Luiz Eduardo Soares, cujo novo livro analisa fascismo e bolsonarismo, diz que novas aproximações políticas e postura mais branda do presidente não significam moderação em seu "programa fascista", que mobiliza o ódio.
O presidente Jair Bolsonaro
"Tínhamos o dragão na sala de visita, hoje ele está na garagem. Mas continua sendo o dragão", afirma antropólogo
O presidente Jair Bolsonaro lidera um movimento com características fascistas, que evoca uma ideologia elaborada ainda na década de 1930, no integralismo brasileiro, posteriormente assimilada pela ditadura militar e infiltrada no período democrático. Considera-se guiado pela vontade de Deus e não vê limites para o exercício da violência com o objetivo de destruir o inimigo, representado no comunismo ou no mal. Para fazer isso, mobiliza o ódio na sociedade para alimentar um "espírito de linchamento".
A análise é do antropólogo Luiz Eduardo Soares, ex-secretário nacional de Segurança Pública e autor dos livros que deram origem aos filmes Tropa de elite. Ele lançou, no final de setembro, o livro Dentro da noite feroz – O fascismo no Brasil, pela Boitempo Editorial, no qual interpreta o movimento em torno do presidente à luz das ideias e experiências fascistas.
Em entrevista à DW Brasil, Soares afirma que a aproximação de Bolsonaro com o Centrão e a redução da frequência de suas falas radicais, ocorridas após ver seu filho Flávio Bolsonaro e aliados sofrerem revezes em investigações judiciais, não indicam que o presidente se moderou, mas apenas que houve um recuo temporário em sua estratégia de longo prazo. "Antes, tínhamos o dragão na sala de visita. Hoje temos um dragão na garagem. Mas continua sendo o dragão, e seus propósitos continuam sendo os mesmos", diz.
Ele associa o sucesso do bolsonarismo à capacidade de aplacar inseguranças provocadas por mudanças rápidas na sociedade, como o questionamento dos significados tradicionais de homem, mulher e família, aliado ao apoio das polícias – segundo o antropólogo, um enclave autoritário em meio à democracia – e de parcela da elite econômica.
Soares diz que apenas cerca de 15% da população concorda com o "programa fascista" do presidente, e que o apoio ao governo Bolsonaro, hoje em torno de 40% dos eleitores, deve diminuir com o fim do auxílio emergencial, abrindo "possibilidades de disputa política".
DW Brasil: Qual é a origem da ideologia fascista no Brasil?
Luiz Eduardo Soares: Os traços fascistas se converteram em programa ideológico e político nos anos 1930, sob a liderança de Plínio Salgado, no movimento integralista, que exaltava o fascismo e o nazismo e pleiteava a união do Brasil ao Eixo na Segunda Guerra Mundial. Eles tentaram dar um golpe de Estado contra Getúlio [Vargas], não foram bem-sucedidos e foram para a clandestinidade, mas não deixaram de exercer influência e deter um quinhão da opinião pública brasileira.
Nos anos da ditadura, de 1964 a 1985, os velhos integralistas tiveram uma participação ativa. Um dos exemplos é Filinto Müller, que tinha sido o chefe da polícia política no Estado Novo, responsável por muitas mortes e torturas, e se tornaria, nos anos 1970, líder do governo militar no Senado pela Arena.
Sempre houve candidatos que se identificavam com programas integralistas ou neointegralistas, e eles voltaram a agir publicamente no século 21, em várias manifestações. No Rio, por exemplo, saindo em marchas, queimando bandeiras, e, depois de 2010, apoiando candidaturas, particularmente da família Bolsonaro.
Mas os traços fascistas ou protofascistas ultrapassam os limites de um partido ou de um movimento específico e se enraizam na sociedade, camuflados e articulados a outros valores e símbolos. Somos um país de quatro séculos de escravidão, autoritário e muito violento. Além do integralismo, que é uma referência ao novo partido que Bolsonaro está tentando criar, temos na sociedade elementos que se articulam facilmente a essa nebulosa fascista que Bolsonaro encarna e inscreve na política.
O sr. pode citar exemplos recentes de situações em que o fascismo se manifesta?
Quando Bolsonaro elogia como herói nacional um torturador, estuprador e assassino como o [coronel Carlos Alberto Brilhante] Ustra, ele eleva esse personagem ao status de referência identitária nacional. A exaltação à violência, nesse caso, vem associada à ideia de uma pátria do bem, sob proteção divina, que luta contra o mal. E quem é o inimigo? O grande Outro, contra o qual se identificam aqueles que são próximos a Bolsonaro.
Sempre que grupos se agregam, forma-se identidade por oposição, até nos esportes. O diferencial é quando a identidade se produz pela definição do Outro não como adversário ou antagonista, mas como inimigo que deve ser destruído em uma guerra santa. Quando nossa percepção do mundo tem como fundamento a vontade divina, acreditamos que não há limite para o exercício da violência, e temos como meta a destruição do inimigo, que representaria o comunismo, o diabo ou o mal, temos uma estrutura de concepções e valores análoga ao que se categoriza como fascismo.
O último discurso que Bolsonaro fez antes do segundo turno das eleições de 2018, por celular da casa dele, ouvido na Avenida Paulista, prometia às oposições a ponta da praia, a fuga do país, o exílio. A ponta da praia significa, na linguagem da repressão da ditadura, a execução. Naquele momento, ele abomina as diferenças. Sabemos que o grupo ligado a Bolsonaro deseja eliminar o pluralismo. O bolsonarismo se define como uma revolução para destruir tudo o que está aí, o que envolve a Constituição, os direitos conquistados e as instituições como se organizam.
Qual é a função do ódio e da pulsão de destruição nessa ideologia?
É central. O fascismo precisa mobilizar o ódio e a sociedade para que ela se sinta identificada nesse esforço guerreiro bélico comum contra o mal, alimentando um espírito de linchamento. Para que haja a efetivação desse regime simbólico de construção de identidade, é necessário que o afeto dominante seja o ódio, porque só o ódio se encaixa na afirmação de que estamos numa guerra e precisamos eliminar os inimigos.
Bolsonaro se aproximou do Centrão nos últimos meses e reduziu a frequência de manifestações mais radicais. Esse movimento atenuou o que o sr. define como traços fascistas?
Não, porque em nenhum momento ele voltou atrás em relação ao que pensa e ao que diz. O que houve foi uma mudança tática. Ele viu que a correlação de forças estava pendendo contra ele e recuou. Mas não há nenhuma mudança em relação à estratégia. Antes, tínhamos o dragão na sala de visita. Hoje temos um dragão na garagem. Mas continua sendo o dragão, e seus propósitos continuam sendo os mesmos. Não podemos confundir a tática com a substância do que está em jogo.
O governo Bolsonaro é hoje apoiado por cerca de 40% da população. Como o sr. explica isso à luz da sua análise do fascismo?
Uma consideração que derivaria de um mal-entendido sobre o que digo seria: "Se o Bolsonaro venceu as eleições, é porque a maioria do povo brasileiro é fascista". De jeito nenhum. O voto é uma escolha num determinado momento entre candidaturas. Uma adesão muitas vezes parcial ao ideário. Não temos mais que 15% da sociedade identificando-se plenamente com o bolsonarismo, que é o programa fascista.
Há dois elementos importantes [para explicar o apoio a Bolsonaro]. Um é o auxílio emergencial, que tem um impacto grande. A população que acompanha o dia a dia pela mediação das suas necessidades de sobrevivência, o que é mais imperioso, se sente atendida e declara seu apoio. Que não é necessariamente permanente. O auxílio vem sendo retirado e a crueza da crise vai mostrar a sua profundidade. Será difícil manter esse nível de popularidade.
O outro elemento, que conversa com o fascismo, é o que eu chamo de demanda por ordem. Não no sentido da segurança pública, que também está envolvida. Há uma demanda da sociedade brasileira pela restauração de uma ordem no nível do ser, por referências fixas.
Nossa época é de mudanças rápidas e profundas, com muita angústia. E surgiram movimentos libertadores, como o movimento feminista, que começa a bater contra o patriarcalismo, e nesse espaço surgem novas possibilidades para a constituição de si em que sexo, corpo e gênero se separam e podem se combinar de formas inesperadas. Isso desestabiliza as figuras arquetípicas de homem, mulher e família. Os machos formados no patriarcalismo sentem de forma muito aguda, precisam se proteger contra isso e contra o que está dentro de cada um deles, e descobrem lideranças capazes de endereçar o seu discurso a essa demanda.
O que é o bolsonarismo, senão vingança do macho, o retorno do macho grosseiro rudimentar? Bolsonaro promete restaurar as âncoras, em um apelo dirigido pelo que há de neurótico e defensivo em cada um e cada uma, porque muitas mulheres absorvem essa cultura machista também.
Nesse quadro, como o sr. interpreta o apoio de parte da elite econômica a Bolsonaro?
Os candidatos preferenciais da elite eram outros, mas foram ficando pelo caminho. Bolsonaro foi o pangaré que passava e surpreendia mostrando a possibilidade de vitória. Quando essa possibilidade se tornou real, as elites acenaram de volta, [dizendo] "fingimos que não estamos vendo o banho de sangue que você traz no seu programa, porque supostamente somos civilizados, desde que você implemente aqui a nossa agenda".
Como as polícias se ligam ao neofascismo no Brasil?
Tivemos uma transição para a democracia negociada, e havia um preço a se pagar. Os militares reservaram uma área que deveria se manter fora do processo de democratização, que foi a segurança pública. Houve mudanças na legislação, mas os policiais e as estruturas organizacionais eram as mesmas. Esse espaço se constituiu como um enclave na democracia, com valores e práticas refratários a ela. É um universo grande, que hoje corresponde a quase 800 mil profissionais. Há contradições, mas o que sempre dominou foi a continuidade com o passado. E temos também uma rede de cumplicidade [com a Justiça e o Ministério Público], com apoio popular.
Se há problemas de crime é porque não se matou o suficiente, essa sempre foi a toada. Por isso, havia bolsonarismo nas polícias muito antes de Bolsonaro. Quando Bolsonaro aparece, suas palavras soam como música. Ele realiza esse messianismo das polícias que esperavam um redentor que iria acabar com essa democracia e essa história de direitos humanos, e de dar autoridade para que a força vencesse o mais fraco em nome desses valores. Uma espécie de saneamento, de higiene, que se dá pelo sangue.
Nesta sexta-feira (23/10), o referendo sobre a proibição do comércio de armas e munição no Brasil faz 15 anos, em um momento em que o governo federal patrocina iniciativas para flexibilizar a compra de armas e munição. Qual o papel das armas nesse contexto?
Se há um consenso no meio científico que se dedica a essa questão é que mais armas implicam em mais crime, mais acidentes e violência doméstica, mais feminicídios e mais suicídios. Que conflitos interpessoais tendem a se converter mais em crimes de morte.
Flexibilização no acesso às armas significa também a provisão para o mercado ilegal, pois facilita o acesso de criminosos e do tráfico de armas às armas. É um caminho que favorece o crime, particularmente as milícias. Além disso, todos os meios que facilitavam investigações para rastrear munições e armas estão sendo destruídos.
O referendo de 2005 foi um momento triste da nossa história, tínhamos uma oportunidade de radicalizar o controle das armas, e houve uma reversão. A despeito dessa derrota, preservamos o controle e ampliamos o rastreamento até Bolsonaro chegar ao poder.
Como superar o que o sr. descreve como ameaça fascista no Brasil?
Não tenho uma resposta. Precisamos mobilizar todos os recursos disponíveis. Escrever livros, participar dos debates, fortalecer entidades, associações, organizações não governamentais, cobrar das instituições reação a essa corrosão. Apelar à sensibilidade internacional, que tem sido muito importante – se não foi capaz de impedir a devastação ambiental, tem chamado a atenção para limites.
Temos do outro lado a força econômica associada ao fascismo, que agora se veste de ovelha, como que a legitimar as adesões de camadas médias e das elites. As camadas populares terão o seu momento de enfrentamento com a dura realidade quando os auxílios emergenciais forem interrompidos. Temos diante de nós muitas possibilidades de disputa política.
Publicado originalmente por Deutsch Welle, em 21.10.2020.