terça-feira, 17 de novembro de 2020

Mortes por covid-19: Brasil tem 216 óbitos por coronavírus nas últimas 24h; total de mortes passa de 166 mil

O coronavírus já infectou oficialmente 5.876.464 pessoas e causou a morte de 166.014 delas no Brasil, segundo o boletim mais recente do Ministério da Saúde, divulgado nesta segunda (16/11).

Deste total, 13.371 casos da doença e 216 óbitos foram registrados nas últimas 24 horas.


Foto à noite, mostra mulher parada em ponto de ônibus com máscara e, ao fundo, uma projeção de luz no prédio do Congresso dizendo: Luto 100 mil CRÉDITO,REUTERS/ADRIANO MACHADO

Homenagem em Brasília às mais de 100 mil pessoas que perderam a vida para a covid-19 no país; marca foi ultrapassada em agosto

O Estado com o maior número de vítimas fatais segue sendo São Paulo (40.576), seguido por Rio de Janeiro (21.301), Minas Gerais (9.517) e Ceará (9.440).

O Brasil continua como o segundo do mundo com maior número de mortes na pandemia do novo coronavírus, depois apenas dos Estados Unidos, que têm mais de 247 mil mortes pela covid-19, segundo levantamento da Universidade Johns Hopkins.

O Brasil foi superado em número de casos, entretanto, pela Índia (8,8 milhões), agora em segundo lugar depois dos Estados Unidos (11,2 milhões).

No resto do mundo

Mortes

Mortalidade*

Total de casos

Novos casos

0

10

100

Mil

5 mil

**

Estados Unidos 246.163 75,3 11.155.112

24 DE JAN

16 DE NOV

Brasil 166.014 79,3 5.876.464

Índia 130.519 9,6 8.874.290

México 98.861 78,3 1.009.396

Reino Unido 52.147 77,7 1.390.681

Itália 45.733 75,4 1.205.881

França 44.548 68,5 1.981.827

Irã 41.979 51,3 775.121

Espanha 41.253 88,3 1.496.864

Argentina 35.727 80,5 1.318.384

Peru 35.231 110,1 937.011

Colômbia 34.223 68,9 1.205.217

Rússia 33.184 22,8 1.932.711

África do Sul 20.314 35,1 752.269

Indonésia 15.296 5,7 470.648

Chile 14.863 79,4 532.604

Bélgica 14.616 127,3 537.871

Equador 13.016 76,2 180.676

Alemanha 12.833 15,4 819.127

Iraque 11.712 30,5 521.542

Turquia 11.601 14,1 417.594

Canadá 11.075 29,9 305.449

Polônia 10.491 27,7 733.788

Ucrânia 10.161 23,0 561.581

Romênia 9.075 46,5 365.212

Bolívia 8.859 78,0 143.371

Holanda 8.533 50,0 452.856

Filipinas 7.839 7,4 409.574

Paquistão 7.193 3,4 361.082

Egito 6.465 6,6 111.009

República Tcheca 6.416 60,2 465.523

Bangladesh 6.215 3,9 434.472

Suécia 6.164 61,8 177.355

Arábia Saudita 5.676 16,8 353.556

Marrocos 4.850 13,5 296.189

China 4.742 0,3 91.872

Guatemala 3.938 22,8 115.032

Suíça 3.536 41,5 269.974

Portugal 3.472 33,9 225.672

Hungria 3.190 32,9 147.456

Panamá 2.881 69,0 147.667

Honduras 2.839 29,6 103.239

Israel 2.735 32,6 325.035

Tunísia 2.396 20,7 81.003

República Dominicana 2.286 21,5 134.203

Bulgária 2.282 32,4 101.770

Argélia 2.168 5,1 68.589

Moldávia 2.035 50,2 89.843

Irlanda 1.984 41,2 68.356

Bósnia-Herzegóvina 1.973 59,4 72.689

Cazaquistão 1.899 10,4 121.653

Áustria 1.887 21,2 208.613

Japão 1.885 1,5 120.169

Jordânia 1.843 18,5 149.539

Armênia 1.811 61,4 118.870

Afeganistão 1.626 4,4 43.403

Paraguai 1.602 23,0 72.099

Mianmar 1.599 3,0 70.161

Etiópia 1.581 1,4 103.056

Costa Rica 1.566 31,3 124.592

Omã 1.350 28,0 120.718

Macedônia do Norte 1.345 64,6 47.636

Quênia 1.287 2,5 70.804

Nepal 1.230 4,4 210.973

Quirguistão 1.207 19,1 67.469

Grécia 1.165 11,1 76.403

Nigéria 1.163 0,6 65.305

Sudão 1.119 2,7 14.728

Croácia 1.082 26,0 85.519

Bielorússia 1.053 11,1 115.448

El Salvador 1.052 16,4 36.669

Sérvia 1.030 14,8 87.381

Líbia 1.025 15,3 74.324

Azerbaijão 985 9,9 77.083

Austrália 907 3,6 27.760

Venezuela 855 3,0 97.739

Kuwait 842 20,4 137.329

Kosovo 833 45,1 29.805

Eslovênia 831 40,0 55.544

Líbano 827 12,1 106.446

Geórgia 778 19,4 85.952

Dinamarca 764 13,3 63.331

Albânia 631 21,9 28.432

Iêmen 605 2,1 2.078

Uzbequistão 598 1,8 70.444

Territórios Palestinos 572 11,8 63.867

Emirados Árabes Unidos 534 5,5 151.554

Eslováquia 526 9,6 87.276

Coreia do Sul 494 1,0 28.998

Camarões 433 1,7 22.692

Montenegro 396 63,1 27.773

Finlândia 371 6,7 19.419

Zâmbia 353 2,0 17.187

Síria 350 2,1 6.759

Bahrein 337 21,5 84.882

Senegal 329 2,1 15.801

Angola 324 1,1 13.615

Gana 323 1,1 50.376

República Democrática do Congo 321 0,4 11.839

Malásia 313 1,0 48.520

Noruega 294 5,5 29.514

Lituânia 285 10,2 35.911

Zimbábue 257 1,8 8.897

Madagascar 250 1,0 17.310

Luxemburgo 236 39,1 27.256

Catar 235 8,4 136.028

Haiti 232 2,1 9.188

Jamaica 231 7,9 9.929

Malauí 185 1,0 5.971

Mauritânia 165 3,7 7.979

Bahamas 163 42,3 7.256

Nicarágua 158 2,4 5.661

Uganda 150 0,4 16.257

Mali 141 0,7 3.948

Guadalupe 139 34,8 8.098

Guiana 139 17,8 4.894

Namíbia 138 5,6 13.555

Cuba 131 1,2 7.639

Costa do Marfim 128 0,5 20.988

Letônia 126 6,5 10.636

Gâmbia 122 5,4 3.705

Eswatini 119 10,5 6.105

Moçambique 116 0,4 14.514

Suriname 115 20,0 5.275

Trinidade e Tobago 112 8,1 6.096

Somália 107 0,7 4.301

Cabo Verde 103 18,9 9.840

Chade 101 0,7 1.603

Malta 98 22,3 8.137

Belize 94 24,5 4.883

Congo 92 1,8 5.515

Tadjiquistão 85 0,9 11.649

Guiné Equatorial 85 6,5 5.104

Libéria 82 1,7 1.512

Estônia 81 6,1 7.848

Andorra 76 98,7 5.914

Guiné 75 0,6 12.624

Serra Leoa 74 1,0 2.391

Guiana Francesa 70 24,7 10.876

Níger 70 0,3 1.316

Burkina Fasso 68 0,3 2.652

Uruguai 67 1,9 4.104

República Centro-Africana 63 1,4 4.900

Sri Lanka 61 0,3 17.674

Djibuti 61 6,4 5.655

Togo 61 0,8 2.693

Tailândia 60 0,1 3.878

Sudão do Sul 59 0,5 3.012

Gabão 58 2,7 9.084

Polinésia Francesa 56 20,2 12.121

Ilhas do Canal da Mancha 48 28,2 1.046

Mayotte 46 17,7 4.943

Ruanda 45 0,4 5.491

Maldivas 44 8,5 12.314

Aruba 44 41,6 4.668

Lesoto 44 2,1 2.041

Benin 43 0,4 2.884

Guiné-Bissau 43 2,3 2.419

San Marino 42 124,3 1.290

Chipre 40 3,4 7.285

Martinica 37 9,8 4.732

Vietnã 35 0,0 1.283

Ilha Reunião 31 3,5 7.161

Botsuana 30 1,3 9.103

Cingapura 28 0,5 58.124

Islândia 25 7,4 5.205

Nova Zelândia 25 0,5 2.005

Ilha de Man 25 29,7 363

Ilha de São Martinho (parte francesa) 24 64,4 939

Tanzânia 21 0,0 509

São Tomé e Príncipe 16 7,6 965

Cruzeiro Diamond Princess 13 712

Maurício 10 0,8 491

Bermuda 9 14,3 223

Liechtenstein 7 18,5 989

Taiwan 7 0,0 603

Papua Nova Guiné 7 0,1 602

Comores 7 0,8 579

Barbados 7 2,4 250

Ilhas Turks e Caicos 6 15,9 720

Antigua e Barbuda 4 4,2 134

Brunei 3 0,7 148

Curaçao 2 1,2 1.374

Mônaco 2 5,2 552

Ilhas Cayman 2 3,1 257

Santa Lúcia 2 1,1 171

Fiji 2 0,2 35

Cruzeiro MS Zaandam 2 9

Gibraltar 1 3,0 907

Burundi 1 0,0 630

Ilhas Virgens Britânicas 1 3,4 71

Montserrat 1 20,0 13

Saara Ocidental 1 0,2 10

Eritreia 0 0,0 518

Ilhas Faroe 0 0,0 498

Mongólia 0 0,0 434

Butão 0 0,0 377

Camboja 0 0,0 303

Seicheles 0 0,0 160

São Bartolomeu 0 0,0 109

São Vicente e Granadinas 0 0,0 78

Dominica 0 0,0 68

Granada 0 0,0 33

Nova Caledônia 0 0,0 30

Timor Leste 0 0,0 30

Vaticano 0 0,0 27

Laos 0 0,0 24

São Cristóvão e Nevis 0 0,0 19

Groenlândia 0 0,0 18

Ilhas Salomão 0 0,0 16

Saint-Pierre e Miquelon 0 0,0 16

Ilhas Malvinas ou Falkland 0 0,0 15

Anguilla 0 0,0 3

Ilhas Marshall 0 0,0 1

Vanuatu 0 0,0 1

BBC News Brazil, em 17.11.2020

Eleições Brasil 2020

Bolsonaro respira por aparelhos e sobrevive politicamente refém do acordo com o Centrão

 Quase 150 milhões de eleitores estavam aptos a votar no domingo e eram grandes as incertezas desde o início, em especial por causa da pandemia. Mas a abstenção – uma das grandes preocupações – não atingiu 25% (em 2018 foi de 20,3%). Vencidas as legítimas angústias, foi atendido o chamamento republicano à renovação da representação política em nossas cidades, nos próximos quatro anos.

A covid-19, que matou mais de 165 mil brasileiros, mantém entubado um finalista das eleições em Goiânia. O presidente da República não administrou essa crise com a seriedade exigida, oscilando entre negacionismo dos fatos e sonegação de informações. Isso obrigou a sociedade a pedir proteção ao STF, exigindo dos veículos de mídia a formação de inacreditável consórcio para ser garantido o acesso à informação. A reação a isso foi implacável nas urnas.

Os eleitores paulistanos chancelaram, em contraponto, o empenho do prefeito na gestão da crise da pandemia e da própria cidade, mesmo lutando contra câncer agressivo. Mas ele terá de enfrentar, nesta travessia rumo ao segundo turno, críticas por promessas não cumpridas (afinal, ele é o prefeito), a seu contestado vice e à sua ligação com Doria, com alta rejeição na capital.

Ao mesmo tempo, evidenciando o desbotamento do lulismo e o enfraquecimento do petismo, com a pior votação da história, a esquerda foi representada em São Paulo por um jovem líder oriundo do movimento dos sem-teto. O PSOL se fortaleceu como partido relevante de esquerda hoje no Brasil.

O declínio do lulismo era mais previsível que o do bolsonarismo. Precoce, já que o presidente conquistou o poder há um ano e dez meses, gozando de aparentes índices de aprovação. Bolsonaro respira por aparelhos e sobrevive politicamente refém do acordo celebrado com o Centrão, o qual jurou solenemente em campanha que jamais procuraria. Pode ser, de fato, que sua aprovação se ampare apenas na distribuição do auxílio emergencial, que logo cessará, e que João Santana, no Roda Viva, tenha acertado na premonição quando afirmou que não será reeleito presidente.

Sem rumos na economia, sem compromisso com a agenda anticorrupção, o presidente transmite a nítida percepção de estar perdido. Nossos “líderes” hoje são os presidentes da Câmara e do Senado, investigados, que querem sua reeleição, vedada pela Constituição. Maia não pauta o fim do foro privilegiado e a prisão após a condenação em segunda instância, nem trata como prioridade a reforma político-partidária e as novas medidas contra a corrupção. No entanto, considera natural retroceder em matéria de punição da lavagem de dinheiro e o enfraquecimento da lei de improbidade administrativa, diminuindo e suavizando penas de corruptos.

A votação decadente do filho Carlos para vereador no Rio, que despencou de 106 mil para 70 mil votos de 2016 para cá, apesar da expectativa de crescimento, fala por si. Perdeu a condição de mais votado. Lembremos que há quatro anos Carlos era filho de deputado e hoje é filho do presidente da República.

Candidata a vereadora apoiada pelo presidente em Curitiba teve parcos 936 votos e a famosa Wal do Açaí, de Angra, que mereceu entusiasmado vídeo de apoio, recebeu 238. O sintomático apagamento da publicação no Facebook do presidente onde os apoiava nestas eleições é sinal inequívoco da contundente derrota política.

Nota-se também que o candidato apoiado pelo governador do Pará, Helder Barbalho, investigado por corrupção, foi barrado: seu primo Priante. E a presença de número recorde de negros, de duas pessoas trans, uma pessoa travesti e de mandatos coletivos são excelentes novidades na Câmara de São Paulo e na de Belo Horizonte, onde uma pessoa travesti foi a mais votada.

Pela terceira vez em São Paulo, Russomanno dispara em primeiro e derrete no final. Parece que ele começa embalado pela popularidade televisiva de programas de gosto duvidoso, onde se apresenta como espécie de xerife de consumidor. Nesta campanha chegou a afirmar que moradores de rua estavam mais protegidos da covid-19 por não tomarem banho. Quase foi considerado ficha-suja há alguns anos, escapando no STF, apesar de condenado em 2019 a devolver valores de salários de funcionária da Câmara que servia a sua produtora particular.

Disseminando fake news acerca de prestadores de serviços ao candidato do PSOL, Russomanno foi condenado pela Justiça Eleitoral a retirar vídeos do ar e ainda tentou com insucesso censurar pesquisas, que há mais de 30 anos são divulgadas com a mesma metodologia. Prevaleceu o respeito ao direito à informação. Por muito pouco Arthur “Mamãe Falei” não o deixa em quinto lugar.

O eleitor de São Paulo, como o de Belém, transmitiu recado: não quer fichas-cinzentas nem políticos ligados a eles. As urnas de 2020 nos mostraram sinal amarelo para os pretensos “salvadores da pátria” e disseminadores de fake news, assim como a ascensão do centro.

Em duas semanas o desenho final se consolidará. Esperamos ter debate mais qualificado sobre políticas públicas.

Roberto Livianu, o autor deste artigo, é doutor em Direito pela USP e Procurador de Justiça em São Paulo. Idealizou e preside o Instituto Não Aceito Corrupção. Publicado originalmente por O Estado de São Paulo, edição de 17.11.2020.

A pandemia do ódio, Trump e o Brasil

A governança é arte de promover a amizade entre cidadãos, laço essencial do Estado

Tristes povos os que suportam mal perigos naturais e rompem os laços de sociedade. Coletivos bem constituídos no campo civil enfrentam doenças em melhores condições do que os carentes de elos internos sólidos. Uma via para entender o caso é o livro de Tucídides sobre a catástrofe militar do Peloponeso.

Espartanos invadem o solo onde governa Péricles, cuja política, mesmo apoiada pela Assembleia, enfrenta a desunião social. A pandemia também ameaça o líder. Deixando o poder, logo ele morre como vítima. A narrativa de Tucídides mostra como os atenienses reagem à peste. O mal biológico acelera a fragmentação do regime. No início, “nem os médicos puderam debelar a praga, por ignorância do que era ela. Eles próprios morreram mais rápido pela proximidade dos enfermos” (The Peloponnesian War, tradução de Th. Hobbes, Livro II, 47).

O termo para designar a ignorância dos médicos e sua morte é agnoia (ausência de saber, erro). Cidadãos morrem por agir “normalmente” na moléstia. Muitas lições a passagem traz hoje aos médicos, políticos, militares, empresários, trabalhadores. Raros aprendem com a pandemia política ou biológica. O “normal” reside em ignorar o perigo.

“O aspecto mais terrível da doença é a apatia das pessoas atingidas (...). O contágio ocorre nos cuidados de uns doentes para com os outros e os mata em rebanho. É a maior causa da mortandade, pois se os doentes se abstêm por medo de visitar uns aos outros, todos perecem por falta de cuidados (...). Quem sobrevive com maior frequência se compadece em face dos enfermos e moribundos, pois conhecem a doença por experiência própria e confiam na imunidade. O mal nunca atacaria a mesma pessoa duas vezes com efeitos letais. Eles recebem elogios de todos e, no entusiasmo alegre daquelas circunstâncias, alimentam a esperança frívola de que pelo resto da vida não serão atingidos por outras doenças.”

Quem vive no campo vem para a cidade e perece espremido. Mortos postos em pilhas, cada um enterra os seus como pode. Corpos para serem incinerados são lançados em fogueiras alheias. Não existe a polis, a sociedade, a vergonha (Aidós), o respeito. Mesmo as aves carniceiras fogem dos corpos apodrecidos.

Elias Canetti comenta a passagem de Tucídides para evidenciar o fenômeno das massas que perdem o sentido da vida social e a visão política (Massa e Poder). Quando regimes políticos sucumbem à anomia, doenças oportunistas corroem suas bases e ressurge o estado de natureza. Vemos o interesse de Hobbes pela Guerra do Peloponeso: Tucídides permite entender o pacto proposto no Leviatã. (cf. Mario Ricciardi, Le retour du Léviathan. Peur, contagion, politique). Sob Péricles, brilhante estadista, embora tisnado pela demagogia, Atenas perde forças vitais em razão da inimizade crescente, não apenas em face dos atacantes externos, mas nas lutas internas. Quando a epidemia chega, o corpo cívico já está fragmentado, sem defesas.

A governança é arte de tecer elos entre cidadãos, promover a sua amizade, laço essencial do Estado. Tal doutrina é posta no diálogo Político de Platão. Se, pelo contrário, o dirigente divide as pessoas, a tirania surge com o signo da morte. Segundo Platão, a polis é ligada internamente pela philia. “O maior bem para a cidade é o que a une e a torna una”(República, 462 a-b). Tal elo faz dos múltiplos indivíduos um conjunto poderoso. “Entre amigos tudo é comum” (República 424 a). O Estado pertence a todos e cada um deve respeitar os concidadãos. No século 20 um jurista inverte a tese platônica e proclama que a política é arte de gerar inimigos internos e externos. Carl Schmitt morreu, mas sua doutrina vive em cabeças ignaras e poderosas. “Não se pode razoavelmente negar: os povos se unem conforme a oposição amigo/inimigo. Tal oposição é uma realidade atual e virtual em todo povo que existe politicamente”(Der Begriff des Politischen, 1927).

A passagem foi usada, de modo infeliz, por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Regimes tirânicos criam o inimigo interno, e assim temos o Holocausto e muitos genocídios. Até o fim da vida Schmitt insiste sobre a inimizade política: “Um povo só está seguro de sua identidade quando, de modo claro e sem equívoco, ele tem um inimigo” (Sobre a Tele-democracia, 1970, in Machiavel/Clausewitz).

Se a democracia grega falece com Péricles e ignora os conselhos platônicos, o que poderíamos dizer ontem dos Estados Unidos dominados por Trump e agora da nossa pátria, cujo presidente fomenta a divisão, gera inimigos, despreza a ciência médica e a própria ameaça da pandemia? Os norte-americanos exorcizaram o pesadelo político que desnorteia seu Estado. Será difícil ali retomar a via da comunidade, estratégica para garantir a força de um povo.

Aqui, infelizmente, as portas da UTI democrática se fecham, a moléstia do ódio e da ignorância corroem os pulmões do País E a liderança política não chega ao calcanhar de Péricles... Ou de qualquer outro estadista digno do título. 

Roberto Romano, o autor deste artigo, publicado hoje, originalmente por O Estado de São Paulo, é Professor da INICAMP e autor de "Razões de Estado e outros Estados da Razão". (Editora Perspectiva.)

A política venceu

O eleitorado aparentemente se cansou da gritaria, da leviandade e do cinismo. A política baseada na arte da negociação não só ganhou fôlego, como se mostrou capaz de seduzir as novas gerações.

Há duas maneiras de reagir a uma derrota eleitoral: como um democrata, aceitando os resultados e cumprimentando o vencedor, ou como um autoritário, inventando amalucadas conspirações para denunciar fraude nas urnas e, assim, deslegitimar o eleito. Como era previsível, muitos bolsonaristas, inspirados no ídolo Donald Trump e no presidente Jair Bolsonaro, preferiram o modo antidemocrático de lidar com o desastre eleitoral que sofreram no domingo passado.

Colaborou para criar o clima de maquinação a tentativa de invasão do sistema eletrônico do Tribunal Superior Eleitoral, notícia que causou confusão bem ao gosto do bolsonarismo. A tal invasão, deflagrada sob medida para colocar em dúvida a lisura do pleito, foi neutralizada e não ameaçou em nenhum momento a segurança da votação. Mas nada disso importa para os bolsonaristas, para os quais a simples menção a um “ataque hacker” foi suficiente para dar feição de verdade à patranha segundo a qual as urnas eletrônicas não são confiáveis – como reiterou irresponsavelmente o presidente Bolsonaro um dia depois da esmagadora derrota que sofreu nas urnas.

Sem nenhuma vocação democrática, aos bolsonaristas só resta mesmo recusar-se a aceitar que poucos candidatos apoiados pelo presidente Bolsonaro foram bem-sucedidos. Dos 13 candidatos a prefeito para os quais o presidente fez campanha, somente 2 foram eleitos e outros 2 estão no segundo turno. No Recife, por exemplo, sua candidata, Delegada Patrícia, chegou em quarto lugar; em Manaus, o postulante bolsonarista, Coronel Menezes, ficou em quinto. 

Entre os candidatos a vereador apadrinhados por Bolsonaro, o desempenho não foi muito melhor. Carlos Bolsonaro, enfant terrible do clã, reelegeu-se para a Câmara do Rio, mas perdeu 36 mil votos entre uma eleição e outra. Wal do Açaí, funcionária fantasma de Jair Bolsonaro quando este era deputado federal, adotou o sobrenome do padrinho e contou com declaração oficial de apoio do presidente, mas obteve pífios 266 votos na eleição para a Câmara de Angra dos Reis.

Mas a maior derrota, sem dúvida, se deu na disputa pela Prefeitura de São Paulo, na qual seu candidato, Celso Russomanno, outrora líder das pesquisas com 30%, chegou em quarto lugar, com 10%. Para piorar, os finalistas no segundo turno são o prefeito tucano Bruno Covas, correligionário de seu maior desafeto, o governador João Doria, e o psolista Guilherme Boulos. Qualquer que seja o desfecho, portanto, o maior colégio eleitoral do País estará sob influência de um franco antagonista de Bolsonaro.

Se serve de consolo para o presidente, a performance do lulopetismo não foi muito melhor. O candidato do PT em São Paulo, Jilmar Tatto, carregado nos ombros por Lula da Silva, teve a pior votação da história do partido na capital, ficando num vergonhoso sexto lugar. E os resultados no resto do País foram igualmente decepcionantes, o que complica muito o projeto petista de liderar o movimento antibolsonarista que vai se formando para enfrentar o presidente na eleição de 2022. 

A debacle bolsonarista e lulopetista nas urnas, dois anos depois de terem protagonizado a polarização que enfiou o País numa crise moral sem precedentes, é uma ótima notícia para a democracia brasileira. Significa que a política tem tudo para recuperar o terreno que os arautos da antipolítica julgaram ter conquistado com a vitória de Bolsonaro.

Significa, também, que o eleitorado aparentemente se cansou da gritaria, da leviandade e do cinismo, cujos protagonistas nada têm a oferecer a um País carente de rumo. Diante da devastação causada pela pandemia e ampliada pelo desgoverno de Bolsonaro, a política tradicional – que envolve uma disputa entre as melhores ideias, e não entre as mentiras mais descaradas – volta a ser valorizada. E é de ressaltar a presença de jovens candidatos competitivos em várias partes do País – o que prova que a política tradicional, baseada na arte da negociação, não só ganhou fôlego, como se mostrou capaz de seduzir as novas gerações.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de São Paulo, 17.11.2020


segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Eleitores rejeitam candidatos de Bolsonaro nas capitais

Nomes para os quais o presidente fez campanha ou que tiveram aval público dele, como Russomano e Crivella, derrapam nas eleições municipais. Baixa popularidade e falta de partido dificultaram construção de alianças.

A maior parte dos candidatos a prefeito de capitais apoiados pelo presidente Jair Bolsonaro foi derrotada no primeiro turno das eleições municipais, realizadas neste domingo (15/11). Apenas Marcelo Crivella (Republicanos), no Rio, e Capitão Wagner (Pros), em Fortaleza, passaram ao segundo turno, que será realizado daqui a duas semanas, em 29 de novembro.

Os outros nomes que tiveram o aval público do presidente mas estão fora da disputa são Celso Russomanno (Republicanos) em São Paulo, Coronel Menezes (Patriota) em Manaus, Bruno Engler (PRTB) em Belo Horizonte, Marcelo Crivella (Republicanos) no Rio e Delegada Patrícia (Podemos) no Recife.

No final de agosto, Bolsonaro declarou que não iria apoiar candidatos a prefeito no primeiro turno, pois isso atrapalharia o seu trabalho como presidente. "Decidi não participar, no primeiro turno, nas eleições para prefeitos em todo o Brasil. Tenho muito trabalho na Presidência da República e, tal atividade tomaria todo meu tempo em um momento de pandemia e retomada da nossa economia”, afirmou, em mensagem em suas redes sociais.

Nos meses seguintes, porém, o presidente passou a pedir votos para alguns candidatos. No caso de Russomanno, Bolsonaro chegou a se reunir e a gravar imagens ao lado do candidato, no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, e liberou alguns de seus auxiliares, como o secretário-executivo do Ministério da Comunicação Fabio Wajngarten, a participar da estratégia da campanha paulistana.

O fracasso do presidente em emplacar a maioria de seus aliados na capitais se deve a uma combinação de fatores, segundo cientistas políticos ouvidos pela DW Brasil. Um deles é o fato de Bolsonaro não estar filiado a uma legenda, portanto sem capacidade de mobilizar estruturas partidárias locais e montar alianças nos municípios.

Outro elemento é a atual taxa de popularidade do presidente, menor do que à registrada pelos ocupantes do Palácio do Planalto que tiveram sucesso em emprestar seu prestígio a candidatos a prefeito e vereador, como Fernando Henrique Cardoso em 1996 e Luiz Inácio Lula da Silva em 2008.

Resultados

Russomanno, que disputou a prefeitura de São Paulo pela terceira vez, terminou em quarto lugar, com 10,5% dos votos válidos. O candidato do Republicanos repetiu o roteiro que já havia percorrido nas últimas duas eleições municipais, em 2012 em 2016: largou em primeiro nas pesquisas de intenção de voto e foi paulatinamente foi perdendo força.

O seu desempenho ruim na urna é um revés na maior cidade do país também para Bolsonaro, que se empenhou pela vitória de Russomanno. Os dois candidatos que foram ao segundo turno, Bruno Covas (PSDB) e Guilherme Boulos (PSOL), são críticos ao presidente.

Na eleição presidencial de 2018, Bolsonaro teve 44,6% dos votos válidos na cidade de São Paulo e venceu em 52 das 58 zonas eleitorais do município. Seu prestígio na capital paulista, porém, está em queda. Segundo pesquisa Datafolha realizada em 9 e 10 de novembro, 50% dos moradores da cidade avaliam o seu governo como ruim ou péssimo, e apenas 23% como ótima ou boa.

No Rio de Janeiro, o atual prefeito Crivella ficou com 21,9% e disputará o segundo turno contra o ex-prefeito Eduardo Paes (DEM), que teve 37%. A cidade é o domicílio eleitoral de Bolsonaro, mas o presidente não foi tão enfático na defesa do bispo — declarou seu voto e liberou o uso de suas imagens pela campanha do candidato do Republicanos, sem se empenhar como fez com Russomanno.

No Recife, Delegada Patrícia, que recebeu o apoio do presidente em 5 de novembro, a dez dias do pleito, ficou em quarto lugar com 14% dos votos válidos. O segundo turno será disputado entre João Campos (PSB), filho do ex-governador Eduardo Campos, morto em um acidente aéreo em 2014, e Marília Arraes (PT), neta do ex-governador Miguel Arraes, morto em 2005.

O apoio de Bolsonaro a Santiago foi comemorado por ela em suas redes sociais, mas provocou uma crise na sua chapa às vésperas do pleito. O Cidadania, partido de seu candidato a vice, Leo Salazar, protestou contra a adesão dela ao presidente e anunciou o afastamento de sua campanha.

Em Fortaleza, Capitão Wagner foi ao segundo turno, em segundo lugar, com 33,3% dos votos válidos, contra Sarto, do PDT, que teve 35,7% dos votos válidos. Apesar do apoio do presidente, Wagner evitou usar a sua imagem em sua campanha e fez um reposicionamento para tentar ir além do eleitorado bolsonarista. Ele também contava com o recall de ter sido candidato a prefeito em 2016, quando chegou ao segundo turno.

Em Manaus, Coronel Menezes ficou em quinto lugar, com 11,3% dos votos. O segundo turno será disputado por Amazonino Mendes (Podemos), que já foi prefeito da cidade por três vezes, teve 23,9%, e David Almeida (Avante), que teve 22,4%.

Em Belo Horizonte, Bruno Engler obteve 9,9% dos votos válidos e terminou em segundo lugar. A disputa foi vencida em primeiro turno pelo atual prefeito da capital mineira, Alexandre Kalil (PSD), com 63,4% dos votos válidos.

Deutsche Welle, em 16.11.2020

Em ensaio para 2022, extrema direita tenta deslegitimar processo eleitoral

Bolsonaro e aliados aproveitam atrasos na apuração para questionar sistema de votação. Para pesquisadores, setores radicais querem plantar semente conspiracionista para contestar eventual derrota na próxima eleição.

Enquanto as zonas eleitorais ainda estavam abertas no pleito municipal deste ano, grupos de WhatsApp formado por apoiadores de Jair Bolsonaro já trocavam mensagens em ritmo frenético questionando a segurança do sistema de votação brasileiro e os resultados que viriam a ser divulgados mais tarde.

A movimentação conspiracionista rapidamente saiu dos grupos de mensagem privada e ser amplificada por políticos. Na noite de domingo (15/11), Joice Hasselmann, deputada federal e candidata a prefeita da capital paulista pelo PSL, compartilhou um post em sua página no Twitter que vinculava a lentidão na apuração dos resultados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a uma possível fraude.

Joice, que recebeu menos de 2% dos votos na disputa, escreveu: "Fraude? Será? Tem todo cheiro". Logo em seguida, seu post recebeu uma marcação adotada pelo Twitter para indicar mensagens potencialmente faltas em contexto eleitoral, com os dizeres: "Esta reivindicação de fraude é contestada". Depois, ela deletou o post.

Nesta segunda-feira (16/11), ao sair do Palácio da Alvorada, Bolsonaro também questionou o sistema de votação. "Nós temos que ter um sistema de apuração que não deixe dúvidas. É só isso. Tem que ser confiável e rápido. Não deixar margem para suposições. Agora [temos] um sistema que desconheço no mundo onde ele seja utilizado (…) Se nós não tivermos uma forma confiável de apurar as eleições, a dúvida sempre vai permanecer", afirmou.

Declarações de Bolsonaro colocando em dúvida as urnas eletrônicas, sem apresentar provas, não são uma novidade. Em 2018, ele afirmou, sem apresentar provas, que havia vencido no primeiro turno, mas fora vítima de fraude. Nesta segunda-feira, o presidente se aproveitou de problemas enfrentados pelo TSE no dia anterior. A divulgação do resultado final atrasou em algumas horas devido a um problema técnico, e o tribunal informou ter sido alvo de um ataque coordenado que tentou sobrecarregar e derrubar seus servidores no domingo, sem sucesso.


Brasilien Jair Bolsonaro (Andre Borges/dpa/picture-alliance)

"Nós temos que ter um sistema de apuração que não deixe dúvidas", disse Bolsonaro, após seus aliados terem colecionado derrotas no pleito de 2020

David Nemer, professor de estudos da mídia da Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos, acompanha cerca de 70 grupos de WhatsApp de bolsonaristas. Ele afirma à DW Brasil que, nestas eleições, os grupos se dedicaram mais a questionar o sistema eleitoral como um todo do que a atacar candidatos específicos. "O bolsonarismo focou no sistema eleitoral, no [ministro Luis Roberto] Barroso, no TSE, e nas urnas. Queriam achar formas para deslegitimar o sistema", diz.

Segundo ele, o plano já estava traçado antes das eleições, mas acabou ganhando tração à medida que o TSE atrasava a divulgação dos resultados. O objetivo dos bolsonaristas, diz, "é plantar agora uma semente conspiratória para que, caso Bolsonaro não seja reeleito 2022, eles possam colher o fruto e dizer que o motivo da derrota foi uma fraude nas urnas".

Para levar essa estratégia adiante, Bolsonaro conta com blogueiros e youtubers de extrema direita, como Allan dos Santos, Bernardo Küster e Oswaldo Eustáquio. Nemer prevê que essa questionamento às urnas será "algo contínuo” nos próximos anos na extrema direita. "Vão ficar nessa pauta por um bom tempo”, diz.

"Eles querem que as pessoas não acreditem mais no sistema eleitoral, para que eles possam definir quem vai ser o próximo presidente", afirma Nemer, que em dezembro passado teve que deixar o país às pressas ao receber ameaças anônimas enquanto estava em São Paulo.

Risco à democracia

Um estudo realizado pela Diretoria de Análise de Políticas Públicas da FGV e divulgado em 6 de novembro, antes do primeiro turno das eleições, monitorou conteúdos que incitam a crença na existência de fraude nas urnas e de manipulação eleitoral, no Brasil, distribuídos no Facebook e no YouTube entre os anos de 2014 e 2020. 

A pesquisa concluiu que o número de posts apontando uma suposta fraude nas urnas costuma crescer a cada eleição. Mas, em 2020, até o mês de outubro, não havia superado o pico de 2018. Em sete anos, foram identificadas 337.204 publicações que colocavam sob suspeição a lisura das eleições brasileiras. A maior parte, 335.169, foi localizada no Facebook e somou 16.107.846 interações.

A descrença em relação à urna eletrônica não se resume ao instrumento de votação, mas projeta uma descrença no sistema democrático como um todo, afirma Odilon Caldeira Neto, professor de história contemporânea na Universidade Federal de Juiz de Fora e coordenador do Observatório da Extrema Direita.

Segundo ele, o ataque à urna acabou se tornando um "ponto de aglutinação" de diversas tendências do bolsonarismo, e está relacionado a uma agenda da extrema direita global. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, é um exemplo desse fenômeno, ao questionar o processo de votação americano e não reconhecer explicitamente a vitória de Joe Biden.

A deslegitimação do sistema eleitoral também dialoga com um dos elementos que caracterizam o populismo: o estímulo à antítese entre uma ideia de "elite corrupta" e o "povo verdadeiro". "Eles afirmam que o processo institucional é ditado por regras da elite, numa dualidade que coloca a vontade do povo contra as instituições políticas e financeiras globais", diz. No fundo, trata-se de uma crítica ao próprio modelo de democracia.

Além das instituições, o efeito desse questionamento atinge o próprio equilíbrio psicológico dos eleitores, diz Nemer. Segundo pesquisas realizadas nos Estados Unidos, a exposição a retóricas conspiratórias sobre interferência nas eleições "leva a emoções negativas intensas, que geram ansiedade e raiva e prejudica o apoio às instituições democráticas", afirma.

Experimentos mostram que as pessoas que têm contato com teorias de conspiração sobre fraude eleitoral também são menos dispostas a aceitar o resultado de uma eleição contrária ao seus objetivos partidários.

"Se elas acreditam que houve fraude, não devem então fazer uma transição pacifica de poder. A alegação de fraude eleitoral atinge os próprios alicerces da democracia", afirma Nemer. Outros efeitos são a redução da participação política, da confiança em governos democraticamente eleitos e nas instituições.

Para que as democracias se defendam desse tipo de ataque, Nemer considera importante que a imprensa não dê espaço acrítico a teorias de conspiração, e que órgãos públicos sejam o máximo possível transparentes. Ele elogia o contato constante de Barroso com a imprensa durante estas eleições: "Quanto mais silêncio houver, mais se abre espaço para essas teorias", diz.

Caldeira Neto, do Observatório da Extrema Direita, defende a realização de campanhas contra a desinformação e uma articulação entre instituições para barrar a "normalização de discursos e práticas antidemocráticas".

Deutsche Welle. em 16.11.2020

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

A morte da decência

Se Jair Bolsonaro não tivesse transformado a pesquisa e a produção de vacinas contra a covid-19 numa disputa eleitoreira, teria descido aos porões da indecência?

Os padrões de decência do presidente Jair Bolsonaro, mais do que sua flagrante incompetência, marcam indelevelmente a sua condução do País em meio à maior emergência sanitária de que se tem notícia em mais de um século. Quis o destino que, além da pandemia de covid-19, mal concomitante se abatesse sobre a Nação: o infortúnio de ser governada por alguém sem a mínima noção do bem comum num dos momentos mais dramáticos de sua história.

Não é o ideal, mas, nas horas graves, um presidente incompetente sempre pode se acercar de auxiliares capazes antes de tomar decisões quando, a despeito de lhe faltar técnica, lhe sobram humildade, espírito público e genuína compaixão por seus concidadãos. Mas este não é o caso de Bolsonaro, a quem faltam esses atributos tão elementares para qualquer presidente da República digno do cargo.

Em mais uma demonstração cabal de seu absoluto desprezo pela vida e pelo bem-estar dos brasileiros, Bolsonaro não escondeu o júbilo pela interrupção dos testes da Coronavac, vacina desenvolvida pelo laboratório chinês Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, por determinação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), no dia 9 passado. A agência informou a ocorrência de um “evento adverso grave” como justificativa para interromper os testes da fase 3, que têm se revelado bastante promissores.

Antes de estar claro em que circunstâncias se deu o “evento adverso grave”, o presidente Jair Bolsonaro usou o Facebook para inflamar sua rinha particular com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB). Sem qualquer evidência que corroborasse suas alegações, bem a seu feitio, Bolsonaro escreveu que a Coronavac provocaria “morte, invalidez, anomalia”. Trata-se de uma mentira, uma desabrida irresponsabilidade que mostra que não há limites para Bolsonaro quando o que está em jogo são seus interesses particulares. Dane-se o interesse público.

Escrevendo em terceira pessoa e naquele seu idioma que se assemelha ao português, o presidente prosseguiu afirmando que “esta é a vacina que o Dória queria obrigar a todos os paulistanos tomá-la. O Presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”. Ganha o que, senhor presidente? Tanto o teor como a forma da mensagem abjeta indicam que ali também ia um comando de Bolsonaro, diligentemente obedecido, para que seus camisas pardas disseminassem o discurso por meio das redes sociais.

Depois se soube que o “evento adverso grave” foi a morte trágica de um voluntário que participava dos testes com a Coronavac em São Paulo. A Secretaria de Estado da Saúde considera “impossível” que o fato esteja relacionado com a vacina. Mais indigna, portanto, foi a manifestação inoportuna do presidente Bolsonaro. Primeiro, por se jactar de um fato que envolve a morte de uma pessoa. Segundo, por comemorar a interrupção dos testes de uma vacina contra o novo coronavírus enquanto a esmagadora maioria do País anseia por ela e lamenta o ocorrido.

A interrupção dos testes de uma vacina quando há um desvio dos resultados esperados é procedimento comezinho na comunidade científica. Recentemente, os testes com a vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford e o laboratório AstraZeneca também foram suspensos pela Anvisa, após ter sido constatado um efeito colateral em um voluntário. Tão logo ficou esclarecido que seria seguro prosseguir com o estudo, os testes foram retomados. Portanto, a interrupção dos testes é algo que diz mais sobre a segurança do processo de desenvolvimento de uma vacina do que sobre sua possível ineficácia.

Ainda é cedo para que se faça um juízo dos critérios que levaram a Anvisa a determinar a suspensão dos testes com a Coronavac. O secretário de Saúde de São Paulo, Jean Gorinchteyn, e o presidente do Instituto Butantan, Dimas Covas, disseram-se surpresos com a decisão da agência, que não teria se pautado pelo rigor científico. A agência reguladora, obviamente, afirma o contrário. Fica no ar a questão: se o presidente Jair Bolsonaro não tivesse transformado a pesquisa e a produção de vacinas contra a covid-19 numa mesquinha disputa eleitoreira, teria ele descido aos porões da indecência?

Editorial / Notas & Informações, O Estado de São Paulo, 11 de novembro de 2020

sábado, 7 de novembro de 2020

Disfarça e chora



 




Joe Biden vence eleição dramática nos EUA

Democrata supera marca de 270 votos no Colégio Eleitoral e abre caminho para fim da era Trump. Mas vitória não encerra novela eleitoral, e presidente republicano já disse que pretende contestar resultado    

Após uma das campanhas eleitorais mais tensas e tumultuadas das últimas décadas, o democrata Joe Biden venceu a disputa pelo cargo mais poderoso do mundo. Neste sábado (07/11), ele superou a marca de 270 votos no Colégio Eleitoral dos Estados Unidos, após conquistar a vitória na Pensilvânia, segundo projeções da imprensa americana.

"América, estou honrado de ter sido escolhido para liderar nosso grande país. O trabalho à nossa frente será duro, mas eu prometo: serei um presidente para todos os americanos, tenham vocês votado em mim ou não", afirmou Biden no Twitter.

Com o resultado, Donald Trump se tornou o primeiro presidente americano no cargo a perder a reeleição desde George H. Bush, em 1992. 

Trump se recusou a reconhecer a vitória do adversário e afirmou, num comunicado, que sua campanha está abrindo um processo legal "para garantir que as leis eleitorais sejam completamente respeitadas e que o vencedor legítimo seja empossado".

O resultado é divulgado num momento particularmente tenso nos EUA, que segue como a nação mais atingida do mundo pela pandemia de covid-19. Além disso, há semanas Trump vem tentando minar a confiança no processo eleitoral, no que vem sendo encarado como a maior ofensiva contra a democracia americana em décadas. Há ainda o temor de que o resultado possa desencadear violência nos próximos dias. 

Trump fomenta desconfiança

Nas últimas horas, Trump, já em desvantagem na disputa, passou a propagar com mais insistência que as eleições estavam sendo fraudadas, sem apresentar provas. Algumas de suas publicações no Twitter chegaram a ser sancionadas pela rede social, por espalharem informação falsa. Na quarta-feira, o presidente chegou a ponto de declarar vitória no pleito, muito antes da apuração estar completa, durante um discurso na Casa Branca.

Na quinta-feira, Trump voltou a afirmar que estava sendo vítima de fraude, conforme sua situação foi piorando nas contagens dos últimos estados que ainda tinham apurações em andamento. "Se você contar os votos legais, eu ganho facilmente. Se você contar os votos ilegais, eu podem roubar a eleição de nós", disse, sem apresentar qualquer prova para sustentar a acusação. Ele ainda disse que estava prevendo "bastante litígio" se o resultado fosse desfavorável. 

Oficialmente, o vencedor da eleição só é anunciado em 14 de dezembro, quando os delegados de todos os 50 estados se reúnem em Washington no colégio eleitoral para confirmar os resultados estaduais. Não há nos EUA um órgão central que compile os resultados estaduais. Normalmente, o resultado é projetado logo após o pleito pela imprensa e pelas campanhas. O anúncio do desfecho da eleição é facilitado quando um dos lados concede a derrota. No caso, de Trump isso deve ser um complicador.

Não está claro se o republicano pretende reconhecer derrota nas próximas horas, mas ele já deu sinais de que não pretende fazê-lo. Seria inédito em toda a história americana um presidente se agarrar ao cargo dessa maneira. 

Nas últimas semanas, Trump já vinha indicando que pretende contestar o resultado nos tribunais, especialmente na Suprema Corte, onde o republicano indicou três dos nove juízes. Sua campanha também chegou a pedir recontagens em vários estados-chave, mas não foi bem-sucedida. Os republicanos ainda agiram para tentar barrar a contagem de votos em três estados. As ofensivas causaram ultraje nos EUA e foram criticadas até mesmo por alguns republicanos.

Paralelamente, Trump também celebrou os bons resultados do Partido Republicano na eleição para a Câmara dos Representantes, mas neste caso evitou apontar qualquer suspeita de fraude no pleito.  

Analistas, jornalistas e grupos que monitoram eleições têm acusado o presidente de minar o sistema eleitoral e a democracia americana como forma de se manter no poder. Até mesmo nomes influentes do Partido Republicano têm evitado endossar as acusações do presidente.

Não é a primeira vez que Trump recorre a esse tipo de tática sem qualquer base. Em 2016, ele venceu no colégio eleitoral, mas perdeu no voto popular para Hillary Clinton. Com o ego ferido, disse que os democratas haviam arregimentado milhões de imigrantes ilegais para votar. Uma comissão foi formada pelo seu governo para investigar. Nenhum evidência de irregularidade foi encontrada, e o colegiado foi extinto em 2018.


US Wahl 2020 Donald Trump (Carlos Barria/REUTERS)

Trump perdeu no voto popular em 2016

A agressividade de Trump durante o pleito indica que o processo de transição também não deve ser fácil. O resultado relativamente apertado nesta que foi a eleição mais disputada desde 2000 e o fato de Trump ter chegado a ampliar seu eleitorado em relação ao pleito de 2016 ainda devem reverberar pelas próximas semanas. Muitos apoiadores de Trump já estão espalhando nas redes versões falsas sobre a eleição ter sido roubada, elevando ainda mais a tensão sobre o processo de transição.

Apuração demorada

O anúncio do resultado ameaçou se arrastar por dias ou até semanas diante das condições atípicas desta eleição, marcada pela pandemia e que registrou um número recorde de votos antecipados e enviados pelo correio.

Biden apareceu à frente de Trump nas pesquisas de voto popular ao longo de praticamente toda a campanha, mas devido ao complicado sistema eleitoral dos EUA, o desfecho era incerto.

Ao final, Trump mais uma vez se saiu melhor do que vários institutos de pesquisa haviam previsto. Ele garantiu estados como a Flórida ao expandir sua influência entre o eleitorado latino do estado. Veículos da imprensa americana apontam que membros dessa comunidade foram inundados com fake news de extrema direita nos últimos dias.

Ao longo da madrugada pós-eleição, Trump chegou a parecer que estava diante de uma vitória, mas Biden foi diminuindo a vantagem do adversário em estados cruciais, como Geórgia e Pensilvânia, à medida em que votos pelo correio enviados de bastiões democratas em grandes centros urbanos eram contados.

Comparecimento recorde às urnas

O pleito de 2020 também foi marcado por aquela que pode ser a maior participação do eleitorado em 120 anos, segundo estimativas. De acordo com levantamentos, mais de 66% dos eleitores participaram, seja comparecendo presencialmente, seja enviando o voto pelo correio. Biden se tornou o candidato a presidente com a maior quantidade de votos populares da história americana, superando o recorde de Barack Obama, a quem serviu como vice-presidente.

A derrota de Trump e a vitória de Biden também têm outro elemento histórico: os EUA agora têm sua primeira vice-presidente do sexo feminino, a senadora pela Califórnia Kamala Harris. Com 55 anos, ela também injeta diversidade no cargo por sua ascendência negra-caribenha e indiana.


                                            A senadora Kamala Harris, a vice de Biden


Resultado tem impacto global

A saída de Trump ainda deve ter forte impacto nas relações dos EUA com o mundo. Ao longo de quatro anos, o republicano promoveu uma política de sabotagem do multilateralismo, alienando vários aliados pelo mundo. A imagem do país também derreteu mundo afora. Nos EUA, a submissão do governo ao temperamento imprevisível de Trump e sua administração por meio de mensagens pelo Twitter também provocaram fissuras na política americana. Ainda durante a contagem, Biden anunciou que pretende reverter medidas de Trump, como a retirada do Acordo Climático de Paris.

Para países como o Brasil, a derrota de Trump e a ascensão de Biden também devem ter impacto. O presidente Jair Bolsonaro alinhou seu governo aos EUA de Trump e sua relação com Biden não deve ser fácil. Ainda na quarta-feira, Bolsonaro dizia que estava torcendo por Trump, uma figura que o presidente brasileiro faz questão de dizer que idolatra.

Biden, meio século de trajetória política

Biden, com 77 anos, é de longe o candidato mais velho a conquistar a presidência dos EUA. Ele terá 78 anos quando tomar posse, em janeiro.

Católico de uma família de classe trabalhadora, Joseph Robinette "Joe" Biden Jr. tem uma carreira política que se entende por mais de meio século. Ele passou a disputar cargos em 1969, montando sua base eleitoral em Delaware. Entrou para o Senado em 1973, aos 30 anos, e até hoje detém o recorde de terceiro senador mais jovem da história dos EUA no século 20.

Ele também chega à Casa Branca mais de três décadas depois de sua primeira tentativa de representar a legenda na disputa presidencial. Ele tentou duas vezes emplacar uma candidatura, em 1988 e 2008, mas em ambas falhou em conquistar a simpatia do eleitorado democrata.

Biden (centro) toma posse como senador em 1973, no hospital onde seu filho, Beau, estava internado

Sem o dom para a oratória e o carisma de outros tantos políticos democratas, como Barack Obama ou John Kennedy, ou seguidores apaixonados como Bernie Sanders, Biden jamais foi o tipo de candidato que entusiasma o eleitorado. Muitos democratas admitem que ele estava longe de ser o candidato ideal, especialmente para a ala que tenta puxar o partido para a esquerda. Seu carisma e personalidade amigável também costumam se manifestar melhor com pequenas plateias e contato direto – algo que foi bastante dificultado pela pandemia. Para piorar, ele sempre foi dado a gafes.

No lugar certo, na hora certa

Em 2020, no entanto, essa personalidade moderada e pouco polarizadora acabou se mostrando uma receita vencedora diante do populismo de Trump, um dos presidentes mais divisivos da história americana. Trump, que deve parte de sua ascensão em 2016 aos ataques incendiários que distribuiu contra seus concorrentes, teve dificuldade de pintar "Joe sonolento" (como se referia a ele) como um vilão ou um "comunista", ao contrário do que ocorreu com Hillary Clinton. O democrata também foi beneficiado por esta eleição ter sido transformada num plebiscito sobre a era Trump, que teve seu último ano marcado pela gestão errática da pandemia e o declínio da economia.

Biden serviu oito anos como vice de Barack Obama

Depois de quatro anos de montanha-russa trumpista, estava aberto o caminho para um "candidato normal”. Em agosto, Biden resumiu a disputa como "uma batalha pela alma dos Estados Unidos". Em março, Biden parecia liquidado em mais uma disputa pela indicação do Partido Democrata, mais viu sua então pré-candidatura ressurgir das cinzas na chamada primária da "Super Terça" no sul do país.

Durante a pré-campanha e a disputa direta com Trump, ele apelou de maneira sistemática para seus oito anos de experiência como vice-presidente ao lado do "amigo" Barack Obama na Casa Branca, uma arma que se revelou determinante para conquistar o eleitorado negro do país.

Dramas pessoais

Sua trajetória pessoal também contou com uma forma de angariar empatia entre o eleitorado. Biden tem uma vida marcada por tragédias. Menos de um mês após sua primeira eleição para o Senado em 1972, sua primeira esposa, Neilia Hunter, e sua filha de 1 ano morreram em um acidente de carro quando saíram para comprar uma árvore de Natal. Seus dois filhos ficaram gravemente feridos, mas sobreviveram ao acidente. No entanto, o mais velho, Beau, morreu vítima de câncer em 2015.

Seu outro filho, Hunter, um advogado que atua como lobista, foi uma potencial fonte de problemas para Biden ao longo da campanha. Ele recebeu somas elevadas para fazer parte do conselho de uma empresa de gás ucraniana quando o pai era vice-presidente de Obama entre 2009 e 2016, o que rendeu acusações de que Hunter usou essa ligação em benefício próprio.

Trump, que mesmo antes do início da pré-campanha democrata já dava sinais de ver Biden como seu adversário mais perigoso numa eleição, pressionou o governo da Ucrânia a investigar Biden pelos negócios de Hunter. O republicano recorreu até mesmo ao congelamento de verbas para os ucranianos como forma de emparedar Kiev. Isso rendeu um processo de impeachment, que acabou barrado no Senado, de maioria republicana.

Hunter nunca foi investigado pelo caso, mas Trump tentou explorar a questão sempre que teve a oportunidade durante a campanha de 2020, mas o espantalho não funcionou como suas manobras similares em 2016 contra Hillary. Com o caso Hunter não rendendo o esperado, Trump passou a se concentrar em pintar Biden como um idoso gagá.

Aceno a bandeiras progressistas

Apesar de não ter sido recebido com entusiasmo pela esquerda do Partido Democrata, Biden demonstrou ao longo da carreira que nunca temeu abraçar posições mais progressistas, embora de maneira mais lenta do que alguns desejariam.

Biden em 1972, após ser eleito para o Senado

Em 2012, como vice, ele disse que estava "absolutamente confortável" com o casamento gay, forçando Obama a acelerar seu apoio explícito a tais uniões e contribuindo para que a Suprema Corte as legalizasse, em 2015. Nos anos 1990, em contraste, Biden votou a favor de uma medida que na prática barrava homossexuais declarados de servir nas Forças Armadas.

Ele também foi muito criticado por ajudar na redação de uma lei de 1994 que muitos democratas acreditam ter provocado a detenção de uma quantidade desproporcional de cidadãos negros. Recentemente, Biden reconheceu que essa iniciativa foi um erro.

Mas essa forma lenta de abraçar novas posições também é uma faceta de uma personalidade que não se prende a dogmas e que acompanha as mudanças de humor do eleitorado. Em 2002, por exemplo, ele votou a favor da invasão do Iraque na esteira dos ataques de 11 de Setembro, uma causa que era popular entre a maior parte dos americanos. Em 2008, quando a guerra já havia virado um atoleiro para os americanos, defendeu a retirada das tropas.

São mudanças que podem ser encaradas como oportunismo, mas que também costumam ser vistas como pontos fortes, dependendo do personagem. Nesse sentido, Biden compartilha similaridades com a chanceler federal Angela Merkel, outra personalidade que caminhou para o centro e que ao longo da trajetória reverteu suas posições sobre energia nuclear e imigração seguindo o humor da população. 

Publicado originalmente por Deutsche Welle, em 07. 11. 2020

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

O resgate da democracia

Joe Biden lembrou em seu pronunciamento que a disputa eleitoral é o momento em que o povo é soberano para escolher seu governante.

Em discurso de estadista, o candidato democrata à presidência dos Estados Unidos, Joe Biden, disse que “ninguém vai nos tirar nossa democracia, nem agora nem nunca”. Foi um pronunciamento destinado a relembrar que a disputa eleitoral, numa democracia, não é uma guerra em que o adversário deve ser aniquilado, mas o momento em que o povo é soberano para escolher seu governante. 

Para que esse processo seja legítimo, enfatizou Joe Biden, “todo voto tem de ser contado”. Parece uma obviedade, mas não é: quando o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, tudo faz para interromper a contagem que indica sua derrota e denuncia, sem qualquer prova, uma suposta fraude nos votos já contados, é preciso lembrar do que é feita a democracia, conceito que é estranho a Trump e, infelizmente, a muita gente nos Estados Unidos – como mostra a expressiva votação que o atual presidente obteve.

Por isso, fez muito bem o candidato Joe Biden ao enfatizar que, se confirmada sua eleição, ganhará “como democrata”, em referência a seu partido, mas governará “como presidente”. E declarou: “Temos que nos ouvir uns aos outros, respeitar e cuidar uns dos outros, nos unir como nação. Sei que não será fácil. Sei como são profundas as diferenças, mas sei que, para progredirmos, precisamos parar de tratar os oponentes como inimigos”.

Trata-se de uma mensagem poderosa, uma brisa de bom senso em meio à tormenta autoritária que tomou os Estados Unidos desde a eleição de Donald Trump, há quatro anos. Nada disso significa, contudo, que o horizonte político norte-americano se desanuviará no curto prazo, pois as condições que possibilitaram a ascensão do populismo destrutivo de Donald Trump se mantêm.

Há uma imensa massa de norte-americanos que se consideram esquecidos pelo establishment político e econômico. São cidadãos ressentidos, predispostos a crer que são vítimas do “sistema” representado por Washington e Wall Street e que se sentem desrespeitados por minorias que desafiam seus valores conservadores para ganhar espaço político e impor sua agenda.

Esses eleitores foram seduzidos por Donald Trump e seu discurso insolente em relação às instituições democráticas, que ele trata abertamente como adversárias. Seu slogan, “América primeiro”, não faz referência à América de todos os norte-americanos, mas à América imaginada por reacionários desconfortáveis com a democracia. 

Nesse lugar imaginário, em que se vive sob constante ameaça de “inimigos” inventados por teorias da conspiração disseminadas pelas redes sociais, só podem viver os que aceitam seus valores truculentos – aos demais resta viver como exilados dentro de seu próprio país.

Nenhuma nação democrática resiste a um ambiente intoxicado de rancor como esse. Nenhum governo construído sobre bases tão desagregadoras será visto como legítimo pelo conjunto dos cidadãos. 

É por esse motivo que um político experiente como Joe Biden, mesmo sem ter assegurada sua eleição, percebeu que era necessário apresentar-se a seus compatriotas como um líder capaz de “ouvir” o que os eleitores de seu adversário têm a dizer. É disso que depende a saúde da democracia norte-americana, que um dia já foi exemplo para o mundo, mas agora, sob Trump, se tornou fonte de vergonha e decepção – menos, é claro, para os que consideram o histrião que hoje está na Casa Branca como o “salvador do Ocidente”, como o classificou o chanceler brasileiro, Ernesto Araújo.

Enquanto Biden pregava união e respeito pela decisão soberana dos eleitores, o presidente Trump tuitava: “Parem a contagem!”. Ou seja, o presidente de todos os norte-americanos defendeu que os votos de milhares de seus compatriotas não fossem considerados, alegando fraudes generalizadas. Nada que surpreenda, pois Trump há tempos avisou que colocaria em dúvida o resultado da eleição se não lhe fosse favorável, pela simples razão de que não aceita a derrota.

Felizmente, a democracia, ultimamente tão vilipendiada, tem seus mecanismos de defesa, e isso ficou muito claro nos Estados Unidos. A Trump, bem como a seus aduladores mundo afora, resta espernear.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo. 06 de novembro de 2020 | 03h00