quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Sindemia? Covid-19 pode ser mais que uma pandemia

Glossário da crise do coronavírus ganha novo termo. Ele reflete a ideia de que o vírus não atua simplesmente sozinho, mas sim compactuando com outras doenças. E isso demanda uma abordagem diferente.


Corpo é carregado em Lima, no Peru: países mais pobres são especialmente vulneráveis à covid-19

Um artigo publicado no final do mês de setembro no semanário The Lancet, uma das mais antigas e prestigiadas publicações científicas do mundo, pôs um novo termo no já extenso debate sobre o novo coronavírus. O texto defende que o mundo não enfrenta simplesmente uma pandemia, mas uma "sindemia".

O artigo é assinado pelo editor-chefe da revista, Richard Horton. Ele argumenta que a covid-19 não é uma peste como outra qualquer já vista no passado e que, por isso, merece abordagem diferente. O termo sindemia, por isso, seria mais adequado: o vírus não atua sozinho, mas compactuando com outras doenças. E a desigualdade social tem papel-chave nisso.

"A covid-19 não é uma pandemia. É uma sindemia. A natureza sindêmica da ameaça que enfrentamos significa ser necessária uma abordagem mais diversificada se quisermos proteger a saúde de nossas comunidades", escreve Horton.

O artigo repercutiu em alguns dos principais meios de comunicação internacionais e ganhou eco no mundo científico. A americana Sociedade de Medicina de Catástrofes e Saúde Pública, por exemplo, defendeu, em artigo intitulado "Covid-19 à Covid-20", que a resposta institucional à atual crise seja baseada num "pensamento sindêmico, e não pandêmico".

A palavra "sindemia", portanto, entra aos poucos no glossário do debate sobre a covid-19, ao lado de termos como "lockdown", "imunidade de rebanho" e "achatar a curva", antes praticamente desconhecidos do grande público. Mas o que significa exatamente sindemia?

O que é uma sindemia?
O termo "sindemia" foi cunhado nos anos 1990 pelo antropólogo médico americano Merrill Singer, mais conhecido por suas pesquisas sobre abuso de substâncias, HIV/aids e disparidades sociais na saúde da população.

Singer definiu a sindemia como "um modelo de saúde que se concentra no complexo biossocial" – ou seja, nos fatores sociais e ambientais que promovem e potencializam os efeitos negativos da interação de uma determinada doença.

Em outras palavras, de acordo com a tese de Singer, a abordagem sindêmica olha para a doença de forma mais ampla, explorando as consequências gerais de medidas como lockdowns e o distanciamento social.

E é nessa tecla que Richard Horton bate em seu artigo na Lancet. Ele escreve que, à medida que o mundo se aproxima de 1 milhão de mortes por covid-19, é importante enfrentar o fato de que a atual abordagem é demasiadamente restrita para administrar a crise do novo coronavírus.

Segundo Horton, todas as intervenções se concentraram até agora em cortar linhas de transmissão viral. A "ciência" que tem guiado os governos, afirma ele, é baseada principalmente em modelos de combate a epidemias que enquadram a atual emergência sanitária num conceito de peste que tem séculos de existência.

"Mas a história da covid-19 não é tão simples assim", argumenta o editor da Lancet. "Duas categorias de doenças estão interagindo dentro de populações específicas – a síndrome respiratória aguda severa (Sars-Cov-2) e uma série de doenças não transmissíveis (DNTs). Estas condições estão se agrupando dentro de grupos sociais de acordo com padrões de desigualdade profundamente enraizados em nossas sociedades. A agregação dessas doenças em um contexto de disparidade social e econômica exacerba os efeitos adversos de cada doença separada."

Como combater uma sindemia?
Uma epidemia sindêmica refere-se à ideia de que o vírus não age isoladamente, como o coronavírus como um vilão solitário que simplesmente espalha pneumonia e falência de órgãos entre a população. Ele tem cúmplices, como a obesidade, diabetes, doenças cardíacas e condições sociais, que acabam agravando a situação do infectado.

A questão é que muitos dos "cúmplices" da covid-19 já são uma epidemia isolada por si só em algumas sociedades. A obesidade, por exemplo, é um fator de risco para o desenvolvimento de diabetes e doenças cardíacas. Um artigo recente na revista Obesity Reviews, por exemplo, concluiu que pessoas obesas têm 50% mais chances de morrer de coronavírus.

Em seu artigo, Richard Horton destaca que as sindemias são caracterizadas por interações biológicas e sociais, interações estas que aumentam a suscetibilidade de uma pessoa ver seu estado de saúde piorar ao contrair uma doença.

No caso da covid-19, argumenta o editor da Lancet, atacar doenças não transmissíveis é um pré-requisito para um combate bem-sucedido à atual crise. "O número total de pessoas que vivem com doenças crônicas está crescendo. Abordar a covid-19 significa abordar a hipertensão, obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e respiratórias crônicas, e câncer", diz.

Horton afirma ainda ser especialmente importante prestar maior atenção às doenças não transmissíveis em países mais pobres. Ele cita ainda um artigo na Lancet, também de setembro, em que os especialistas Gene Bukhman e Ana Mocumbi descreveram algo que chamam de DNTLs – adicionando lesões à categoria de "doenças não transmissíveis".

Para o bilhão de pessoas mais pobres do mundo, as DNTLs representam mais de um terço do seu fardo com doenças. O artigo citado por Horton afirma que a disponibilidade de intervenções acessíveis e econômicas durante a próxima década poderia evitar quase 5 milhões de mortes entre as pessoas mais pobres do mundo. E isso sem considerar os riscos reduzidos de morrer por covid-19.

"A menos que os governos elaborem políticas e programas para reverter as profundas disparidades, nossas sociedades nunca estarão verdadeiramente seguras da covid-19", conclui Horton. "A crise econômica que está avançando em nossa direção não será resolvida por uma droga ou uma vacina."

Fonte: Deutsch Welle, em 14.10.2020

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Mentiras e aglomeração marcam volta de Trump à campanha

Internação por covid-19 não muda postura do presidente americano sobre a pandemia que já matou mais de 200 mil nos EUA. Primeiro comício após sua doença tem imprecisões, exageros e mentiras.

Apoiadores de Trump ignoraram regras de distanciamento social e uso de máscara

Ainda mais desafiador do que antes em relação ao coronavírus, o presidente americano e candidato à reeleição, Donald Trump, fez nesta segunda-feira (12/10) seu primeiro comício desde que se declarou livre da covid-19.

O discurso de cerca de uma hora em Sanford, na Flórida, foi acompanhado por milhares de apoiadores de Trump, que se aglomeram diante do palanque sem uso de máscara e o distanciamento social recomendado. 

Apenas uma semanas atrás, Trump estava internado devido à covid. Mas sua mensagem sobre a pandemia que já matou mais de 200 mil americanos e continua a tirar a vida de centenas de outros diariamente segue igual: uma avaliação questionável, baseada em exageros, distorções e mentiras, de que a pandemia é coisa do passado. 

A DW checou algumas das principais declarações de Trump no discurso.

Sobre sua doença:

"Eu passei por isso. Agora - eles dizem - estou imune, e me sinto tão forte que poderia ir ao público e beijar qualquer um. Vou beijar os rapazes e as mulheres bonitas (...) Vou dar em todos vocês um beijo grande e gordo."

A afirmação de Trump de que é imune não pode ser verificada neste momento. Sua equipe de médicos só forneceu informações de forma escassa sobre a doença e praticamente não respondeu a nenhuma pergunta dos jornalistas.

Entretanto, a afirmação de Trump não foi surpresa: já em 8 de outubro, o presidente havia dito em uma entrevista à estação de TV preferida, a Fox News, que ele estava imune. Ele também anunciou isso no Twitter, e a plataforma prontamente anexou o aviso "enganoso" e "possivelmente perigoso" ao seu post.

Pesquisas mostram que a maioria dos pacientes com covid-19 desenvolve anticorpos após uma cura bem-sucedida - mas não todos eles. O Instituto alemão Robert Koch, responsável pela prevenção e controle de doenças, cita dois estudos nos quais não foi possível detectar anticorpos neutralizantes em 41% das pessoas testadas.

Além disso, segundo o instituto, neste momento, ainda não está claro o quão regular, robusto e permanente é esse estado imunológico.

Gérard Krause, epidemiologista do Centro Helmholtz de Pesquisa de Infecções (HZI), disse à DW que a imunidade ainda não foi pesquisada a fundo e que declarações precisas só serão possíveis através de uma série mais longa de estudos.

Há, além disso, casos de reinfecção pelo coronavírus, como o relatado nesta terça-feiraem artigo publicado na revista The Lancet. 

Sobre uma possível vacina:

"Estamos muito à frente no tema vacina, e ela estará disponível em breve. Para ser honesto, há uma coisa política em curso. Eles não querem que seja liberada antes das eleições. Mas temos grandes vacinas que estão prontas: da Johnson & Johnson, Modena, Pfizer - grandes coisas vão acontecer com estas vacinas."

O fato é que não há nenhuma vacina contra o coronavírus disponível no mundo que comprovadamente funcione de acordo com as regras aceitas internacionalmente. As vacinas são geralmente testadas em procedimentos de múltiplos estágios com milhares de voluntários e examinadas quanto a efeitos colaterais.

Várias empresas farmacêuticas relataram recentemente progresso na pesquisa de possíveis drogas, incluindo a Johnson & Johnson, a fabricante americana de medicamentos mencionada por Trump. Entretanto, a empresa teve agora que interromper os testes da potencial vacina porque um paciente adoeceu, e médicos estão investigando o incidente.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 42 projetos de potenciais vacinas estão atualmente em fase de ensaio clínico e 151 candidatos estão em fase de testes pré-clínicos.

A Ministra alemã da Pesquisa, Anja Karliczek, por exemplo, admite que amplos setores da população não serão vacinados até "meados do próximo ano" e que não deveria haver "atalhos" nesse processo.

Trump, além disso, não fornece provas para a afirmação de que as forças políticas querem impedir que uma vacina seja liberada antes das eleições presidenciais de 3 de novembro.

Sobre Joe Biden:

"Sabe, nosso adversário, o 'Sleepy Joe' (Joe Dorminhoco), fez uma aparição em campanha hoje, e praticamente ninguém apareceu."

Trump refere-se nesta declaração ao comício do candidato democrata Joe Biden em Toledo, Ohio, naquele mesmo dia. Foi em um estacionamento onde - a uma distância uns dos outros - cerca de 30 carros estacionados receberam o candidato democrata com buzinaço.

"Praticamente ninguém" é uma declaração exagerada de Trump. Mas diretamente em frente ao estacionamento pelo menos o mesmo número de apoiadores republicanos gritava "Trump, Trump" enquanto a comitiva de Biden passava apressada. O comício de Trump na Flórida teve a presença de milhares de pessoas.

Sobre as pesquisas:

"Estamos indo muito melhor do que em 2016. O entusiasmo é maior, o sentimento é melhor. Se isso for possível, celebraremos uma vitória ainda maior do que há quatro anos. (...) Ganharemos na Flórida de lavada. Vamos ganhar muitos estados. Vamos liderar no Arizona, Nevada, e acho que vamos liderar na Pensilvânia."

Trump está atualmente atrás de Biden nas pesquisas em todo o país. O site FiveThirtyEight calcula a vantagem de Biden, três semanas antes da eleição, com base em várias pesquisas de opinião pública, em dez pontos percentuais atualmente.

Em comparação com o mesmo período de 2016, quando a eleição foi realizada em 8 de novembro, Trump não está melhor, mas pior. O instituto britânico de pesquisa de mercado e opinião Yougov mostrou na época uma vantagem de quatro pontos percentuais para Hillary Clinton sobre Trump.

Somente a noite eleitoral mostrará se a promessa de Trump aos seus apoiadores de ganhar o importante estado da Flórida pode realmente ser realizada. Na Flórida, as pesquisas atualmente apontam Biden à frente com vantagem média de quatro pontos. A situação é semelhante no Arizona (Biden lidera com cerca de três pontos), Nevada (sete pontos) e Pensilvânia (seis pontos). Biden está na liderança em todos os estados mencionados por Trump.

Publicado por Deutsh Welle, em 13.10.2020

Bolsonarismo sem Bolsonaro

A base radical bolsonarista está decepcionada com o presidente Jair Bolsonaro. A gota d’água foi a indicação do desembargador Kassio Marques para a vaga no Supremo Tribunal Federal. 

Assim que o nome do magistrado foi anunciado, as redes sociais bolsonaristas entraram em parafuso, e Bolsonaro chegou a ser chamado de “traidor”. Tudo porque Kassio Marques é considerado “petista” por ter sido nomeado pela presidente Dilma Rousseff em 2011 para o Tribunal Regional Federal da 1.ª Região.

Para piorar, o senador Renan Calheiros, alvo de 17 inquéritos em curso no Supremo, resolveu dar seu apoio explícito a Bolsonaro, dizendo que o presidente “pode deixar um grande legado para o Brasil que é o desmonte desse Estado policialesco que tomou conta de nosso país” – em referência à Operação Lava Jato. Segundo Renan Calheiros, a nomeação de Kassio Marques para o Supremo, bem como a de Augusto Aras para a Procuradoria-Geral da República e a demissão de Sérgio Moro do Ministério da Justiça, faz parte desse “desmonte”.

O próprio Bolsonaro não se fez de rogado e disse: “Acabei com a Lava Jato, porque não tem mais corrupção no governo”. Os intérpretes benevolentes da glossolalia bolsonarista podem dizer que o presidente só usou uma força de expressão para enfatizar a desnecessidade da Lava Jato ante a lisura de seu governo; já quem não é bobo viu aí um ato falho que trai um desejo.

Para aqueles que elegeram um político que prometia solenemente levar a Lava Jato para o centro do poder em Brasília – e para isso carregou a tiracolo o juiz símbolo da operação, Sérgio Moro – deve ser mesmo uma decepção e tanto.

O fato é que Bolsonaro está se descolando do chamado “bolsonarismo”, o movimento que leva seu nome, mas, como a esta altura já está claro, quase nada tem a ver, em essência, com o ex-deputado do baixo clero.

Para os fanáticos “bolsonaristas”, quase todos os políticos são corruptos, o “establishment”, dominado por “comunistas”, é o grande inimigo do País e a própria atividade política é irremediavelmente criminosa, razão pela qual defendem rupturas institucionais e, no limite, a instalação de uma ditadura. Era um discurso reacionário à procura de quem o declamasse sem qualquer pudor. 

A certa altura, Bolsonaro se ofereceu como o político que empunharia essa bandeira golpista, em nome do saneamento moral na Nação, e acabou por se viabilizar eleitoralmente, sobretudo em face dos muitos desmandos do PT e dos muitos erros cometidos pelos partidos do centro democrático.

Bolsonaro, contudo, nunca foi “bolsonarista”, no sentido dado por seus agora abalados seguidores. Mau militar e parlamentar de baixíssima extração, fez carreira medíocre na defesa de corporações de servidores públicos, sendo muito mais bem-sucedido como cabo eleitoral dos filhos.

Era preciso ser muito ingênuo, mal informado ou vesano para acreditar que alguém com essa folha corrida, sem qualquer serviço prestado ao País, fosse de fato liderar um movimento pelo resgate ético do Brasil. Passados quase dois anos do mandato, Bolsonaro já parece estar muito mais à vontade para rasgar a fantasia de impoluto defensor dos valores morais da Pátria, que nunca lhe caiu bem, e exibir-se como sempre foi, sem tirar nem pôr.

Bolsonaro caiu nos braços do Centrão, grupo de partidos fisiológicos com os quais tem muito mais afinidade do que os sabujos que o chamam de “mito” gostariam de admitir. Em meio a políticos que dedicam tempo e energia pensando exclusivamente na eleição seguinte e em como extrair vantagens do poder, o presidente deve estar se sentindo em casa.

Assim, com as bênçãos do sempiterno Renan Calheiros, governista sob qualquer governo, Jair Bolsonaro pode se entregar de corpo e alma a seu projeto de reeleição e concentrar energias na costura para evitar que sua prole, encalacrada na Justiça, responda por seus atos. 

Tudo isso mostra que, para Bolsonaro, o “bolsonarismo” nunca existiu senão como veículo para seu oportunismo político. Os zelotes desse movimento de araque terão que procurar outro messias para adorar.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 13.10.2020

Marco Aurélio mandou soltar quase 80 presos usando o mesmo critério do caso André do Rap

Decisões apontam falta de revisão das prisões preventivas; regra vale desde janeiro, como trecho do pacote anticrime. Fux suspendeu decisão sobre André do Rap, que agora está foragido.

O ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu neste ano pelo menos 79 pedidos de soltura com base no trecho do pacote anticrime que trata das prisões preventivas. O entendimento usado foi o mesmo que beneficiou o traficante André Oliveira Macedo, conhecido como André do Rap.

O levantamento exclusivo feito pelo G1 leva em conta apenas decisões publicadas pelo STF, o que exclui processos em segredo de justiça. O número de pessoas beneficiadas pode ser ainda maior, já que um mesmo habeas corpus pode beneficiar mais de um preso.

Em todas essas decisões, Marco Aurélio Mello se baseou no artigo 316 do Código de Processo Penal, que foi alterado em janeiro a partir da lei do pacote anticrime. O texto prevê que, quando uma prisão preventiva (definida por precaução) não é reanalisada a cada 90 dias pelo juízo responsável, ela se torna ilegal.

O caso André do Rap

André do Rap é um dos chefes do Primeiro Comando da Capital (PCC), facção criminosa que atua dentro e fora dos presídios de São Paulo, e estava preso desde setembro de 2019.

Fux estuda levar ao plenário do STF o caso do traficante André do Rap

Condenado em segunda instância por tráfico internacional de drogas, e sentenciado a penas que totalizam mais de 25 anos de reclusão, foi solto no sábado (12) após a liminar concedida por Marco Aurélio Mello.

O ministro afirmou que não houve a reavaliação da preventiva, ficando demonstrado o “constrangimento ilegal” da prisão, o que, segundo o pacote anticrime, autoriza a soltura.

Na noite de sábado, horas após a libertação de André do Rap, o presidente do STF, Luiz Fux, suspendeu a decisão de Marco Aurélio Mello e determinou uma nova prisão para o traficante. O Ministério Público e a Polícia Federal acreditam, no entanto, que ele tenha fugido em jatinho particular para o Paraguai ou Bolívia.

PF pede a inclusão de André do Rap na lista dos mais procurados da Interpol

Os outros casos

Entre os outros habeas corpus concedidos por Marco Aurélio, estão pedidos de presos e condenados por crimes diversos – a maioria, por tráfico de drogas e organização criminosa.

Há também acusados de homicídio qualificado, tentativa de feminicídio, corrupção ativa e outros crimes de menor potencial, como furto e receptação.

O ministro segue o entendimento de declarar a prisão ilegal e determinar a soltura do detento à risca, qualquer que seja a gravidade do crime. Sempre, com base no artigo 316 do Código de Processo Penal, que diz:

Art. 316. O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.

Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.

Marco Aurélio Mello também recebeu, no gabinete, pedidos de habeas corpus para prisões preventivas que tinham sido devidamente reanalisadas. Em pelo menos 68 situações como essa, o ministro deu respaldo à prisão e negou a soltura dos envolvidos.

A previsão de revisão periódica dessas detenções não estava no texto original do pacote anticrime, organizado pelo então ministro da Justiça Sergio Moro – o trecho foi adicionado pelo Congresso. Moro, na época, chegou a pedir o veto desse trecho, afirmando que juízes não teriam condição de revisar todas as preventivas do país.

Moro defende rever trecho do pacote anticrime que levou à soltura de André do Rap

Segundo os pedidos de habeas corpus que chegam ao STF, isso tem acontecido de fato. Em alguns dos casos julgados por Marco Aurélio Mello, o cronograma de revisões periódicas até foi cumprido em parte, mas a irregularidade nos prazos levou o ministro a decidir pela soltura.

Ministros divergem sobre decisão

Ao reavaliar o caso de André do Rap atendendo a um pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR), o presidente do STF, Luiz Fux, divergiu do entendimento de Marco Aurélio Mello.

O presidente do STF entendeu que a soltura compromete a ordem e a segurança públicas, por se tratar de paciente de comprovada altíssima periculosidade e com dupla condenação em segundo grau por tráfico transnacional de drogas.

Em entrevista à TV Globo, o ministro Marco Aurélio afirmou que atuou como “Supremo e não como cidadão Marco Aurélio” e que não mudaria sua decisão. "Não cabe ao intérprete distinguir e aí potencializar o que não está na norma em termos de exceção, ou seja, a periculosidade do agente”, afirmou.

Marco Aurélio reage à decisão de Fux de mandar prender novamente o traficante André do Rap

Na decisão de sábado, Fux não chegou a analisar em profundidade o artigo do Código de Processo Penal.

Até agora, apenas outros dois ministros divergiram explicitamente do entendimento de Marco Aurélio Mello em processos julgados: Edson Fachin e Gilmar Mendes. Ambos negaram a soltura de presos, mesmo nos casos em que a revisão tinha sido desrespeitada.

O ministro Edson Fachin argumentou que a ausência da reavaliação “não retira do juiz singular o poder-dever de averiguar a presença dos requisitos da prisão preventiva” e não revoga automaticamente a preventiva do preso.

Para o ministro, não faria sentido soltar o preso preventivo se a custódia ainda pode ser renovada pelo juiz da primeira instância. Por isso, Fachin negou o pedido e determinou a imediata revisão da prisão.

O ministro Gilmar Mendes julgou um pedido em que a defesa alegava que “a ausência da revisão conduz, automaticamente, à revogação da prisão”, mas decidiu negar a soltura.

O ministro disse que “preso tem direito à revisão da necessidade da prisão preventiva a cada noventa dias e, na sua ausência, cabe ao Poder Judiciário determinar sua pronta satisfação”.

Segundo Gilmar Mendes, o Legislativo pretendeu “garantir ao preso o direito de ter sua prisão regularmente analisada, a fim de se evitarem prisões processuais alongadas sem qualquer necessidade, impostas a todos os acusados/suspeitos/indiciados, mas em especial aos tecnicamente desassistidos”.

O ministro, no entanto, afirmou entender “que a melhor solução para a falta de revisão da necessidade da prisão preventiva seja mesmo a determinação para a sua realização pelo tribunal”.

Por Rosanne D'Agostino, G1 — Brasília, em 13/10/2020 05h00  Atualizado há 1 hora

Os 'documentos secretos' levados por Joe Biden ao Brasil que desafiam versão de Bolsonaro sobre ditadura

Dilma e Biden sorriem um para o outro, sentados em sala

CRÉDITO,ROBERTO STUCKERT FILHO/PRESIDÊNCIA DA REP. (2015)

Dilma e Biden em foto de 2015; na época, governo americano se aproximou de países latino-americanos com abertura de documentos históricos sobre violações de direitos humanos

Se havia alguma dúvida de que o presidente brasileiro Jair Bolsonaro e o presidenciável democrata Joe Biden estão em lados políticos opostos, o debate entre Biden e o presidente Trump na última semana tratou de dissipá-las. Na ocasião, Biden, favorito para vencer o pleito de 3 de novembro pelas atuais pesquisas, criticou a devastação da Amazônia e aventou até sanções econômicas ao país.

O meio ambiente, no entanto, está longe de ser o único tema de discordância entre Biden e Bolsonaro. O ex-vice-presidente americano está no centro de uma das empreitadas pelas quais o atual presidente brasileiro mais demonstrou desprezo e resistência: a apuração, pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), de crimes e violações cometidos por agentes públicos durante a ditadura militar, entre 1964 e 1985.

Em 17 de junho de 2014, Biden, o então vice-presidente na gestão Barack Obama, desembarcou em Brasília com um objeto especial na bagagem: um HD com 43 documentos produzidos por autoridades americanas entre os anos de 1967 e 1977. A partir de informações passadas não só por vítimas, mas por informantes dentro das Forças Armadas e dos serviços de repressão, os relatórios americanos detalhavam informações sobre censura, tortura e assassinatos cometidos pelo regime militar do Brasil.

Até aquele momento, a maior parte dos documentos era considerada secreta pelo governo dos Estados Unidos, que apoiou e colaborou com a ditadura durante boa parte do período em que os militares estiveram no poder.

Biden sabia bem do que se tratava. E sabia também que produziria impacto real ao passar a mídia para as mãos da então presidente brasileira Dilma Rousseff, ela mesma uma das oposicionistas torturadas nos porões da ditadura.

É certo que o governo americano poderia ter enviado o material por internet, pela embaixada nos Estados Unidos.

Mas a gestão Obama-Biden queria gravar seu nome no ato de abertura dos documentos, como um manifesto pela transparência e pelos direitos humanos.

Mais do que isso, queria melhorar relações diplomáticas com base na troca de informações altamente relevantes para a história de países como Brasil, Argentina e Chile.

No caso do Brasil, isso era ainda mais estratégico já que a revelação, meses antes, de que a Agência Nacional de Segurança americana (NSA, na sigla em inglês) havia espionado conversas da mandatária brasileira abalou o alicerce das relações entre os dois países.

"Estou feliz de anunciar que os Estados Unidos iniciaram um projeto especial para desclassificar e compartilhar com a Comissão Nacional da Verdade documentos que podem lançar luz sobre essa ditadura de 21 anos, o que é, obviamente, de grande interesse da presidente", afirmou Biden, sorridente, ao lado de Dilma.

Sem ditadura

A própria definição dada por Biden do regime militar é hoje refutada por Bolsonaro, que nega ter havido ditadura no país.

"Espero que olhando documentos do nosso passado possamos focar na imensa promessa do futuro", concluiu Biden.

Cinco anos após esse encontro entre Dilma e Biden, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro desqualificou por completo as revelações feitas pela CNV, das quais os documentos trazidos por Biden são peça fundamental.


"A questão de 64 não existem documentos se matou ou não matou, isso aí é balela, está certo?", disse Bolsonaro.

O presidente respondia à imprensa, que questionava uma declaração sua dada no dia anterior para atingir o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. Bolsonaro disse pra Santa Cruz que poderia esclarecer a ele como seu pai havia desaparecido.

De acordo com a Comissão Nacional da Verdade, Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira, pai do presidente da OAB, foi visto pela última vez em fevereiro de 1974, quando foi preso no Rio de Janeiro por agentes do DOI-Codi. Oliveira jamais voltou a ser visto. Ele morreu nas mãos dos agentes.

"Comissão da Verdade? Você acredita em Comissão da Verdade?Você quer documento para isso, meu Deus do céu? Documento é quando você casa, quando você se divorcia. Eles têm documento dizendo o contrário?, acrescentou Bolsonaro.

Mas, afinal, o que há nos documentos trazidos por Biden?

                                        reprodução de documento datilografado

CRÉDITO,ARQUIVO COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE

Documento enviado pelo consulado americano do Rio de Janeiro descreve padrão de tortura

"O suspeito é deixado nu, sentado e sozinho em uma cela completamente escura ou refrigerada por várias horas. Na cela há alto-falantes, que emitem gritos, sirenes e apitos em altos decibéis. Então, o detido é interrogado por um ou mais agentes, que o informam qual crime acreditam que a pessoa tenha cometido e que medidas serão tomadas caso não coopere. Nesse ponto, se o indivíduo não confessa, e se os agentes consideram que ele possui informações valiosas, ele é submetido a um crescente sofrimento físico e mental até confessar."

"Ele é colocado nu, em uma pequena sala escura com um chão metálico, que conduz correntes elétricas. Os choques elétricos, embora alegadamente de baixa intensidade, são constantes e eventualmente se tornam insuportáveis. O suspeito é mantido nessa sala por muitas horas. O resultado é extrema exaustão mental e física, especialmente se a pessoa é mantida nesse tratamento por dois ou três dias. Em todo esse período, ele não recebe comida nem água."

O texto acima é um trecho de um documento de sete páginas enviado pelo consulado americano do Rio de Janeiro ao Departamento de Estado, em 1973, e trazido por Biden em sua visita.

A comunicação diplomática informa que 126 pessoas teriam passado por tratamento parecido ao relatado, além de outras formas de sevícias, como o "pau de arara". O informe é feito não só com base em depoimentos de vítimas, mas de informantes militares, cuja identidade aparece protegida por trechos apagados no documento.

Detalhes

"Esse é um dos relatórios mais detalhados sobre técnicas de tortura já desclassificados pelo governo dos Estados Unidos", afirmou à BBC News Brasil Peter Kornbluh, diretor do Projeto de Documentação Brasileiro do Arquivo de Segurança Nacional Americano, em Washington D.C.

Ainda de acordo com Kornbluh, "os documentos americanos ajudam a lançar luz sobre várias atrocidades e técnicas (de tortura do regime). Eles são evidências contemporâneas dos abusos dos direitos humanos cometidos pelos militares brasileiros. Quase todo o mundo acredita neles. As pessoas que preferem não reconhecer a verdade sobre o que foi feito são os Bolsonaros e aqueles que realmente cometeram esses crimes".

Mas nem sempre Bolsonaro nega que a ditadura tenha cometido violações aos direitos humanos. Em julho de 2016, em uma entrevista à rádio Joven Pan, ele afirmou: "O erro da ditadura foi torturar e não matar".

E dois anos mais tarde, em meados de 2018, quando já estava em pré-campanha presidencial, confrontado com a informação de um relatório da CIA, aberto em 2015 no escopo do mesmo projeto de desclassificação de Biden, que o presidente Ernesto Geisel teria aprovado a execução sumária de adversários do regime, o atual presidente disse à rádio Super Notícia: "Errar, até na sua casa, todo mundo erra. Quem nunca deu um tapa no bumbum do filho e depois se arrependeu? Acontece."

Tortura e morte

Um dos outros documentos trazidos por Biden evidencia que a máquina repressiva da ditadura brasileira não só torturou como matou. Nele, o cônsul-geral americano em São Paulo, Frederic Chapin, afirma que ouviu o relato de "um informante e interrogador profissional trabalhando para o Centro de Inteligência Militar de Osasco", em São Paulo.



Reprodução de documento digitalizado

CRÉDITO,ARQUIVO COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE

Telegrama de 1973 descreve a tortura de um policial e de uma amiga dele que, inicialmente, se recusou a colaborar

Em um telegrama de maio de 1973, Chapin escreve o seguinte: "Ele (o informante) explicou como havia quebrado uma célula 'comunista' envolvendo um agente da polícia civil. O policial foi forçado a falar depois de ter tomado choques elétricos nos ouvidos e mencionou sua conexão com uma amiga, que foi imediatamente detida. Ela não foi cooperativa, no entanto, então foi deixada no pau-de-arara por 43 horas, sem alimentos ou água."

"Isso a quebrou, nossa fonte contou. Tortura, de uma forma ou de outra, é prática comum em interrogatórios em Osasco. Ele também nos deu um relato em primeira mão do assassinato de um subversivo suspeito, o que chamou de 'costurar' o suspeito, ou seja, dar tiros nele da cabeça aos pés com uma arma automática."

O termo "costurar" seria referência a um método para desfigurar o cadáver e evitar sua futura identificação.

Assassinatos cometidos pela repressão

O cônsul Chapin relata ainda que "vários agentes de segurança nos informaram que suspeitos de terrorismo são mortos como prática padrão. Estimamos que ao menos doze tenham sido mortos na região de São Paulo no ano passado (1972)".

Ao registrar as mortes em São Paulo, Chapin aponta para a atuação do coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, o chefe do DOI-Codi paulista, um dos principais órgãos de repressão do país, entre 1970 e 1974. Ustra foi o primeiro militar brasileiro a ser condenado civilmente pela Justiça pelos crimes de tortura. Ele é também considerado um herói e uma referência por Bolsonaro, que já afirmou ter como livro de cabeceira a obra de Ustra, A verdade sufocada.

"Sou capitão do Exército, conhecia e era amigo do coronel, sou amigo da viúva. (...) o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra recebeu a mais alta comenda do Exército, a Medalha do Pacificador, é um herói brasileiro", afirmou Bolsonaro em 2016.

Enquanto era deputado, no dia da votação da abertura de processo de impeachment da então presidente Dilma Rousseff, naquele mesmo ano, Bolsonaro citou o militar em seu voto: "Perderam em 1964, perderam em 2016. (...) Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, pelo Exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim".


"Só terroristas"

Outro documento da leva de Biden desafia um argumento central de Bolsonaro sobre o período: o de que o regime militar só prendeu, torturou e matou "terroristas".

Em dezembro de 2008, quando o Ato Institucional número 5, instrumento da ditadura que cassou liberdades individuais, completava 40 anos, o então deputado federal Bolsonaro ocupou o plenário da Câmara para dizer: "Eu louvo os militares que, em 1968, impuseram o AI-5 para conter o terror em nosso País, (...) Mas eu louvo o AI-5 porque, pela segunda vez, colocou um freio naqueles da esquerda que pegavam em armas, sequestravam, torturavam, assassinavam e praticavam atos de terror em nosso País".

reprodução de documento datilografado, com palavra 'confidencial' riscada em vermelho

CRÉDITO,ARQUIVO COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE

O Serviço diplomático americano no Brasil mandou uma comunicação ao Departamento de Estado registrando os relatos de um cidadão americano, Robert Horth, que havia sido confundido com um extremista e preso no DEOPS

Mas em outubro de 1970, o serviço diplomático americano no Brasil mandou uma comunicação ao Departamento de Estado registrando os relatos de um cidadão americano, Robert Horth, que havia sido confundido com um extremista e preso no DEOPS, a unidade de polícia política paulista.

Horth não era um comunista subversivo e afirmou aos diplomatas americanos que "cinco dos seis prisioneiros em suas celas eram absolutamente inocentes da acusação de subversão política".


Outro documento, de dezembro de 1969, dá força ao questionamento sobre os crimes reais dos alvos escolhidos pela repressão ao informar que freiras dominicanas foram presas, humilhadas e torturadas em Ribeirão Preto.

"Mais do que trazer novos fatos, os documentos americanos foram cruciais porque comprovaram muitos fatos a partir de uma fonte insuspeita. Estamos, afinal, falando de relatórios da diplomacia dos Estados Unidos, que não tinham qualquer simpatia pelos oposicionistas de esquerda e que apoiavam os militares", afirmou à BBC News Brasil Pedro Dallari, relator da CNV.

Prova de que o governo americano era, naquele período, abertamente a favor do regime está em uma comunicação do embaixador americano William Rountree de julho de 1972. Na carta, ele alerta ao Departamento de Estado que qualquer tentativa de fazer críticas públicas contra o que qualifica como "excessos" cometidos contra os direitos humanos poderia "prejudicar nossas relações gerais".


CNV


Os documentos americanos tornaram-se especialmente importantes para a CNV diante da negativa das Forças Armadas Brasileiras de oferecer evidências que corroborassem os depoimentos de vítimas de tortura em dependências militares.

"Ao mesmo tempo em que chegavam os documentos americanos, recebíamos retorno dos militares dizendo que suas sindicâncias não localizaram nada", afirma Dallari.

Kornbluh concorda que, enquanto muito da documentação brasileira do período pode já ter se perdido, os arquivos americanos são fonte importante para acessar a história brasileira.

"Parte dos militares brasileiros esconderam com sucesso a maioria de seus próprios documentos e mantiveram isso fora do escrutínio público. E conseguiram escapar de qualquer tipo de responsabilidade legal por seus crimes contra os direitos humanos. E então os documentos americanos fornecem um histórico fidedigno de pelo menos alguns casos. E se as coisas mudarem no Brasil, essas são evidências de crimes que ainda podem ser litigados", afirma o especialista, que menciona a lei da Anistia, de 1979, que impediu a responsabilização criminal de agentes e oposicionistas por crimes cometidos durante a ditadura.

Em 2014, durante os trabalhos da CNV, o Exército brasileiro afirmou que não opinaria sobre o reconhecimento do Estado Brasileiro em relação às torturas, enquanto a Força Aérea e a Marinha disseram não ter provas para reconhecer, tampouco refutar as acusações de violações de direitos humanos nas décadas de 60 e 70.

reprodução de telegrama em inglês, datilografado e com anotações manuscritas

CRÉDITO,ARQUIVO COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE

Embaixador escreveu sobre não condenar excessos publicamente

O que o histórico diz sobre relação Brasil-EUA em possível governo Biden?

Para Dallari, apesar de o golpe de 1964 ter recebido o apoio do governo americano, então sob a batuta do democrata Lyndon Johnson, nas últimas décadas, os democratas deixaram claro ter interesse em colaborar com processos de investigação sobre atrocidades cometidas pelos governos na região e o papel dos Estados Unidos nelas

"Eu não tenho porque duvidar que Obama e Biden tivessem real interesse em abrir essas informações. E o primeiro presidente americano a se opor a violações dos direitos humanos na região foi outro democrata, o presidente Jimmy Carter", diz ele, em referência ao presidente americano entre 1977 e 1981.

Na verdade, desde a administração Clinton, nos anos 1990, documentos secretos sobre ditaduras latino-americanas têm se tornado públicos. Mas foi na gestão Obama que essa abertura dos arquivos ganhou tons de política de relações exteriores, em algo que Kornbluh batizou de "diplomacia da abertura".

Além do Brasil, Argentina e Chile também receberam acesso a documentos, em um esforço americano para melhorar sua imagem e seu relacionamento na região.

E com Biden e Dilma, o especialista afirma que esse tipo de diplomacia alcançou um de seus pontos mais altos, já que as relações foram reconectadas depois da visita de Biden em 2014.

"Tenho certeza de que ele foi informado sobre o teor dos documentos. E é uma tarefa importante a de carregar esses documentos que descrevem violações graves dos direitos humanos durante a era militar. Certamente foi uma experiência de aprendizado para o vice-presidente Biden e um lembrete pungente para ele dos horrores cometidos", diz Kornbluh.

Em conversas com a BBC News Brasil, conselheiros da campanha de Biden têm dito que o tema dos direitos humanos é central para o candidato, especialmente na América Latina.

Mas embora ainda exista um grande arquivo intocado sobre a história da ditadura do Brasil, especialmente de informações dos órgãos de inteligência como FBI e CIA, é improvável que Biden faça qualquer nova abertura se vencer as eleições.

Isso porque documentos secretos americanos sobre outros países só podem se tornar públicos se os governos dessas nações requisitarem acesso aos americanos. E hoje não há interesse no governo brasileiro por esse tipo de informação.

"Naquele momento, a abertura foi importante e ajudou os dois países a se reaproximarem. Agora, em um possível governo Biden, com Bolsonaro no Brasil, é um contexto completamente diferente. Mas se Bolsonaro cometer violações de direitos humanos, a administração Biden agiria de modo muito mais rápido e negativo do que Trump e pressionaria Bolsonaro a parar", diz Kornbluh.

Mariana Sanches - @mariana_sanches, da BBC News Brasil em Washington

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Um país travado

Urge que o presidente deixe o papel de candidato antecipado de si mesmo e governe

 Um país travado é um país que não descortina horizontes. O futuro se vislumbra sombrio, pois os impasses do presente não se resolvem. A dívida pública torna-se cada vez mais preocupante, a crise fiscal não consegue ser equacionada, o desemprego é enorme, a pandemia persiste e seus efeitos certamente se prolongarão para o próximo ano. Pessoas estão desorientadas e inseguras, com uma quebra brutal de expectativas. E no meio de situação de tal gravidade se discutem a reeleição de 2022 e uma série de questões menores e secundárias.

A trava econômica é de natureza política. Ela se traduz pela desconfiança e pela insegurança, sem que os investidores nacionais ou estrangeiros se sintam confortáveis para apostar num país paralisado em suas decisões. As reformas não andam, as discussões sobre o auxílio aos mais necessitados não encontram fontes de financiamento, sobretudo porque os privilegiados socialmente não querem abrir mão de seus benefícios, e o presidente não consegue decidir, embora a própria omissão seja uma forma de decisão. Envia-se uma reforma administrativa que não mexe com nenhum dos privilégios atuais do funcionalismo público, nem chega sequer a cogitar, mesmo para o futuro, de mudar os privilégios do Judiciário, do Ministério Público e do Poder Legislativo. Os mais carentes são, mais uma vez, os perdedores.

O presidente optou pela inação, atento aos seus grupos de apoio, agindo nas redes sociais, olhando para a sua reeleição. Segue a pauta conservadora que o elegeu, apesar de dar sinais cada vez mais evidentes de que não cumprirá suas promessas eleitorais de uma reforma liberal da economia. Pouco foi feito nessa área, salvo a reforma da Previdência. De um lado é consequente consigo mesmo, de outro é incoerente. Acontece que estamos no final da primeira metade de seu mandato e há um longo caminho a percorrer, uma senda em que pessoas morrem de covid-19, estão famintas e perdem esperança na procura de um emprego ou de um meio digno de vida. O Brasil não pode esperar 2022.

O que fazer? O instituto da reeleição foi um erro histórico. O governante assume suas funções pensando no horizonte eleitoral, quando deveria preocupar-se unicamente com o governamental. Sua função consiste em governar, e não em se reeleger. A reeleição, quando muito, deveria ser somente uma consequência, e não um projeto exercido cotidianamente. Quando das últimas eleições, o candidato Bolsonaro acertadamente se voltou contra o instituto da reeleição, ciente dos prejuízos que isso causa à Nação. Ao assumir o poder, mudou de posição. O mais sensato seria voltar à sua opinião anterior!

Se não mais pretende fazê-lo, haveria talvez uma possibilidade intermediária. O presidente interditaria o debate sobre as eleições de 2022, declarando que essa questão só se colocará, por exemplo, em março de 2022, assumindo uma atitude de governante. Sua justificativa seria evidente: os problemas do País precisam ser enfrentados, e com medidas concretas que contrariariam muitos interesses encastelados na atual estrutura de poder. Decidir significa contrariar, pois os não contemplados sempre manifestarão seu descontentamento. O norte deve ser o bem coletivo, o Brasil acima de todos. Se isso vai ou não favorecer a eventual pretensão reeleitoral do presidente, só o tempo dirá. Quanto antes decidir, melhor para o País e também para a sua imagem. O que não se deve, em todo caso, admitir é que o Brasil siga definhando, problemas se acumulando sem solução.

Se para isso for necessário uma reforma ministerial, então que afaste os ruídos internos e a belicosidade contra inimigos reais ou imaginários na cena nacional e estrangeira, e o faça em nome dessa renovação. Passaria a mensagem de que realizaria uma grande mudança para governar, preocupado com a crise e assumindo suas próprias responsabilidades. Certamente contaria com o apoio do Poder Legislativo, que tem mostrado convicção reformista, particularmente clara na aprovação da reforma da Previdência. Tem sido, infelizmente, subaproveitado por vaidades e conflitos totalmente desnecessários e secundários. O mesmo se diga do Supremo, que tenderia – com um apaziguamento político e não sendo objeto de ataques – a exercer menor protagonismo político. Poderia até ser menos demandado, tendo como efeito uma menor judicialização da política.

Urge que o presidente tome uma atitude de governante, e não de candidato antecipado de si mesmo. Se o fizer, o clima no País mudará substancialmente. Vivemos politicamente fraturados, radicalizados, para além da imensa divisão que se traduz por uma desigualdade social gritante. O Brasil poderá viver um período de paz política, propício ao diálogo e à busca de equacionar os nossos problemas. O presidente poderia propor uma pauta concreta de medidas a serem adotadas, tendo como eixo o coletivo, e não o atendimento dos distintos interesses particulares, sejam eles sociais, estamentais ou econômicos. 

A paz política propicia o diálogo e, por via de consequência, o entendimento.

Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo, é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Publicado originalmente por O Estado de São Paulo, edição de 12.10.2020

Brasil tem 8,4 mil casos de covid-19 em 24 horas

País acumula 150.689 mortes e 5.103.408 casos da doença. Diretor da OMS avalia como positiva a queda nos números do coronavírus no Brasil, mas alerta para possível novo aumento das infecções.

Autoridades e instituições de saúde brasileiras alertam para a subnotificação dos dados referentes à covid-19

Autoridades e instituições de saúde brasileiras alertam para a subnotificação dos dados referentes à covid-19

O Brasil registrou oficialmente 8.429 novos casos confirmados e 201 mortes ligadas à covid-19 nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados nesta segunda-feira (12/10) pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) e pelo Ministério da Saúde.

Os novos números elevam o total de infectados para 5.103.408, enquanto o de óbitos chega a 150.689. Segundo o Ministério da Saúde, 4.495.269 pessoas se recuperaram da doença. O Conass não divulga o número de pessoas recuperadas.

Nos finais de semana e feriados, o registro de dados pelas Secretarias de Saúde tende a ser prejudicado em razão de dificuldades na coleta de informações.

O diretor de emergências da Organização Mundial da Saúde (OMS), Michael Ryan, disse nesta segunda-feira os que os números recentes da covid-19 no Brasil demonstram uma estabilização e queda dos casos da doença, mas alertou que essa tendência ocorre a partir de números bastante altos.

"Dizer que a doença está caindo no Brasil é algo positivo", afirmou. Ryan, porém, observou que "deve haver um alto índice de desconfiança conforme os números caem para garantir que sejam detectadas áreas em que eles possam estar aumentando".

"Nenhum país está fora de perigo ainda", advertiu. Ele disse que o Brasil é um país de proporções continentais e que as autoridades precisam estar atentas. "Como todos nós aprendemos duramente nos últimos meses, o fato de a doença estar em declínio não significa que ela não se agravará novamente. Precisamos continuar vigilantes", alertou.

Diversas autoridades e instituições de saúde brasileiras alertam que os números reais de casos e mortes devem ser ainda maiores do que os registrados oficialmente, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

São Paulo é o estado brasileiro mais atingido pela epidemia, com 1.038.344 casos e 37.279 mortes. O total de infectados no território paulista supera o dos registrados em praticamente todos os países do mundo, exceto Estados Unidos, Índia e Rússia.

A Bahia é o segundo estado brasileiro com maior número de casos, somando 326.634, seguida de Minas Gerais (323.967), Rio de Janeiro (283.858), Ceará (260.222) e Pará (237.958).

Já em número de mortos, o Rio é o segundo estado com mais vítimas, somando 19.312 óbitos. Em seguida vêm Ceará (9.135), Pernambuco (8.414), Minas Gerais (8.130), Bahia (7.159) e Pará (6.656).

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes no Brasil é de 71,7, uma das mais altas do mundo – só fica abaixo dos índices registrados no Peru (104,11), Bélgica (89,22) e Bolívia (73,18), não levando em conta o país nanico San Marino (124,32).

A cifra brasileira é bem mais alta que a registrada em países vizinhos como Argentina (53,64) e Uruguai (1,45), e também supera a dos EUA (65,64), nação mais atingida pela pandemia no planeta, e a do Reino Unido (64,54), país europeu com maior número de mortes.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam 7,7 milhões de casos, e da Índia, com 6,9 milhões. Mas é o segundo em número de mortos, depois dos EUA, onde morreram mais de 214 mil pessoas.

Ao todo, mais de 37,6 milhões de pessoas contraíram o coronavírus no mundo, enquanto mais de 1 milhão morreram em decorrência da doença, segundo contagem mantida pela Universidade Johns Hopkins.

Publicado por Deutsch Welle, em 12.10.2020

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Brasil se torna arriscado demais para investidores estrangeiros

É cada vez menor a confiança do empresariado estrangeiro de que o governo brasileiro conseguirá equilibrar o orçamento estatal e interromper o aumento da dívida.


Queda no mercado de ações e do real também são consequência da mudança na política econômica brasileira

Economista nenhum esperava que o real fosse perder até 40% de seu valor em relação ao euro neste ano. E certamente ninguém esperava que os investidores virassem as costas ao Brasil de tal forma. Mas um novo estudo mostra agora que a retirada de investidores estrangeiros é uma tendência de longo prazo e não parece ser necessariamente uma consequência direta da pandemia.

Isso é claramente demonstrado pelas previsões do Instituto de Finanças Internacionais (IIF, nas sigla em inglês). A associação bancária global realizou uma pesquisa entre seus membros, os 450 maiores bancos e fundos de investimento do mundo em 70 países. De acordo com a sondagem, a elite financeira global prevê que os investidores estrangeiros retirem cerca de duas vezes mais capital do Brasil do que no ano passado, o que pode corresponder a 24 bilhões de dólares (R$ 132 bilhões).

O assustador é que, ao contrário do ano passado, quando os investidores se retiraram principalmente dos títulos do governo brasileiro porque as taxas de juros caíram, eles agora estão vendendo principalmente ações e não mais títulos puramente financeiros. Mas eles também estão investindo significativamente menos diretamente nas empresas este ano do que antes. O IIF prevê que o investimento direto cairá de 73 bilhões de dólares em 2019 para 50 bilhões de dólares este ano.

Os investidores estrangeiros não esperam que as empresas brasileiras aumentem seus lucros e, portanto, dividendos nos próximos trimestres, de modo que os investimentos ainda valham a pena.

Ações e empresas baratas

Isso é surpreendente. Por um lado, as ações e empresas brasileiras ficaram baratas para os investidores estrangeiros por causa da desvalorização. Era de se esperar que eles fossem com sede ao pote, para garantir uma boa barganha. Mas não foi o que ocorreu.

Além disso, a liquidez global é extremamente alta. Há dinheiro suficiente. Por muitos anos, o Brasil sempre foi um porto seguro para investidores mais afeitos a riscos. Isso acabou.

Então, por que os investidores estrangeiros estão procurando a saída? Há várias razões para isso. Todos eles têm a ver com a crescente incerteza em todos os níveis. Por exemplo, a crescente insegurança jurídica mencionada em análises anteriores ou dúvidas sobre o futuro poder de compra dos brasileiros.

Mas a queda do mercado de ações e do real nas últimas semanas e as previsões ruins do IIF também são uma consequência da mudança que está ocorrendo atualmente na política econômica e financeira do Estado: é a mudança da política monetária cada vez mais fraca para o domínio crescente da política fiscal.

Fuga para o dólar

Em suma, ocorre o seguinte processo: o Banco Central é cada vez menos capaz de controlar a inflação futura com taxa de juros e política monetária. Isso pode ser visto nas taxas de juros crescentes que os investidores estão cobrando por seus empréstimos.

Os investidores temem que o governo reduza o déficit através de mais inflação e não por meio de medidas de austeridade ou aumento de receita – e estão fugindo para o dólar. O Banco Central agora pode aumentar as taxas de juros para impedir a saída do dólar e conter as expectativas de inflação. Porque isso aumentaria o déficit orçamentário ainda mais rápido, porque aumentam as despesas do Estado com juros sobre suas dívidas.

Quanto mais tempo permanece incerto se e como o governo está traçando o curso para conter o déficit crescente – mais o real se depreciará, elevando as projeções para a inflação futura.

Publicado por Deusch Welle, edição de 09;10;2020

A realidade bate à porta da Casa Branca

Trump fez questão de quase não usar máscara e minimizou repetidamente o coronavírus. Agora, o próprio presidente está infectado. Seu modo de lidar com a pandemia definirá a eleição, opina Ines Pohl.

Então, agora chegou a vez dele. Durante meses, Donald Trump minimizou os perigos da covid-19, zombou das pessoas que tentam se proteger com máscaras, declarou que a doença potencialmente fatal é uma invenção democrata e afirmou que nem tudo é tão grave assim.

Mesmo que pouco depois do anúncio do diagnóstico positivo não seja possível prever se e com que gravidade o mandatário de 74 anos adoecerá, os efeitos sobre a campanha política já são claros, nas vésperas das eleições: são desastrosos.

Sem considerar vidas

Todas as tentativas de desviar a atenção do próprio fracasso, de minimizar o fato de que não existe um plano nacional para proteger a população, de que os governadores foram abandonados à própria sorte e de que mais de 200 mil americanos morreram do vírus são agora obsoletas.

A realidade fez estourar o pacote de mentiras do presidente. Ele e sua equipe não conseguirão mais acender cortinas de fumaça, pintar os distúrbios violentos em algumas cidades como mais graves do que o fato de mil americanos morrerem todos os dias em decorrência do vírus.

Com todas as suas forças e ignorando perdas de vidas, Donald Trump tentou colocar a economia novamente nos trilhos antes do dia da eleição. Este plano também vai por água abaixo com este diagnóstico. Mesmo os maiores negacionistas do coronavírus não poderão mais deixar de admitir que o vírus é altamente contagioso – já que ele pode contagiar até mesmo o homem forte que reside na Casa Branca. Neste 2 de outubro, o país está mais longe do que nunca da normalização que Trump esperava tão desesperadamente.

Teorias da conspiração

Imediatamente depois que sua infecção se tornou conhecida, uma enxurrada de comentários sarcásticos caiu sobre o presidente. Até teorias da conspiração foram divulgadas, dizendo que ele inventou tudo para distrair a atenção de seus números ruins nas sondagens.

Ele pode lidar bem com tudo isso, afinal, são coisas com que presidente dos "fatos alternativos" está acostumado. Mas não com a perda de sua imagem de touro imbatível. Porque nesse caso não deve restar muita coisa.

Biden: de velho a cauteloso

Depois do primeiro debate na TV, o principal argumento dos apoiadores de Trump a seu favor era de que ele estava significativamente mais em forma e, portanto, era mais adequado para este cargo exaustivo de presidente dos Estados Unidos do que seu oponente. A menos que Joe Biden tenha sido infectado durante o debate, esse argumento não deve valer mais – pelo menos nas próximas semanas. Agora não mais sua suposta senilidade deve estar em primeiro plano, mas sua sabedoria de idoso, expressa na razoável cautela.

O impotente presidente Trump tem pouco a oferecer. E definitivamente não é a receita certa para lidar com essa perigosa e contagiosa doença. A decência obriga que seja desejado a Donald Trump e sua mulher, Melania, tudo de bom para os próximos dias.

Ines Pohl foi editora-chefe da DW (Deutsch Welle) e hoje é correspondente em Washington. O texto reflete a opinião pessoal da autora, e não necessariamente da DW.

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Investigado deve depor em dia, hora e local definido pela Polícia, diz Celso de Mello

Decano é relator do inquérito que apura suposta interferência política do presidente Jair Bolsonaro na Polícia Federal e, em seu último voto no caso antes da aposentadoria, afirma que 'ninguém, absolutamente ninguém, tem legitimidade para transgredir as leis e a Constituição'   

Em seu voto último voto após 31 anos no Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Celso de Mello fez uma defesa do princípio de que todos são iguais perante a lei, e votou pela recusa a um pedido do presidente Jair Bolsonaro, que busca depor por escrito em um inquérito que apura interferência política na Polícia Federal. O decano da corte fez críticas a ‘privilégios’ e ‘tratamentos especiais’ e manteve a posição que havia demonstrado em setembro, quando determinou que Bolsonaro fosse ouvido presencialmente pela PF.

Mello afirmou que qualquer investigado, seja chefe de poder ou não, deve passar por interrogatório presencialmente, de acordo com a lei. “Nunca é demasiado reafirmar que a ideia de República traduz um valor essencial: a igualdade de todos perante as leis do Estado. Ninguém, absolutamente ninguém tem possibilidade para transgredir as leis. Ninguém está acima da autoridade e do ordenamento jurídico brasileiro”, afirmou o ministro nesta quinta-feira, 8, no plenário do Supremo.

O ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal. Foto: Carlos Humberto/SCO/STF

O ministro, que deixa o STF no próximo dia 13, afirmou que investigados, ‘independentemente da posição funcional que ocupem no aparato estatal ou na hierarquia de poder do Estado, deverão comparecer, perante a autoridade competente, em dia, hora e local por esta unilateralmente designados’.

Mello afirmou que tem defendido essa posição há mais de 20 anos no STF. A lei, como destacou, prevê apenas depoimento por escritos para presidentes de poderes quando eles estão na condição de testemunha, mas não na de investigados. Em sua explicação, Mello afirmou que a presença de réus não pode não ser substituída e não é possível haver interrogatórios por procuração. Segundo ele, sem o depoimento presencial, há prejuízo para a investigação, diante da impossibilidade de se fazer novas perguntas e explorar eventuais contradições.

“O dogma republicano da igualdade, que a todos nos nivela, não pode ser vilipendiado por tratamentos especiais e extraordinários inexistentes em nosso sistema de direito constitucional”, disse. O ministro afirmou, também, que não se pode justificar “o absurdo reconhecimento de inaceitáveis e odiosos privilégios, próprios de uma sociedade fundada em bases aristocráticas ou, até mesmo, típicos de uma formação social totalitária”.

Jair Bolsonaro é investigado pela Polícia Federal e pela Procuradoria-Geral da República desde abril, após o então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, afirmar que estavam acontecendo interferências indevidas na Polícia Federal, por parte do presidente. Na segunda-feira, 5, o inquérito foi prorrogado por mais 30 dias.

Como a investigação chegou na fase de tomada de depoimento, o ministro Celso de Mello determinou que ele fosse tomado presencialmente, em setembro. Apesar de Bolsonaro ter dito anteriormente que, para si, não fazia diferença a forma do depoimento, a Advocacia-Geral da União – que o representa no caso – recorreu ao plenário do Supremo, para que ele seja autorizado a prestar informações por escrito.

Segundo destacou a defesa de Bolsonaro, precedentes no tribunal permitiram que depoimentos fossem tomados por escritos. O ex-presidente Michel Temer teve essa permissão concedida em 2017 e 2018, por decisões dos ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso. O procurador-geral da República, Augusto Aras, concordou com o pedido da defesa de Bolsonaro.

Celso de Mello, porém, afirmou que a recusa para depoimento por escrito não é inédita entre chefes de poderes. Ele explicou que o ex-ministro do STF Terori Zavascki determinou depoimento presencial de um ex-presidente do Congresso Nacional. “O postulado republicano repele privilégios e não tolera discriminação, impedindo que se faça tratamento seletivo em favor de determinadas pessoas”, disse Celso de Mello.

O decano frisou, também, que presidentes de poderes, como quaisquer cidadãos, têm uma série de direitos — entre eles, não ser tratado como culpado antes do trânsito em julgado, não se incriminar, não ser condenado com provas ilícitas.

Em seu voto, Celso de Mello afirmou, ainda, que Sérgio Moro, também investigado no caso, deve ter o direito de formular perguntas para serem feitas ao presidente Jair Bolsonaro, por meio de seus advogados.

Quanto aos argumentos da AGU e da PGR, Celso de Mello deixou claro que esta é a primeira vez que o plenário do Supremo está discutindo se presidentes de Poderes, quando investigados, podem depor por escrito, direito que, pela lei, só lhes é dado quando são testemunhas. De acordo com o relator, não procede afirmação do procurador-geral da República de que decisões de Fachin e Barroso representam jurisprudência consolidada do tribunal. “Não há pronunciamento colegiado na Suprema corte sobre o tema agora em julgamento”, disse o decano. ”Esse ponto que está sendo julgado pela primeira vez.”

Mello afirmou também que o fato de o presidente poder permanecer em silêncio e mesmo não comparecer ao relatório não dá o direito de depor por escrito. “Caso fosse possível admitir-se essa particular interpretação oposta pelas doutas AGU e PGR, deveria tal exegese (interpretação) ser estendida, por razões de equanimidade, a todos aqueles contra quem se praticam atos de persecução penal, uma vez que a todos os cidadãos é dado o direito ao silêncio, de não comparecer ao interrogatório, de não produzir provas contra si mesmo”, disse.

“O fato de o presidente titularizar direitos como todos cidadãos do país titularizam não permite o presidente criar um direito particular que lhe propicie como particular prerrogativa que qualquer outro investigado não possui”, afirmou o decano.

Ao término do voto, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, agradeceu a ‘última lição’ do decano.

“Toda vez que vossa excelência erguer a sua voz, da sua boca e da sua pena sempre sairão para nós, ministros, lições como profissionais e como homens”, disse Fux, que ontem já havia homenageado o decano.

Fux não informou quando o julgamento será retomado.

Breno Pires , de Brasília / O Estado de São Paulo, em 08.10.2020.

Reforma administrativa: questão de cidadania

Apesar de atrasada e diminuta, proposta apresentada pelo governo abre ao Parlamento a possibilidade de agir

No início de setembro o governo encaminhou ao Congresso uma proposta de Reforma Administrativa atrasada e diminuta. Apesar dos pesares, ela abre ao Parlamento a possibilidade de agir. A atual legislatura mostrou ímpeto reformista na Previdência, mas agora o desafio é mais complexo. Uma nota técnica do Centro de Lideranças Públicas (CLP) dá a medida dessa complexidade.

Antes de tudo há as distorções: a estabilidade indiscriminada; a progressão automática de carreira; e o déficit nas avaliações de desempenho. Muitos servidores ingressam com remunerações elevadas e alcançam em pouco tempo o topo da carreira, não com base em resultados e méritos, mas em tempo de serviço ou certificados acadêmicos.

Além das distorções, há as perversões. O Banco Mundial estima que os servidores públicos no Brasil recebam em média 18% acima de seus pares privados. Outras estimativas apontam que essa diferença pode chegar a 50%. De resto, há as disparidades no próprio serviço público entre a elite e a base. Pelo coeficiente Gini de mensuração de desigualdade, estima-se que a desigualdade no setor público seja 7 vezes maior que no privado, podendo variar de 4 a 14 pontos conforme a região.

A análise comparada expõe esta disfuncionalidade e perversidade da máquina pública. O número de servidores no Brasil não é alto. São 5,6% da população, enquanto a média dos países da OCDE é de 9,5%. Mas os gastos com pessoal correspondem a 13,8%, o que, segundo o Banco Mundial, coloca o País na 15.ª posição entre os que mais gastam como proporção do PIB. Em outras palavras, comparativamente, o Brasil tem poucos funcionários que ganham muito.

A Constituição de 1988 estendeu a todos os servidores a condição de estatutários com estabilidade. Mas nos países desenvolvidos apenas alguns postos, como juízes, soldados, fiscais ou policiais, têm essa prerrogativa. Na Suécia e na Espanha, por exemplo, apenas 1% dos funcionários é estatutário. Na Grã-Bretanha são 10%, e mesmo assim com estabilidade parcial.

Um dos pontos positivos da reforma em trâmite é a eliminação de vários privilégios, como licença-prêmio; aumentos retroativos; férias acima de 30 dias; aposentadoria compulsória como punição; ou promoções automáticas.

Outro avanço são os modelos de contratação diversos. Os cargos típicos de Estado seriam apenas aqueles que não podem ser transferidos para o mercado. A estabilidade seria mantida, mas após um período probatório de 3 anos. Além disso, há os cargos por prazo determinado ou indeterminado, mas que podem ser extintos caso se mostrem obsoletos.

Um terceiro ponto positivo é que a reforma abarca União, Estados e municípios. Mas, como lembra o CLP, os pontos questionáveis são exatamente as suas exclusões. Primeiro, a reforma só valerá para os futuros concursados. Depois, ficou de fora precisamente a elite do funcionalismo – militares, promotores, juízes e parlamentares. Tal como está, a reforma aumentará em muito a desigualdade entre os quadros públicos.

O governo seguiu o entendimento de que não teria legitimidade para reformar outros Poderes. Essa justificativa, em si questionável, não explica por que os militares, que compõem o Executivo e mantiveram a maioria de seus privilégios na Reforma da Previdência, ficaram de fora. O Congresso, ao menos, já está encaminhando sua própria Reforma Administrativa e há quem diga que, sendo o campeão dos privilégios, tem mais legitimidade para tratar das categorias do Judiciário.

Estima-se que em 15 anos cerca de um terço dos servidores da União se aposentará. A calibragem eficiente da reposição poderá trazer mais equilíbrio para as contas públicas. Tudo somado, o CLP calcula que o impacto fiscal da reforma pode levar a uma economia de R$ 403,3 bilhões até 2024.

Todos os brasileiros, inclusive os funcionários públicos, merecem serviços mais eficientes. Os trabalhadores privados merecem mais paridade em relação aos públicos, assim como os servidores da base em relação à elite. O Congresso tem a oportunidade de brindar a população com essas três conquistas numa só reforma.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, edição de 08.10.2020.


Pandemia domina debate entre Mike Pence e Kamala Harris

Em confronto civilizado, candidatos a vice dos EUA discutem propostas. Democrata parte para o ataque contra o governo, enquanto republicano fica na defensiva.

    
Kamala Harris e Mike Pence em debate
Segurança no debate foi reforçada devido à pandemia

Uma semana depois do caótico confronto entre os candidatos à presidência dos Estados Unidos, seus vices, o republicano Mike Pence e a democrata Kamala Harris, se enfrentaram num evento transmitido ao vivo da Universidade de Salt Lake City. A pandemia de covid-19, que atingiu em cheio a Casa Branca, dominou esse que será o único debate entre os candidatos a vice-presidente.

Separados por dois painéis de acrílico e sentados a 3,7 metros de distância, Pence e Harris trocaram farpas, mas mantiveram a civilidade num confronto de 90 minutos realizado na noite desta quarta-feira (07/10), que além da pandemia abordou os temas da campanha dos candidatos.

A crise do coronavírus foi o principal assunto da primeira meia hora do evento, que ocorre num momento em que o presidente Donald Trump está infectado e em que cada vez mais funcionários da Casa Branca e do Pentágono, além de parlamentares republicanos, testam positivo para a covid-19, após terem minimizado a doença e ignorado medidas para evitar o contágio.

Harris criticou a resposta do governo Trump à crise gerada pelo coronavírus nas áreas de saúde e economia. "O povo americano assistiu ao que é a maior falha de qualquer administração presidencial na história do nosso país", afirmou a democrata, destacando os mais de 211 mil óbitos causados pela doença no país.

A candidata culpou Trump e Pence, que lidera a força-tarefa de combate à covid-19, por terem omitido a gravidade da doença no início da pandemia. "Eles sabiam o que estava acontecendo e não disseram para vocês", afirmou, dirigindo-se à audiência ao olhar diretamente para a câmera, tal como o candidato democrata Joe Biden fez durante no debate com Trump.

Ao partir para o ataque, Harris acusou ainda o governo de querer tirar o seguro de saúde de 20 milhões de pessoas, na tentativa de acabar com a lei de Cuidados de Saúde a Baixo Custo, conhecida como Obamacare.

Na réplica, Pence defendeu a forma como a Casa Branca lidou com a pandemia e disse que Trump salvou milhares de vidas ao fechar as fronteiras com a China, onde o surto teve início. "Desde o primeiro dia, Trump pôs a saúde dos EUA em primeiro lugar."

O vice afirmou ainda que haverá "dezenas de milhões de doses" da vacina contra a covid-19 prontas para serem distribuídas "antes do final do ano" e que o plano de Biden para combater a pandemia "parece um plágio" do que a Casa Branca tem feito. Na defensiva, Pence afirmou que o Obamacare é um desastre e disse que seu governo está trabalhando numa proposta melhor. 

"O que Pence diz que a administração fez claramente não está funcionando", contra-atacou Harris, que insistiu em responsabilizar a Casa Branca pelos efeitos econômicos da pandemia e acrescentou que "não podia haver uma diferença mais fundamental" entre os planos dos candidatos para a economia.

"Biden acredita que se mede a saúde e força da economia americana com base na saúde e força do trabalhador e da família americana. Por outro lado, Trump mede a força da economia com base em como estão as pessoas ricas", destacou a candidata, que é a primeira mulher negra a concorrer à vice-presidência dos Estados Unidos. 

Economia 

Harris prometeu ainda que Biden irá anular os cortes de impostos feitos por Trump e usar esse dinheiro para investir em infraestrutura, inovação, energia limpa e educação, com alguns níveis de ensino superior se tornando gratuitos. 

Pence usou essa questão a seu favor, dizendo aos eleitores que Biden irá aumentar os impostos. Harris retrucou e ressaltou que ninguém que ganhe menos de 400 mil dólares por ano sofrerá um aumento da carga fiscal. 

Durante os 90 minutos do debate, moderado pela jornalista Susan Page, Pence interrompeu Harris algumas vezes, levando-a a reclamar para que ele a deixasse completar a fala. O tom da discussão, no entanto, foi bem menos acirrado que o do debate presidencial.

Page tentou fazer com que os candidatos cumprissem as regras acordadas antes do início, mas não conseguiu que ambos respondessem diretamente a algumas perguntas. 

Em vários momentos, Pence usou o tempo de resposta para direcionar a discussão para outros temas, se esquivando, por exemplo, de responder a questões sobre o estado de saúde de Trump, que foi diagnosticado com covid-19 e precisou ser internado por três dias.

Harris também evitou a pergunta sobre se ela e Biden vão tentar aumentar o número de assentos na Suprema Corte dos EUA, caso a candidata nomeada por Trump, Amy Coney Barrett, seja confirmada antes das eleições. 

Resultado eleitoral

Ao ser questionado sobre seu papel se Trump fosse derrotado nas eleições e se recusasse a aceitar o resultado, Pence não se comprometeu com uma transferência pacífica de poder.

"Em primeiro lugar, penso que vamos vencer esta eleição", afirmou, acusando os democratas de não terem aceitado a vitória de Trump em 2016, numa referência ao processo de impeachment aberto pelo partido no final de 2019 e à investigação do procurador especial Robert Mueller sobre a interferência russa na campanha de 2016.

Sem provas, Pence adotou a estratégia de Trump de colocar dúvidas sobre a integridade dos votos por correspondência e disse que isso poderia levar a fraudes em massa, algo que especialistas descartam.

O debate abordou ainda as mudanças climáticas e a reforma na polícia devido às tensões raciais geradas pela morte de George Floyd, deixando claro as diferenças nas propostas e linha de atuação dos partidos. Enquanto Harris defendeu a luta contra a violência policial, Pence negou a existência de um racismo sistêmico na instituição.

Os próximos debates entre Biden e Trump estão marcados para 15 e 22 de outubro. Apesar da doença do presidente, nenhum dos dois eventos foi cancelado até o momento. Trump disse que pretende comparecer aos debates, mas Biden afirmou que só irá se seu adversário tiver testado negativo para a covid-19.

Publicado por Deutsch Welle, edição de 08.10.2020

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Reforma do Estado

O Brasil evoluiu nas últimas décadas. Mas essa permanece como uma tarefa inconclusa

A atuação do Estado está ligada a múltiplos elementos e pode ser julgada sob diversas óticas. De qualquer forma, o mais importante é ele desempenhar o papel para o qual existe, que é o de atender adequadamente à população – e, nesse sentido, é evidente que o Estado brasileiro deixa bastante a desejar.

Exatamente por essa deficiência, a expressão “reforma do Estado” permeia as reflexões sobre o tema geral das grandes reformas do País há muitos anos. Levando em conta esse pano de fundo, eu e meus colegas da área de planejamento do BNDES Sérgio Guimarães Ferreira e Antônio Hoelz Ambrozio organizamos o livro Reforma do Estado Brasileiro – Transformando a Atuação do Governo, recentemente publicado pela GEN Editora.

Procuramos explicar o sentido do livro na apresentação que antecede os capítulos. O objetivo de qualquer organização pública deve ser a busca da eficácia, da eficiência e da efetividade. Eficácia se mede pela capacidade de entregar o produto ou serviço; eficiência, pela capacidade de fazê-lo ao menor custo possível; e efetividade, pela capacidade de produzir o maior impacto possível para a sociedade. Sabemos que no Brasil o Estado não tem sido eficaz. Obras públicas paradas são o exemplo mais óbvio em todos os níveis. O Estado aqui também não é eficiente. Os serviços públicos, além de ineficazes em sua operação, são ofertados de forma custosa. Por último, o Estado brasileiro tem baixa efetividade na medida em que suas intervenções têm muitas vezes baixo impacto.

O livro, de 23 capítulos, é aberto com a tirada de W. Churchill de que “é mais fácil comprar um submarino que ser autorizado a comprar um pacote de chá para as reuniões de gabinete”, algo que merece reflexão nos tempos atuais, em que os controles de todo tipo começam a cobrar um custo importante para a agilidade da gestão em todos os âmbitos. O livro conta com prefácio de Armínio Fraga, “orelha” escrita pelo jornalista Fernando Dantas e contracapa do ex-secretário do Tesouro Mansueto Almeida, e se divide em oito blocos.

O primeiro grupo de capítulos basicamente introduz o tema da natureza e das formas de funcionamento do Estado moderno. A segunda parte traz um conjunto de capítulos que trata do equilíbrio intertemporal de receitas e despesas, com abordagens complementares que lidam com o tema – muito discutido na literatura internacional – das regras fiscais.

A terceira parte lida com o que poderíamos denominar “função de produção” da administração pública, representada pelos recursos humanos e pelas compras de bens e serviços. A quarta parte trata do desafio de alocar recursos escassos de forma a maximizar o resultado final desejado e inclui capítulos sobre propostas de redefinição do processo orçamentário, gestão pública baseada em evidências, processos de monitoramento e avaliação, mecanismos de transformação da gestão pública e a integração das diversas políticas governamentais.

A quinta parte engloba capítulos cujos autores procuraram responder a uma mesma indagação: como aproximar o governo das preferências e necessidades dos cidadãos? Isso implica discutir temas ligados à descentralização administrativa, à lógica de ação dos agentes políticos, às normas que regem a conduta dos administradores públicos, ao aprimoramento do combate à corrupção e à relação entre o comportamento dos governos e o fenômeno das novas mídias.

A sexta parte traz propostas de mudança da atuação do Estado. Ela inclui um relato do processo de privatização desde 1990 até os dias atuais; uma reflexão sobre o papel do Estado como regulador, com um olhar sobre o caso específico do setor de energia; uma discussão acerca de como melhorar a efetividade de algumas políticas; e a necessidade de quebrar barreiras à entrada e de usar o Estado para favorecer os mecanismos de competição.

A sétima parte discute uma velha questão da teoria do Estado: quem controla o controlador? Nele se procura definir os limites que o Estado deveria ter na função de controle e a relação entre o Judiciário e os demais Poderes.

Por último, há uma oitava parte com uma reflexão sobre a definição das questões de que o livro trata, mas avaliadas à luz da crise do coronavírus de 2020.

O estudo dos processos de desenvolvimento que levaram sociedades outrora com sérios problemas a se tornar agrupamentos de cidadãos prósperos nos ensina que as instituições desempenham papel-chave para o progresso. Nesse sentido, não há dúvidas de que o Brasil evoluiu nas últimas décadas. A Constituição de 1988 envolve um compromisso social importante, temos ritos democráticos que se repetem sem percalços há muitas eleições e a macroeconomia está mais organizada que do no passado, com inflação; e agora também com taxas de juros baixas. A reforma do Estado, porém, permanece como uma das tarefas inconclusas de nossa caminhada.

Esperemos que a leitura do livro possa representar uma modesta contribuição para a reflexão sobre o tema.

Fabio Giambiagi, o autor deste artigo, é economista. Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, edição de 07 de outubro de 2020 | 03h00

O alarme contra a crise fiscal

O alarme soa com instabilidade do dólar e dos juros futuros, mas se dissipa na Praça dos Três Poderes

Um novo desastre fiscal, com as contas públicas em frangalhos e a dívida pública disparada, pode levar o País a uma crise mais funda, alertam grandes bancos, investidores, analistas de mercado e o Fundo Monetário Internacional (FMI). O alarme soa no dia a dia, com o sobe e desce do dólar e a instabilidade dos juros futuros, mas o barulho se dissipa, quase sem efeito, na Praça dos Três Poderes. Nesse estranho enclave no centro do País, alguém se lembra de vez em quando, ou é lembrado, de preceitos meio cabalísticos, como uma estranha regra de ouro e um inoportuno teto de gastos.

Relatórios do Deutsche Bank, do Itaú Unibanco e do Bradesco, citados em reportagem do Estado, chamam a atenção, mais uma vez, para o desafio de conter a expansão do buraco fiscal e da enorme dívida pública. Mas o presidente Jair Bolsonaro parece ter pouco tempo – quase nenhum – para preocupações desse tipo. Cuidar da reeleição tem sido sua atividade principal, e uma fonte de sustos e inquietações para o mercado e para muitos analistas da economia brasileira.

Discussões sobre como financiar a Renda Cidadã, concebida como grande bandeira eleitoral, têm ocasionado frequentes sobressaltos. Brigas entre ministros por causa da gestão do dinheiro público também inquietam investidores e analistas. Além disso, o mercado reage mal quando se fala de investimentos eleitoreiros, obviamente imaginados como pretextos para viagens presidenciais. Não se trata, é claro, de planos de obras estratégicas para o desenvolvimento, até porque esses conceitos são estranhos ao mundo bolsonariano.

Dólar mais caro, aumento de custos e expectativa de juros mais altos no médio e no longo prazos são alguns dos efeitos dessa inquietação. O Banco Central (BC) tem chamado a atenção, em seus comunicados, para o risco de juros em alta se o mercado perder confiança na gestão das contas públicas.

O presidente do BC, Roberto Campos Neto, tem feito muito mais que divulgar as notas da instituição. Tem mostrado, em reuniões do Executivo, a importância de um claro compromisso com a responsabilidade fiscal. Reuniu-se com Bolsonaro duas vezes, desde o fim de setembro, para alertá-lo sobre os temores do mercado.

As incertezas sobre a gestão das finanças públicas são mencionadas, embora de forma suavemente diplomática, em relatório divulgado pelo FMI depois da recente visita ao Brasil de uma equipe técnica. Nesse tipo de visita, realizado anualmente, funcionários do Fundo coletam informações do governo e de outras fontes para a elaboração de um relatório sobre as condições perspectivas do país. A maior parte dos países-membros participa desse ritual e autoriza a divulgação dos dados e das avaliações.

“Com a dívida pública ascendendo a 100% do PIB, preservar o teto constitucional de gastos como âncora fiscal é fundamental”, assinala o comunicado, “para apoiar a confiança do mercado e manter contido o prêmio de risco soberano.” Soberano, nesse caso, é o risco associado à dívida pública.

Essa dívida, de R$ 6,39 trilhões em agosto, já bateu em 88,8% do Produto Interno Bruto (PIB) e no fim do ano encostará em 100%, segundo as projeções correntes. Na média, o endividamento público nas economias emergentes deve ficar, neste ano, próximo de 60% do PIB, provavelmente pouco acima.

O maior endividamento é inevitável num ano de pandemia devastadora e enormes perdas econômicas. O FMI ajudou dezenas de governos a enfrentar os gastos com saúde e com apoio a empresas e famílias. Mas, passada a fase mais crítica, é preciso consertar os fundamentos da economia e criar condições para uma retomada segura.

No caso do Brasil, essa próxima etapa deve incluir, segundo a equipe do FMI, reformas para desengessar o Orçamento, proporcionar eficiência ao governo e tornar a tributação mais progressiva e mais favorável à alocação racional de recursos. Alguns desses pontos podem aparecer na retórica oficial, mas, no dia a dia, nem o mero compromisso com a responsabilidade fiscal está claro. O sobe e desce do mercado é um retrato das incertezas.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo - 07 de outubro de 2020 | 03h00

Vacina em novembro

Erradicação da loucura que assola o mundo tem de começar pela eleição dos EUA

Parecia impossível que algum líder mundial fosse superar o festival de loucuras que Jair Bolsonaro protagonizou durante a pandemia do novo coronavírus, subindo em lombo de cavalo, promovendo aglomerações, indo a atos antidemocráticos, mostrando cloroquina para as emas, etc.

Mas aconteceu. Desde que foi diagnosticado com covid-19, na semana passada, Donald Trump deixou o pupilo brasileiro no chinelo em termos de impostura e inadequação não apenas ao cargo que ocupa e ao qual se agarra com unhas e dentes, mas também aos princípios básicos de civilidade e convívio público no curso de uma emergência sanitária.

O homem mais poderoso do planeta foi internado na sexta-feira com muitas dúvidas pairando quanto à data exata de seu diagnóstico, se ele promoveu eventos já sabendo que estava doente ou a gravidade do quadro antes e depois de ser hospitalizado. 

À falta de transparência inimaginável para um País que se gaba de ser o berço e o guardião da democracia ocidental se somou a boçalidade desvairada.

Desesperado diante do revés da doença quando fazia questão de zombar dela, vender tratamentos mandrakes e defender e praticar comportamentos sociais irresponsáveis, Trump quis se mostrar forte. 

Para isso, expôs assessores, seguranças e equipe do hospital a risco de contaminação. O carro em que ele fez o desfile patético é blindado inclusive para ataques químicos e biológicos, o que significa dizer que, se nada entra, tampouco sai. A carga viral de um presidente doente ficou toda concentrada no interior do carro, sujeitando os demais ocupantes a riscos.

A diferença entre os Estados Unidos e o Brasil é que lá existem menos puxa-sacos e lambe-botas que aqui. E, quando um presidente se comporta como um moleque, há quem, mesmo entre os que o circundam, com coragem para dizer em voz alta. Foi o que fez o médico James Phillips, do hospital Walter Reed. “Eles podem ficar doentes. Eles podem morrer. Por teatro político”, atestou.

Lá como aqui este teatro que se prolonga já cobrou muito em termos de corrosão dos valores e dos marcos civilizatórios. Que um presidente decida se comportar como um bufão num debate e a comissão nacional encarregada de organizar tais eventos não deixe claro que isso não irá se repetir sob hipótese alguma é sinal de que Trump venceu mais um round e conseguiu enfraquecer mais uma estrutura que sustenta a democracia norte-americana – que, mesmo com todas as suas lacunas e falhas, é uma das mais estáveis do mundo.

Por tudo isso é vital a importância da eleição dos Estados Unidos, para o mundo e para o Brasil. A era de governantes fanfarrões calhou de coincidir com o maior flagelo humano, social e econômico que as atuais gerações – sejam as mais novas, sejam as que estão vendo antecipado seu tempo útil – irão conviver no curso de suas vidas.

A presença de figuras como Trump e Bolsonaro em postos de comando agrava exponencialmente os efeitos desse calvário. Mais de 200 mil mortos lá, quase 150 mil aqui e tanto um quanto outro seguem distraídos e distraindo os seus governados com factoides midiáticos. Lá a busca vale-tudo por uma reeleição cada vez mais difícil. Aqui a costura de terreno político com vista ao mesmo objetivo e para proteger a família presidencial, cada vez mais enredada numa trama que explicita o uso de dinheiro público de gabinetes para enriquecimento.

Não se sabe o mal que Trump ainda pode fazer, desde propagar o vírus para os que o cercam até colocar em dúvida a transição do poder caso se efetive a derrota que as pesquisas apontam. Mas é fácil analisar a importância que sua eventual saída de cena em novembro representará para começar a trazer de volta a racionalidade perdida à política brasileira. Que assim seja.

Vera Magalhães, aautora deste artigo, é editora do BR Político e apresentadora do programa Roda Viva, da TV Cultura. Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, edição de 07.10.2020.