seus donos saibam, tentam promover milhares de acessos simultâneos a um portal com o objetivo de retirá-lo do ar. Os dados foram levantados a pedido do EL PAÍS pela ONG SaferNet, que enxerga no ataque deste domingo a intenção de abastecer teorias conspiratórias.

No caso do site do TSE, o ataque foi de 30 gigabites por segundo durante uma hora. No período, era como se 436.000 computadores tentassem acessar a página a cada segundo. Ele foi repelido, e causou apenas uma lentidão nas informações acessadas no portal. Mas só a notícia de que o site estava sob risco já gerou um tsunami de teorias conspiratórias de que toda eleição poderia ser fraudada

Uma apuração iniciada pela SaferNet, que tem parceria com o Ministério Público Federal no combate à desinformação, mostra que a tentativa de derrubar o site do TSE teve uma ação coordenada que tinha como objetivo final desacreditar as eleições. E, entre os divulgadores das informações falsas difundidas poucos minutos ao ataque, estavam dezenas de militantes bolsonaristas, alguns deles investigados nos inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos, que tramitam no Supremo Tribunal Federal.

A conclusão da SaferNet é que o ataque foi uma operação em cadeia, iniciada em outubro, quando um grupo de hackers conseguiu obter informações dos recursos humanos sobre ex-servidores e ex-ministros da Corte. Esses dados só foram vazados por volta das 9h25 de domingo e, às 10h41, começou o ataque. Que foi repelido. Caso conseguisse retirar o site do ar, o efeito obtido seria apenas cosmético, pois não não teria a capacidade de alterar qualquer apuração eleitoral.

É o que o presidente da SaferNet, Thiago Tavares, chamou de “combustível das teorias da conspiração”. “Em caso de sucesso, os atacantes só trariam o inconveniente de a população ficar sem acesso ao serviço por um tempo. É uma operação cujo objetivo não era causar um dano material, mas psicológico. É você criar a suspeita, inocular na população o vírus da dúvida sobre a integridade, a lisura e a segurança do processo eleitoral”, disse Tavares ao EL PAÍS.

As informações obtidas pela equipe da ONG em tempo real no domingo foram compartilhadas com o TSE e com a Procuradoria Geral da República. Nelas há a comprovação que postagens com fake news resultaram em mais de um milhão de compartilhamentos o Facebook e no Instagram, em poucas horas.

Diante desses dados, o presidente da Corte, o ministro Luís Roberto Barroso, encaminhou o documento para a Polícia Federal que abriu uma apuração. O ministro suspeita que houve “uma motivação política na operação” e uma “orquestração para desacreditar o sistema e as instituições”.

“Milícias digitais entraram imediatamente em ação tentando desacreditar o sistema. Há suspeita de articulação de grupos extremistas que se empenham em desacreditar as instituições, clamam pela volta da ditadura e muitos deles são investigados pelo STF”. A rede zumbi envolvia computadores sediados no Brasil, na Nova Zelândia e nos Estados Unidos, conforme a apuração inicial do próprio TSE.

Essa milícia digital aproveitou a crise de imagem do tribunal para voltar a defender o voto impresso e para dizer que as urnas eletrônicas não são confiáveis, apesar de serem usadas há 24 anos no Brasil sem qualquer comprovação de fraude. “Se alguém trouxer um documento, uma prova, de que ocorreu alguma coisa errada, nós vamos imediatamente investigar. Ninguém aqui é apaixonado por urnas eletrônicas, somos apaixonados por eleições limpas”, afirmou Barroso.

Atraso na apuração

Um outro evento que impulsionou a rede de boatos foi o atraso em quase três horas na apuração dos votos. Neste caso, a demora, conforme o TSE, ocorreu porque não foi possível fazer todos os testes necessários no supercomputador que passou a ser usado na totalização dos votos neste ano. Antes, essa apuração era realizada pelos 26 tribunais regionais eleitorais. Neste ano, por sugestão da Polícia Federal, passou a ser centralizado o TSE.

O computador deveria ter sido entregue pela empresa Oracle, que venceu uma licitação, em março. Mas só o foi em agosto. Esse atraso afetou a inteligência artificial da máquina, porque fez com que menos testes fossem realizados, o que comprometeu a conclusão da apuração. “Ele [o computador] aprendeu pouco a entender o fluxo de informação que chega, que é uma quantidade muito alta de dados em um período muito curto”, explicou o secretário de tecnologia da informação do TSE, Giuseppe Janino.

Ainda assim, Barroso minimizou o atraso. Comparou a demora a um carro de fórmula um que precisa parar no box para fazer um reparo e, ainda assim, vende a corrida. “Tem país esperando há 14 dias a divulgação final dos resultados e o mundo não desabou por causa disso”, disse o ministro em alusão ao pleito nos Estados Unidos. Por lá, boa parte dos votos são em cédulas e impressas e, em alguns Estados, a contagem não foi concluída, apesar de o pleito ter ocorrido em 3 de novembro.

Texto de Afonso Benites. Publicado originalmente por EL PAÍS, edição de 17.11.2020


Eleições Municipais 2020: Urnas têm um Bolsonaro eleito e 75 'Bolsonaros' derrotados

O vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos), filho do presidente da República, foi reeleito para seu cargo na Câmara Municipal do Rio de Janeiro neste domingo (15/11). Ele recebeu 71 mil votos — uma queda de mais de 30% em relação aos 106 mil votos que obtivera. Carlos Bolsonaro também perdeu o posto de vereador mais votado no Rio de Janeiro, que havia conquistado em 2016, para Tarcisio Motta (Psol), eleito com mais de 86 mil votos.

Mas o filho do presidente foi uma exceção entre os candidatos que estiveram nas urnas com o famoso sobrenome de sua família. Um levantamento da BBC News Brasil com candidatos que concorreram com o nome "Bolsonaro" mostra que apenas Carlos teve sucesso.

No total, 76 "Bolsonaros" candidatos a vereador, a vice-prefeito e a prefeito (estes em Jaboticabal e Várzea Paulista, em SP) foram derrotados. Houve também políticos que foram impedidos de usar o nome de Bolsonaro para concorrer.

O presidente também teve um resultado ruim entre os candidatos que apoiou diretamente em suas lives na internet, com dois terços deles derrotados neste domingo.

Entre os candidatos que utilizaram o nome "Bolsonaro", alguns possuem ligação real com o presidente.

É o caso de Rogeria Bolsonaro (Republicanos), ex-mulher de Jair e mãe de Carlos, que disputou uma vaga na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro. Seu nome na urna é "Rogeria Bolsonaro" e no site do TSE seu nome completo aparece como "Rogeria Nantes Braga Bolsonaro".

No passado, em 2000, quando era rompido com Rogeria, Jair Bolsonaro tentou impedir na Justiça a ex-mulher de usar seu sobrenome para concorrer a uma eleição. Na ocasião, ele também lançou a candidatura de Carlos, então com apenas 17 anos, para concorrer e derrotar a mãe. A estratégia deu certo na época, e Carlos foi eleito.

Neste ano, no entanto, Rogéria concorreu com o apoio de seus filhos, que chegaram a ajudá-la, mesmo tendo Carlos também na disputa. E Rogeria, hoje reconciliada com Jair, fez campanha defendendo a gestão do ex-marido na Presidência.

"O homem que diziam não ter competência, (sic) salvou o Brasil em meio a (sic) crise mundial", escreveu ela no Twitter sobre Jair Bolsonaro.

Rogeria não conseguiu se eleger. Recebeu apenas 2.034 votos (0,08%). 

Um parente de Jair Bolsonaro que usou o sobrenome nas urnas também foi derrotado. Marcos Bolsonaro (PSL), que é primo distante do presidente, concorreu a prefeito de Jaboticabal (SP) e recebeu 4% dos votos, ficando em último lugar na disputa.

Outra candidata que usou o sobrenome Bolsonaro nas eleições, sem sucesso, foi Walderice Santos da Conceição, conhecida como Wal do Açaí, que concorreu a vereadora em Angra dos Reis (RJ). Na urna, ela aparecia com o nome Wal Bolsonaro (Republicanos).

Wal era funcionária que constava da folha de pagamento do gabinete de Jair Bolsonaro quando ele era parlamentar, mas foi flagrada pelo jornal Folha de S.Paulo trabalhando em sua loja de açaí na região de Angra dos Reis em horário de expediente. Ela é alvo de uma investigação sobre o caso.

Na eleição de domingo, ela recebeu menos de 300 votos e não conseguiu se eleger.

'Donald Trump Bolsonaro'

A grande maioria dos "Bolsonaros" derrotados eram candidatos nanicos que usaram o nome para puxar votos entre os apoiadores do presidente.

Em diversos casos, a Justiça Eleitoral proibiu o uso do sobrenome Bolsonaro por candidatos que tentaram. Foi o caso de João Santana, do PSL, que queria concorrer ao cargo de vereador em Brusque (SC) com o nome de "Donald Trump Bolsonaro".

A Justiça Eleitoral decidiu que o candidato não era conhecido por esse apelido e portanto rejeitou sua candidatura. Essa foi a mesma justificativa usada em outros casos semelhantes. Com seu nome real, João Santana acabou não sendo eleito.

A BBC News Brasil contou pelo menos dez candidatos "Bolsonaro" que foram impedidos de usar o nome, tiveram suas candidaturas impugnadas ou desistiram.

Mas muitos conseguiram usar o nome sem obstáculos legais.

Em alguns casos, o sobrenome do presidente aparecia apenas como parte de uma alcunha ("Capitão de Bolsonaro", "Gil do Bolsonaro", "Bolsonaro Sergipano", "Rafa Apoiadores de Bolsonaro", entre outros). Mas a maioria optou por usar o sobrenome do presidente como se fosse parte de seu próprio nome.

Um levantamento feito pela BBC News Brasil mostra que houve vereadores derrotados em todas as cinco regiões — e em algumas cidades houve mais de um "Bolsonaro" concorrendo:

Centro-Oeste: Anápolis (GO), Campo Grande (MS), Bataguassu (MS)

Nordeste: Jequié (BA), Salvador (BA), Aracaju (SE), Nossa Senhora do Socorro (SE), Capitão de Campos (PI), Maceió (AL), Dom Basílio (BA), Santaluz (BA), Irecê (BA), Santa Inês (MA), Imperatriz (MA), Camaragibe (PE), Lagoa de Itaenga (PE), Tibaú do Sul (RN), Simão Dias (SE), Santa Cruz do Capibaribe (PE)

Norte: Tomé-Açú (PA), Boa Vista (RR), Manaus (AM), Machadinho D'Oeste (RO), Laranjal do Jari (AP), Cruzeiro do Sul (AC), Palmas (TO), Parauapebas (PA)

Sudeste: Campinas (SP), Belo Horizonte (MG), Guaimbê (SP), São Fidélis (RJ), Ibatiba (ES), Taboão da Serra (SP), Guarujá (SP), Teresópolis (RJ), Ribeirão Bonito (SP), Ilhabela (SP), Jaú (SP), Rio de Janeiro (RJ), Pirassununga (SP), Guarulhos (SP), Iacanga (SP), Angra dos Reis (RJ), Piracicaba (SP), Taiuva (SP), Marechal Floriano (ES), Serra (ES), Conselheiro Lafaiete (MG), Vespasiano (MG), Carapicuíba (SP), Arujá (SP), Ribeirão Preto (SP), São Vicente (SP), Santa Rosa de Viterbo (SP), Dom Roseira (SP), São Domingos da Prata (MG)

Sul: Águas Mornas (SC), Bento Gonçalves (RS), Guaíba (RS), Capão da Canoa (RS), Curitiba (PR), Esteio (RS), Goioerê (PR), Içara (SC), Xaxim (SC)

Daniel Gallas, da BBC News Brasil em Londres

Como agem os inimigos da democracia

Inconformados com a redemocratização não descansarão enquanto não realizarem sua obra deletéria.

O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, disse que “milícias digitais entraram em ação tentando desacreditar o sistema” de votação e apuração eleitoral, referindo-se aos ataques virtuais sofridos pela Justiça Eleitoral no primeiro turno das eleições municipais. E o ministro foi além: disse que “há suspeita de articulação de grupos extremistas que se empenham em desacreditar as instituições, clamam pela volta da ditadura e muitos deles são investigados pelo Supremo Tribunal Federal”.

Trata-se de grave revelação, que demanda investigação policial e punição exemplar dos envolvidos. A suspeita levantada pelo ministro Barroso mostra que estamos diante de um atrevido repto à democracia.

A estratégia desses criminosos é simples: semear a dúvida sobre as instituições democráticas para desmoralizá-las aos olhos dos cidadãos, fortalecendo o discurso autoritário dos que pretendem governar diretamente com o “povo”, sem a intermediação do establishment político-partidário.

A suspeita sobre a lisura do sistema de votação é central nessa estratégia. Os inimigos da democracia a levantam para questionar a legitimidade do resultado da eleição se este lhes for desfavorável. A rigor, segundo essa narrativa, nem haveria necessidade de eleição, pois o único resultado possível de qualquer consulta popular, desde que não haja “fraude”, é a vitória incontestável dos liberticidas.

Ou seja, se o vencedor da eleição não fizer parte dessa gangue será imediatamente desqualificado como representante do povo e será denunciado como preposto do “sistema”, supostamente desenhado para impedir, por meio de maquinações e conspirações, que a vontade popular seja realizada.

Esse embuste obviamente nada tem a ver com democracia. Oposição é fundamental num regime democrático, mas deixar de reconhecer a legitimidade da vitória eleitoral de um adversário é coisa bem diferente: significa negar a alternância do poder, sem a qual tiranos se perpetuam.

Parece sintomático, assim, que o presidente do TSE tenha mencionado que os suspeitos do ataque ao sistema da Justiça Eleitoral sejam extremistas que “clamam pela volta da ditadura”, pois esse parece ser o fulcro do plano original desses marginais que o bolsonarismo trouxe ao centro da política nacional.

Os inconformados com a redemocratização do Brasil não descansarão enquanto não realizarem sua obra deletéria. As manifestações contra o Supremo Tribunal Federal e contra o Congresso ao longo do governo de Jair Bolsonaro foram apenas um aperitivo do que essa gente é capaz. A criação de um clima de desconfiança generalizada, que esgarça laços de solidariedade e inviabiliza a democracia, é o passo seguinte.

Por isso, é reconfortante saber que a Justiça Eleitoral não somente manteve intacto o sistema de votação, reconhecidamente um dos mais seguros do mundo, como reagiu rapidamente ao ataque que sofreu e indicou de maneira clara que tipo de ideologia criminosa o motivou. Os brasileiros devem saber que suas eleições são limpas, de modo que não pairem dúvidas sobre a legitimidade dos eleitos.

Para que a democracia seja preservada, contudo, é preciso que Jair Bolsonaro, na condição de chefe de Estado, pare de questionar a confiabilidade das urnas eletrônicas, como fez seguidas vezes desde que chegou ao poder e tornou a fazer depois das eleições de domingo passado – como a justificar a acachapante derrota que sofreu.

A mudança de comportamento do presidente é especialmente necessária ante a suspeita de que houve, nas palavras do ministro Barroso, uma “orquestração” contra o sistema eleitoral e as instituições – ou seja, o ataque teria sido realizado apenas com o intuito de alimentar a narrativa segundo a qual o sistema não é confiável – e que essa “orquestração” teria como protagonistas conhecidos manipuladores das redes sociais. Cabe então a Bolsonaro desvincular-se dessa trama, expressando sua confiança no sistema; se não o fizer, estará se prestando ao vergonhoso papel de cúmplice da trama.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 18.11.2020.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Noronha adia julgamento de recursos de Flávio Bolsonaro para suspender inquérito das ‘rachadinhas’

Ministro disse que recebeu memorial enviado pela defesa do senador e pediu vista (mais tempo) para analisar o caso antes de votar

O ministro João Otávio de Noronha, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), pediu vista e adiou o julgamento de três recursos do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) para travar o inquérito que apura peculato e lavagem de dinheiro em seu antigo gabinete na Assembleia Legislativa do Rio, o caso das ‘rachadinhas’. O ato suspende a análise dos pedidos do filho do presidente, que não tem data para serem retomados.

Durante a sessão, o ministro Felix Fischer, relator dos habeas corpus, questionou Noronha sobre o pedido de vista, alegando que ele sequer havia lido seu voto antes do ministro pedir para suspender o julgamento. Noronha respondeu que havia recebido um memorial da defesa de Flávio nesta segunda, 16, e queria ter tempo de analisá-lo por se tratar de um ‘caso complexo, de alta repercussão’.

Ministério Público do Rio liga ‘rachadinha’ a apartamentos de Flávio, aponta valor ‘incalculável’ intermediado por Queiroz e detalha ‘enriquecimento ilícito’ do senador

Noronha, que presidiu o STJ até agosto deste ano, atendeu o governo Bolsonaro em 87,5% das decisões individuais que tomou na Corte, segundo levantamento feito pelo Estadão em junho. Foi o ministro quem livrou da prisão o ex-assessor parlamentar Fabrício Queiroz durante o recesso do Judiciário. A medida foi revista por Felix Fischer.


O ministro João Otávio de Noronha, do Superior Tribunal de Justiça. Foto: Dida Sampaio / Estadão

O STJ havia agendado para esta terça, 17, o julgamento de três pedidos de Flávio que questionam a fundamentação da quebra de sigilo autorizada pelo juiz Flávio Itabaiana, o compartilhamento de dados entre o Ministério Público do Rio e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e a validação de provas do inquérito, agora que o senador ganhou foro privilegiado no Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio.

Um quarto recurso que também foi adiado por Noronha tratava da ordem de prisão preventiva decretada contra o ex-assessor parlamentar Fabrício Queiroz, que hoje cumpre a cautelar em casa por decisão do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal.

Todos os pedidos já haviam sido negados em caráter por Fischer, considerado linha-dura na Quinta Turma do STJ. Em outubro, por exemplo, o ministro negou suspender o inquérito das ‘rachadinhas’ ao vislumbrar que não houve prejuízo à defesa do senador que justificaria a medida. A defesa de Flávio alega que, uma vez que teve o foro reconhecido no Órgão Especial do TJRJ, as decisões de primeira instância do caso deveriam ser todas anuladas e o inquérito reiniciado.

Denúncia. Flávio Bolsonaro foi denunciado pela Promotoria do Rio pelos crimes de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa no esquema das ‘rachadinhas, no qual assessores do gabinete do parlamentar na Assembleia Legislativa do Rio devolviam parte ou a quase totalidade dos salários ao ex-assessor Fabrício Queiroz, que então usava o dinheiro para quitar despesas do senador, como o pagamento da escola das filhas e o financiamento de imóveis no Rio.

O filho do presidente é apontado como o líder da organização criminosa. De acordo com o MP, o esquema teria desviado ao menos R$ 6,1 milhões dos cofres públicos da Assembleia fluminense e levaram a um ‘enriquecimento ilícito’ de Flávio ao longo dos anos.

Um dos exemplos é a compra de uma cobertura no bairro de Laranjeiras, na zona sul do Rio. A quebra dos sigilos bancários e fiscais autorizadas pela Justiça apontam que o senador adquiriu o imóvel por R$ 2,2 milhões e que depósitos foram feitos por Queiroz e o ex-chefe de gabinete de Flávio, ‘Coronel Braga’, às vésperas dos vencimentos dos pagamentos relacionados à compra.

O primeiro depósito, feito pelo faz tudo da família Bolsonaro se deu no mesmo mês em que Flávio e sua esposa Fernanda pagaram o sinal do imóvel. Já o segundo, feito por coronel Braga se deu logo antes do vencimento da segunda parcela do financiamento do imóvel.


O senador Flávio Bolsonaro. Foto: Gabriela Biló/Estadão

Ao analisar as movimentações financeiras feitas por Flávio e Fernanda entre 2010 e 2014, o MP apontou que o volume de pagamentos em espécie realizados pelo casal ‘seria incompatível com os recursos auferidos de forma lícita e declarados à Receita Federal, restando evidente a utilização de dinheiro em espécie desviado da ALERJ pelo esquema das ‘rachadinhas’ no pagamento de despesas pessoais do líder da organização criminosa’.

Analisando as receitas e despesas do casal, os investigadores identificaram ‘um saldo a descoberto’ de R$ 977.611,26, ‘correspondente à estimativa de parte do enriquecimento ilícito de Flávio e Fernanda’.

Após a denúncia, a Promotoria desmembrou o inquérito para focar em transações ainda não identificadas ligadas a Fabrício Queiroz, que teria movimentado uma quantia ‘incalculável’ de dinheiro em espécie para pagamento de despesas de Flávio.

Paulo Roberto Netto / O Estado de São Paulo, em 17.11.2020.