terça-feira, 6 de outubro de 2020

Trump deixa hospital com tratamento que OMS liga a casos graves de covid

Especialistas desconfiam da rapidez com que o presidente foi liberado e questionam coquetel de remédios usados apenas em pacientes com complicações 

Donald Trump deixou ontem o hospital militar Walter Reed, em Washington, após três noites internado com covid-19. Sean Conley, médico do presidente, disse que ele “cumpriu os critérios para alta” e passará os próximos dias confinado em um quarto na Casa Branca. Especialistas, porém, questionam se a alta foi dada cedo demais e se perguntam por que Trump recebeu três tratamentos diferentes, normalmente reservados a pacientes graves, se o caso dele é leve, como alegam seus médicos. 

Segundo assessores, Trump estava ansioso para voltar para a Casa Branca. Ele vinha pressionando para ter alta desde domingo, para mostrar ao país que ele está ativo – e não acamado. “Não tema a covid. Não a deixe tomar conta de sua vida”, escreveu o presidente no Twitter, pouco antes de deixar o hospital. “Estou melhor que há 20 anos.” 

O tom do presidente é ainda desafiador e mostra que ele deve usar o fato politicamente, argumentando que superou a doença. No domingo, ele disse que, por ter contraído o vírus, ele “entendia” a covid melhor que os médicos. “Aprendi muito sobre a covid. Aprendi indo realmente à escola. Esta é a escola real. Não é como ler livros”, disse o presidente, em vídeo de 73 segundos, no fim de semana. “Agora eu entendo.”

O presidente tem pressa. Nos últimos dias, enquanto estava confinado, o democrata Joe Biden cruzou o país realizando comícios. Em muitos Estados, milhões de eleitores já votam pelo correio. A 28 dias da eleição, Trump está atrás nas pesquisas e corre contra o tempo.

Uma oportunidade é o segundo debate, marcado para dia 15, em Miami. Ontem, seu comitê de campanha disse que ele estará no encontro, embora o protocolo do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) determine quarentena de dez dias após o surgimento dos primeiros sintomas, dependendo da evolução do paciente. Biden disse ontem que aceita debater, desde que os médicos digam que é seguro.

Embora tenha recebido alta e retornado à Casa Branca, o estado de saúde de Trump ainda é um mistério. Mesmo Conley, seu médico, admitiu que ele “não está totalmente fora de perigo”. No entanto, muitos especialistas questionam não só aspectos do tratamento dado ao presidente como também a própria credibilidade de Conley. 

Ontem, por exemplo, o médico disse a jornalistas que o presidente estava há mais de 72 horas sem febre e sem antitérmicos, mas admitiu que Trump vem tomando o corticoide dexametasona, que alivia inflamações – e pode também mascarar a febre. Pelo Twitter, a infectologista Céline Gounder criticou o médico. “O doutor Conley disse que o presidente não toma medicamentos para reduzir a febre há 72 horas. Ele está errado”, escreveu. “A dexametasona reduz a febre.”

Outros especialistas alertaram para o risco de dar alta para um paciente com covid no momento mais delicado da doença. “Para alguém tão doente que precisou tomar remdesivir e dexametasona, não consigo imaginar como um paciente estaria bem para sair no terceiro dia, mesmo com a capacidade médica da Casa Branca”, disse Robert Wachter, diretor do Departamento de Medicina da Universidade da Califórnia, em San Francisco. 

Os médicos dizem que pacientes com covid são especialmente vulneráveis pelo período de uma semana a dez dias após os primeiros sintomas. Alguns infectados que parecem saudáveis pioram repentinamente em razão do vírus ou de uma resposta imunológica que pode causar danos a vários órgãos, incluindo o coração. “A pessoa pode estar bem, mas a coisa pode ficar complicada muito rapidamente”, afirmou Amesh Adalja, da Universidade Johns Hopkins.

Reforçando as preocupações está o fato de Trump ser o primeiro paciente – ou um dos primeiros – a receber uma combinação incomum de três tratamentos fortes, com suplementos e até um medicamento não regulamentado. “Ele passou por tratamentos diferentes”, disse Rochelle Walensky, infectologista do Hospital Massachusetts General. Segundo ela, quando a dexametasona foi testada, no início do ano, nenhum dos pacientes recebeu junto o coquetel experimental de anticorpos dado a Trump.

Pesquisas

Do ponto de vista dos números, a campanha segue inalterada. Os republicanos tinham esperança que os eleitores ficassem ao lado de um presidente doente. No entanto, as primeiras pesquisas mostraram que não houve o chamado “salto de compaixão”, que eles esperavam.

Duas pesquisas realizadas após o diagnóstico de Trump mostram Biden à frente. Na sondagem Ipsos-Reuters, o democrata lidera com 10 pontos porcentuais de vantagem (1 a mais do que na semana passada). Os números da pesquisa YouGov-Yahoo colocam Biden 8 pontos à frente – 3 a mais que na semana passada. / NYT, WP e REUTERS 

Redação, O Estado de S.Paulo, 06 de outubro de 2020 | 05h00

Biden amplia vantagem sobre Trump após debate e diagnóstico de covid do adversário, aponta pesquisa

Levantamento da rede americana CNN aponta que candidato democrata aumentou vantagem em relação ao atual presidente a menos de um mês da eleição

O candidato democrata à presidência dos Estados Unidos, Joe Biden, ampliou a vantagem sobre o atual presidente, o republicano Donald Trump, na corrida eleitoral americana. De acordo com pesquisa encomendada pela rede americana CNN, o ex-vice de Barack Obama lidera com vantagem de 57% a 41% das intenções de voto.

De acordo com a pesquisa - realizada após o anúncio de contaminação de Trump por covid-19 -, Biden lidera a preferência dos eleitores em diversos quesitos considerados importantes para a decisão do voto na eleição deste ano. Entre os prováveis eleitores (aqueles que ainda não se registraram para votar), por exemplo, o democrata é visto como mais confiável quando os assuntos são a pandemia do novo coronavírus (59% a 38%), saúde (59% a 39%), desigualdade racial (62% a 36%), nomeações para o Supremo Tribunal Federal (57% a 41%) e crime e segurança (55% a 43%).

Embora esta seja a primeira pesquisa nacional da CNN a relatar resultados entre prováveis eleitores, uma comparação dos resultados entre eleitores registrados de agora com uma pesquisa realizada a cerca de um mês atrás revela que Biden ganhou apoio substancial entre vários blocos eleitorais importantes.

Biden ampliou sua vantagem sobre Trump entre as mulheres, de 57% a 37% em setembro para 66% a 32% agora. Essa mudança inclui ganhos substanciais para Biden entre mulheres brancas com diploma universitário e mulheres negras em geral. Entre a população negra, a vantagem de Biden aumentou de 59% a 31% em setembro para 69% a 27%. O ex-vice-presidente também obteve ganhos entre os eleitores mais jovens, moderados e independentes no mês passado.

O aumento do apoio a Biden, porém, não veio acompanhado de quedas substanciais de Trump. A base de apoio do presidente continua firme, aumentando em determinados grupos. Entre homens brancos sem diploma universitário, por exemplo, o apoio de Trump aumentou de 61% em setembro para 67% agora.

Mesmo com a liderança nacional de Biden, a disputa pela Casa Branca será definida em alguns poucos Estados pêndulo. O ex-vice-presidente lidera em vários desses campos de batalha, mas por margens mais estreitas do que sua vantagem nacional.

A pesquisa da CNN foi conduzida pelo SSRS de 1º a 4 de outubro entre uma amostra nacional aleatória de 1.205 adultos alcançada em telefones fixos ou celulares por um entrevistador ao vivo, incluindo 1.001 prováveis eleitores. Os resultados da amostra completa têm uma margem de erro de amostragem de 3,3 pontos percentuais para mais ou para menos. Entre os prováveis eleitores, margem de erro é de 3,6 pontos para mais ou para menos.

Publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 06.10.2020.

Amigos do peito

As relações pessoais do presidente com integrantes do Legislativo e do Judiciário são até presumíveis. O problema é quando sugerem outros propósitos.

 Não constitui problema um presidente da República ter amigos do peito em outros Poderes. As relações de caráter pessoal do chefe do Executivo com alguns integrantes do Legislativo e do Judiciário são até presumíveis, dada a convivência cotidiana em Brasília, que em alguns casos pode chegar a décadas. O problema é quando essa relação sugere que tem outros propósitos além do cultivo de uma amizade sincera.

A democracia presume a separação de Poderes. Esse princípio, pilar do Estado de Direito, é antídoto contra a tentação autoritária de quem pretende concentrar poderes que a Constituição não lhe faculta. É evidente que o Executivo, o Legislativo e o Judiciário não são estanques. Sua relação se dá por meio dos chamados freios e contrapesos, fórmula que propicia fiscalização mútua e impõe obstáculos a qualquer tentativa de usurpação de poder. 

Para que funcione conforme o espírito constitucional, de forma harmônica, essa relação deve se dar exclusivamente no ambiente institucional, a salvo de interesses particulares dos ocupantes temporários dos cargos nos Três Poderes. Há mais de 200 anos é assim, ao menos nas democracias maduras.

Diante dessas considerações, vem causando justificável estupor o modo como o presidente Jair Bolsonaro pretende construir as relações de sua Presidência com o Supremo Tribunal Federal (STF). Sua primeira nomeação para aquela Corte, a do desembargador Kassio Nunes Marques, serve a um único propósito, conforme o próprio presidente admite sem corar: ter no topo do Judiciário um ministro que esteja “100% alinhado comigo”, como Bolsonaro escreveu recentemente numa rede social. Esse “alinhamento”, segundo o presidente, significa ser contra o aborto e a favor do armamento da população, além de “defender a família e as pautas econômicas”. 

É prerrogativa do presidente escolher quem bem entender para o Supremo, desde que atendidas as exigências constitucionais de notório saber jurídico e reputação ilibada. Também é natural que o indicado represente valores caros ao eleitorado do presidente, legitimados pelas urnas. O que não é natural nem saudável numa democracia é quando o presidente pretende que seu indicado ao Supremo atue como advogado de seus interesses pessoais, o que se depreende de sua insistência em classificar o desembargador Kassio Nunes Marques como um amigo: “Kassio Nunes já tomou muita tubaína comigo. (...) A questão de amizade é importante, né? O convívio da gente”.

Mas as amizades estratégicas de Bolsonaro, com ou sem tubaína, não se limitam a seu indicado ao Supremo. O abraço afetuoso entre o presidente e o ministro do STF Dias Toffoli, numa “confraternização” na casa do magistrado no fim de semana, é a constrangedora imagem da ausência de limites institucionais na república bolsonariana.

Nessa república, o presidente age como se não fosse ocupante temporário do cargo e, assim, não precisasse observar a liturgia que garante a impessoalidade do exercício da Presidência. Procura estabelecer com integrantes do Judiciário laços de compadrio que embutem uma óbvia expectativa de cumplicidade. Faz campanha pessoal por seu indicado ao Supremo como se fosse um cabo eleitoral. Só falta distribuir santinhos.

Tudo muito conveniente para quem é o chefe de um clã enroscado com a Justiça e é, ele mesmo, investigado. Também é muito conveniente para quem tem como base parlamentar um grupo de partidos e políticos que, em razão dos muitos processos que enfrentam por corrupção, estão igualmente interessados em cultivar relações de camaradagem no Judiciário.

“Preciso governar”, disse o presidente Bolsonaro a um apoiador que o criticou pelo abraço em Toffoli, como se seu governo dependesse de relações de caráter pessoal, e não institucional. E depende mesmo: sabendo que “governar”, para Bolsonaro, é manter-se no poder a qualquer custo, proteger seus filhos na Justiça e de quebra ajudar os companheiros do Centrão que lhe dão apoio crucial neste momento, é natural que o presidente ainda venha a precisar de muitos amigos do peito.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, edição de 06.10.2020.

Trump deixa hospital e volta a minimizar covid-19

"Não tenham medo da covid", diz presidente sobre doença que matou 209 mil americanos. Dúvidas sobre o estado de saúde do mandatário persistem após equipe médica se recusar a fornecer detalhes sobre diagnóstico.


Mesmo doente, Trump tirou a máscara assim que chegou à Casa Branca

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, deixou na noite desta segunda-feira (05/10) o hospital militar Walter Reed, onde permaneceu três dias internado para tratar uma infecção por coronavírus. Após deixar o centro de saúde, por volta de 18h30 no horário local, ele seguiu de helicóptero para a Casa Branca. Ao chegar à residência oficial, mesmo doente, ele tirou a máscara e posou para fotógrafos.

A saída do hospital ocorreu em meio a dúvidas sobre o estado de saúde do mandatário de 74 anos. Nos últimos dias, a


USA Trump verlässt Krankenhaus (Jonathan Ernst/Reuters)

Trump ao deixar o hospital. Ele seguiu de helicóptero para a Casa Branca

Casa Branca deu informações contraditórias e confusas, e a equipe médica do presidente continua a se recusar a informar detalhes sobre a linha do tempo da infecção. A saída também ocorre apesar de os médicos admitirem que o mandatário "não estar totalmente fora de perigo".

O anúncio de que Trump iria deixar o hospital foi feito pelo próprio presidente por meio do Twitter. "Estou me sentindo muito bem!", escreveu. "Nós desenvolvemos, no governo Trump, ótimos remédios e conhecimento. Sinto-me melhor do que há 20 anos."

Ele ainda voltou a minimizar a gravidade da covid-19, afirmando aos americanos que "não tenham medo da covid" e não deixem que ela "domine suas vidas". Os EUA são de longe o país mais afetado pela pandemia no mundo, tendo registrado mais de 209 mil mortes associadas à doença e 7,4 milhões de casos.

Após o anúncio de Trump, o médico da Casa Branca, Sean Conley, e membros da equipe do Hospital Walter Reed concederam uma entrevista para abordar a alta do presidente. "Embora o presidente possa ainda não estar totalmente fora de perigo, a equipe e eu concordamos que todas as suas avaliações, e o mais importante, o seu estado clínico permitem o seu regresso a casa, onde ele estará rodeado de cuidados médicos de nível mundial 24 horas por dia, sete dias por semana", declarou Conley,


O grupo de médicos disse ainda que o presidente não apresentou nenhuma reclamação em relação a seu sistema respiratório e que ele não sentia febre há 72 horas.


USA I Trump I Coronavirus I PK (abaca/picture-alliance)

Médicos não responderam várias perguntas sobre estado de saúde Trump

Depois que foi diagnosticado com o vírus, Trump foi submetido a três tipos de tratamento, incluindo o antiviral remdesivir, dexametasona e um coquetel conhecido como REGN-COV2, da empresa Regeneron, que consiste numa combinação de cópias sintéticas de anticorpos humanos.

No entanto, ainda persistem dúvidas em relação ao estado de saúde de Trump. Ao falar com a imprensa, Conley se negou a responder quando foi a última vez que o presidente testou negativo para covid-19, uma informação relevante para identificar quando ele foi infectado. "Não quero olhar para o passado", disse o médico. Conley ainda se recusou a responder se Trump está com pneumonia ou dar detalhes sobre o tratamento oferecido ao presidente. 

Nos últimos meses, a Casa Branca propagandeou que Trump vinha se submetendo a testes diários de covid-19, mas a recusa da equipe médica em apontar quando ocorreu o último diagnóstico negativo levantou dúvidas se isso era verdade ou se a presença do vírus foi mesmo detectada na madrugada de sexta-feira, como a Casa Branca comunicou.

A postura do médico gerou críticas entre jornalistas americanos que cobrem a Casa Branca, que apontaram que Conley vem se comportando mais como um assessor político do que como um médico. A confirmação de que o presidente também tomou dexametasona, um esteroide recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) apenas para casos graves de covid-19, também alimentou dúvidas sobre seu real estado de saúde. 

Nos últimos dias, a Casa Branca também deu informações que entraram em choque com as avaliações de Conley, que pintou um quadro otimista imediatamente após o presidente anunciar que estava doente. No sábado, porém, Mark Meadows, chefe de gabinete de Trump, contradisse os médicos e disse que o presidente estava passando por um período "muito preocupante". 


Walter Reed Militärhospital | Donald Trump Videobotschaft Covid-19 (The White House via Reuters)

Trump em vídeo divulgado no sábado. Jornal aponta suspeita de que gravação foi editada para esconder tosse

No domingo, os médicos reconheceram que o presidente precisou receber oxigênio suplementar e que ele estava sendo tratado com um medicamento usado em casos graves. No dia anterior, os médicos haviam se recusado a responder se Trump havia precisado de oxigênio suplementar.

Nesta segunda-feira, o jornal Washington Post ainda apontou a suspeita de que um vídeo divulgado por Trump no sábado, em que o presidente aparecia no hospital tentando passar uma sensação de normalidade, possa ter sido editado para esconder que o mandatário estava tossindo.

O período de internação de Trump no Walter Reed também foi marcado por controvérsias provocadas pelo próprio presidente. No domingo, depois da admissão dos médicos de que seu quadro inicial havia sido mais preocupante do que o inicialmente divulgado, Trump, que disputa a reeleição e está atrás nas pesquisas, resolveu fazer uma demonstração de força. Ele deixou temporariamente o hospital e fez um passeio de carro para acenar a apoiadores. A ação gerou críticas nos meios político e médico dos EUA, despertando acusações de que o presidente estava expondo agentes da sua segurança desnecessariamente ao vírus.

Nesta segunda, o republicano publicou quase duas dezenas de novas mensagens no Twitter, para propagandear as principais bandeiras do seu projeto político e estimular seus apoiadores a votar. "SALVEM A NOSSA SEGUNDA EMENDA: VOTEM!", dizia uma das mensagens, em referência ao artigo da constituição americana que garante o acesso a armas de fogo. "FORÇA ESPACIAL. VOTEM!", era o tom de outra mensagem, mencionando um dos projetos do governo Trump.

O número de funcionários da Casa Branca com covid-19 continua a aumentar. Nesta segunda-feira, a secretária de imprensa da Casa Branca, Kayleigh McEnany, comunicou pelo Twitter também ter testado positivo. Com isso, chegou a 12 o número de pessoas próximas a Trump que foram diagnosticadas com a doença nos últimos dias.

Boa parte delas estiveram num evento na Casa Branca em 26 de setembro, data que está sendo examinada como um possível "evento de superpropagação". Naquele dia foi oferecida uma recepção para a juíza indicada por Trump para a Suprema Corte, Amy Coney Barrett.

Publicado originalmente por Deutsche Welle, em 06.10.2020.

Sarney: Trump quer destruir a democracia

Costumo dizer que não estamos vivendo em um mundo em transformação, mas num mundo transformado. Com o Covid-19 especula-se que vamos viver um novo normal. Ninguém pode dizer o que isto será. Mas antes que ele venha estou estupefato diante de algo que jamais pensei que pudesse ver.

A minha admiração pelos Estados Unidos vem do orgulho de que tenha saído do Continente Americano o país que transformou o mundo, tornando-se a maior nação da terra, líder e exemplo para todos os povos. Deles surgiu o sistema político que Fukuyama afirmou ter levado ao fim da História, com o domínio da democracia liberal e da economia de mercado.

Formou-se um sistema de governo capaz de garantir a ideia de que todos são iguais perante a lei e ninguém pode ser discriminado em razão de cor, raça ou religião. Cristalizaram-se as ideias de liberdade, direitos humanos, dignidade humana, governo do povo e para o povo. E esses direitos foram consagrados de tal maneira que passaram a ser um ideal universal.

Alexis de Tocqueville escreveu em 1835 um livro clássico, no qual ele profetizou que os Estados Unidos iriam “por algum desígnio secreto um dia controlar em suas mãos os destinos de metade do mundo”. E sempre afirmei que foi a grande sorte do mundo. Calcule se saísse da velha Europa ou de qualquer parte outro país que tivesse como bandeira ideal usar a força, a supremacia de raça — como aconteceu na Alemanha de Hitler — ou pregasse a religião como base das nações. Estamos presenciando um conflito de civilização no Oriente Médio. Mas foram os Estados Unidos que pregaram a liberdade, como forma de vida que venceu.

Pois não é que agora, com grande espanto, em pleno século XXI, ouvimos sair da boca de um Presidente dos Estados Unidos que ele pode não aceitar o resultado de uma eleição e não entregar o poder, como se seu país fosse qualquer republiqueta dos séculos passados, quando a alternância do poder pudesse ainda ir contra a decisão soberana do povo.

Isso eu considero a maior e mais impensável coisa a que pudéssemos assistir. A solidez do maior e mais forte país democrático do mundo comportar uma afirmação dessa natureza. Jefferson, Madison, Washington devem ter tremido em seus túmulos e abominar pela eternidade um Trump, negar-lhe a companhia dos homens que fizeram a Constituição de Filadélfia, o maior documento produzido pelo homem para regular suas relações e o viver pacífico em sociedade.

Trump, com seu comportamento e sua frase, acaba por fazer uma síntese do que buscou ao longo de seu governo. Foi caminhando para o isolamento americano, para a divisão da sociedade, para uma nova guerra fria — e até quente. Seu objetivo é inaceitável: destruir a democracia!

O autor deste artigo, José Sarney, foi Presidente do Centro Liceista, órgão representativo dos alunos do Liceu Maranhense. E Presidente da República Federativa do Brasil. Publicado originalmente em O Estado do Maranhão, edição de 04.10.2020.

Da Coluna do Sarney


Porandubas Políticas

Por Gaudêncio Torquato 

Abro a coluna com o contador de boas histórias e escritor Leonardo Mota.

I.N.R.I. - Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum

Conta Leonardo Mota que o mestre Henrique era reputado marceneiro nos sertões de Sergipe. Sua especialidade estava nas camas francesas à Luís Quinze. Quando o freguês achava que o leito era baixo, recebia a explicação de que a cama era francesa, mas era à Luís Quatorze; se se queixava da excessiva altura, ficava sabendo que aquilo era cama francesa à Luís Dezesseis. O mestre Henrique pôs toda a sua ciência no Cruzeiro do patamar da igreja de Aquidabã. No topo do sagrado madeiro, o vigário da freguesia fizera o mestre Henrique colocar uma tabuinha com as letras I.N.R.I., iniciais de Jesus Nazareno Rei dos Judeus, a irônica inscrição latina de que a ruindade de Pilatos se lembrara na ignominiosa sentença de morte do filho de Deus. Decorrido algum tempo, um sertanejo sergipano, intrigado com a significação daquelas quatro letras, perguntou a um seu conhecido:

- Que é que quererá dizer aquele negócio de INRI, que tem escrito em riba do Cruzeiro?

- Você não sabe não? Ali falta é o Q-U-E. Esse QUE não cabeu na tabuinha: aquilo é a assinatura de quem fez, que foi o mestre INRIque...

Conviver com a covid-19

A observação é irretocável: vamos ter de aprender a conviver com esse vírus da pandemia por muito tempo. E mesmo ainda sob registro de muitas mortes e grande contaminação, parcelas das populações em alguns Estados fazem questão de desobedecer regras impostas para evitar o vírus. Mas não tem jeito, o perigo está ali, pertinho, à espreita. Se pegar, pegou, se morrer, morreu. Esse parece ser o sentimento geral de milhões de brasileiros. Só falta mesmo assistirmos a uma pelada de futebol entre contaminados e não contaminados, como ocorreu na Espanha, semana passada.

O Brasil

Costumo, vez ou outra, lembrar essa historinha: há quatro tipos de sociedade no mundo. A primeira é a inglesa, a mais civilizada, onde tudo é permitido, salvo o que é proibido. A segunda é a alemã, sob rígidos controles, onde tudo é proibido, salvo o que é permitido. A terceira é a totalitária, pertinente às ditaduras, na qual tudo é proibido, mesmo o que é permitido. E a quarta é a brasileira, onde tudo é permitido, mesmo o que é proibido.

Manaus, a esperança já era

Dizia-se que, ante a redução de casos em Manaus, a capital havia atingido a imunidade de rebanho. Mas o surto voltou com virulência. E assim a esperança se esvai sob a efervescência das pessoas que querem esbanjar coragem e saúde. Saúde? Que os anjos anunciem, com o toque de suas trombetas, que a besta-fera ainda corre o país inteiro.

Quem diria, hein?

Quem seria capaz de prever que um ex-juiz de Direito, na contramão de candidatos e partidos tradicionais, eleito governador pela vontade cívica dos cariocas, iria ser pego com a boca na botija, hein? Wilson Witzel, que começou o governo com a indicação de que snipers iriam dar um jeito na bandidagem do Rio, está a poucos passos do impeachment. A política tem sempre a visita do Senhor Imponderável.

Bolsonaro dá as cartas

Começou sob grande descrédito. Virou motivo de piada. Assumiu a identidade de líder da extrema-direita. Tem apoio dos conservadores, evangélicos e das periferias urbanas. Começa a expressar uma linguagem que bate no coração de parcelas das classes médias. Adentra no Nordeste, e já tomou o lugar de Lula em muitos rincões da região. Prepara um programa - Renda Cidadã - para substituir o Bolsa Família. Mesmo que o dinheiro venha do Fundeb ou de precatórios. Os beneficiários do Renda Cidadã não querem saber de onde vem a grana. Aliviou a acidez da expressão. Começa a acariciar a esfera política. Enfrenta as denúncias que batem em seus filhos. Mas não diminui a popularidade. É bom já ir se acostumando com o modo Bolsonaro de ser.

Nietzsche

"Afetos iguais diferem no homem e na mulher, quanto ao ritmo. Esse é o motivo pelo qual homem e mulher não cessam de se desentender" - Nietsche, em Para Além do Bem e do Mal.

Eleições de novembro

É bem provável que o presidente saia do processo eleitoral sem uma grande frente de prefeitos e vereadores. Saiu do PSL e não criou o Aliança pelo Brasil. Vai ocorrer imensa dispersão na base do edifício político. Quem será capaz de juntar o gigantesco rebanho?

E em 2022?

Seria possível uma aglutinação em torno de um partido em 2022? Ou haveria fusão entre eles? Para onde irão PSDB, MDB, PSL, PSD, PP, PR, por exemplo? O PT juntar-se-ia ao PSOL e ao PC do B? Respostas no ar. Uma é certa: quem é dono da flauta dá o tom. Refiro-me à orquestra da economia. Se estiver saudável em 2022, o maestro será o dono da flauta. Se estiver doente, o candidato (um, não uns) do centro regerá a orquestra.

Kassio leva a melhor

Fizeram suas apostas? Pois perderam. O desembargador piauiense, Kassio Nunes, de 48 anos, católico, é o indicado para a vaga do decano Celso de Mello. Um golpe de mestre de Bolsonaro. Produziu uma reversão de expectativas, fez um agrado ao Nordeste, satisfaz o desejo dos ministros do STF, de ver indicado um nome não tão identificado com o presidente e o ministro da Justiça, André Mendonça, e o ministro da Secretaria-Geral, Jorge Oliveira, ganham a condição de sair da polêmica e ter seus nomes questionados. P.S. Vale lembrar que não houve até o momento confirmação da escolha. O Imponderável nos ronda.

Salles, o mais criticado

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, com a desarrumação que acaba de fazer no Conama (Conselho do Meio Ambiente), destroça os instrumentos legais que preservavam restingas e manguezais. Ganha a unanimidade de vaias dos ambientalistas. Mas o ministro mais criticado do governo é uma ilha de frieza e insensibilidade. Vai poder andar na rua, depois que deixar o Ministério?

Camada impermeável

É oportuno fazer uma observação sobre o peso das críticas. Começo com o lembrete que, de tanto ver cadáveres, pessoas que trabalham nos Institutos de Medicina Legal e mesmo coveiros não mais se assustam em ver corpos mortos. Queimadas e incêndios, que destroem o meio ambiente, são vistos todos os dias pelas telas de TV. Já não causam tanto impacto. As críticas ao governo e a alguns de seus ministros também começam a entrar por um ouvido e a sair por outro. É como se os ouvintes e telespectadores tivessem desenvolvido uma camada impermeável à dor, ao sofrimento, às notícias ruins.

Baleia entre choques

Baleia Rossi, deputado e presidente do MDB, pode ser o tertius na disputa pela presidência da Câmara Federal. A briga de foice entre Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) e Arthur Lira (PP-AL) pode sobrar espaço para Baleia, que tem se demonstrado discreto e intenso mobilizador de bastidores.

Meter a mão no bolso

Historinha

Certa ocasião, Adolfo López Mateos recebe um aviso inquietante.

- Não são poucos, senhor, aqueles que aproveitam sua generosidade para fincar os dentes no orçamento, sussurrou um de seus colaboradores.

Longe de perder a calma, o presidente do México entre 1958 e 1964 medita um instante, mexe no bolso e puxa sua carteira de Delicados. Acende um, pensativo.

- Cada mexicano tem metido a mão no bolso de outro mexicano, e ai daquele que rompe a cadeia, conclui depois da primeira tragada.

Lição: é um princípio universal que cada um, mexicano ou não, mete a mão no bolso do outro, e pobre daquele que rompe a cadeia.

Moral ou imoral?

À propósito, Juan Domingo Perón dizia:

- A única víscera sensível que os egoístas têm é o bolso.

Economia, como arrumar?

Estamos vivendo o momento mais crítico da equipe econômica. O governo precisa arrumar dinheiro para bancar as obras da infraestrutura, capitaneadas pelo ministro Tarcísio de Freitas. Precisa recompor o colchão social, com o novo programa Renda Cidadã. Precisa atender demandas de parlamentares. E de onde tirar recursos? Paulo Guedes quebra a cabeça para saber em que fontes (novas) o governo vai beber água, ou seja, arrumar recursos. Tirar do Fundeb? Dos precatórios? Não seria pedalada? E a grita? Bolar o imposto das transações digitais, que, dizem, será um imposto em cascata? Quem será o milagreiro?

O vice, quem será?

Tirar o Hamilton Mourão da chapa majoritária Federal de 2022 não será tarefa fácil. Primeiro, porque Mourão tem dado conta do recado. Segundo, porque outro entrando em seu lugar seria um ato de condenação e censura ao desempenho do vice. Terceiro, porque deverá haver reação da cadeia militar. Quarto, porque um nome da esfera política não será bem recebido pelas hostes bolsonaristas. E daí por diante. Tem muita água a correr por baixo da ponte. Mas essa água deságua no Forte de Copacabana. Ou no Forte Apache.

Trump x Biden

Um dos piores debates entre candidatos à presidência dos EUA. Foi o que se viu do primeiro confronto direto entre Donald Trump e Joe Biden. O presidente norte-americano, atrás nas pesquisas, tentou deixar nervoso o candidato democrata, interferindo quase todo tempo em sua fala. Foi chamado de "palhaço" e de "racista" por Biden. CNN, por larga margem, deu vitória a Biden, depois de apresentar uma pesquisa. E a Fox News, por meio de um comentarista, diz que Trump dominou o estúdio. Vi o debate. Na minha visão, apesar de titubear em algumas questões, Joe Biden deu um puxão no raivoso Trump. Biden foi melhor.

Propaganda negativa

A revolução francesa de 1789 pode ser considerada o marco da propaganda agressiva nos termos em que hoje se apresenta. Ali, os jacobinos, insuflados por Robespierre, produziram um manual de combate político, recheado de injúrias, calúnias, gracejos e pilhérias que acendiam os instintos mais primitivos das multidões. Na atualidade, é a Nação norte-americana que detém a referência maior da propaganda agressiva, mola da campanha negativa. Este formato, cognominado de mudslinging, apresenta efeitos positivos e negativos. No contexto dos dois grandes partidos que se revezam no poder - democrata e republicano -, diferenças entre perfis e programas são mais nítidas e a polarização sustentada por campanhas combativas ajuda a sociedade a salvaguardar os valores que a guiam, como o amor à verdade, a defesa dos direitos individuais e sociais, a liberdade de expressão, entre outros. Nem sempre a estratégia de bater no adversário gera eficácia. Às vezes, torna-se bumerangue, voltando-se contra o atacante.

Ideia de jerico

Taxar livros, essa mal-ajambrada maneira de fazer crescer a arrecadação, é uma ideia de jerico. Livro é aprendizagem, é cultura, é avanço civilizatório, é a libertação da ignorância. De quem foi mesmo essa ideia? Não é possível que tenha sido de Paulo Guedes. Mais provável que tenha sido de um assessor aloprado.

Gaudêncio Torquato, Professor Titular na USP, é cientista político e consultor de marketing político.

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segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Vendo Trump como realmente ele é

Assistir ao debate sem som torna evidente a imagem de um presidente torpe e raivoso diante de um opositor de coração gentil

Ao desligar o som da TV, o debate presidencial mostrava as maiores forças de Joe Biden e a gigantesca fraqueza de Donald Trump.

Se você quiser entender quem ganhou o debate presidencial desta semana, tenha em mente um momento de nosso passado político que chamo de “Epifania de Stahl”. Durante a campanha presidencial de 1984, a repórter da CBS Lesley Stahl elaborou uma crítica dura e implacável das políticas de Ronald Reagan para o país, concentrando-se particularmente na disjunção entre o que Reagan dizia e o que fazia. A reportagem mostrava imagens de Reagan homenageando atletas paraolímpicos e inaugurando uma nova casa de repouso, mas a narração de Stahl revelava que, na verdade, seu governo tentara cortar fundos para os deficientes físicos e os programas habitacionais subsidiados.

A crítica foi ao ar como um segmento de quase seis minutos no noticiário noturno, e Stahl tinha certeza de que seus contatos na Casa Branca ficariam furiosos. Mas, em vez disso, ela recebeu um telefonema de Richard Darman, um dos assessores de Reagan, dizendo: “Que história ótima! Nós adoramos”. Stahl ficou perplexa e Darman explicou: “Ninguém ouviu o que você disse. Vocês da tevelândia ainda não entenderam, não é? Quando as imagens são poderosas e emotivas, elas se sobrepõem ao som, muitas vezes até o abafam completamente. O que quero dizer, Lesley, é que ninguém ouviu você”.

Quando comecei a assistir ao debate da terça-feira passada, pensei que o presidente Donald Trump estava ganhando. Ele estava no comando, dando golpes enérgicos, controlando a pauta e colocando o candidato democrata Joe Biden na defensiva. Biden quase nunca conseguia expor seus pontos de vista de forma clara e sem interrupções. Mas, aí, pensei na “Epifania de Stahl” e revi algumas partes do debate com o som desligado. Foi totalmente revelador. Livres das palavras, as imagens revelaram um contraste gritante. De um lado, você via um senhor de idade, um tanto combalido, cambaleando algumas vezes, mas mostrando um grande sorriso e um coração gentil. Do outro lado, você via um valentão da quarta série, um homem torpe, raivoso e emocionalmente descontrolado. Ele ficou de cara fechada e tentou abrir sorrisos amarelos durante todos os 90 minutos de debate.

Sempre achei que a “Epifania de Stahl” era um sinal da fraqueza da televisão. Mas esse debate me fez reconhecer sua força. Cortando todo o ruído, a tela abriu para o povo americano uma janela com vista para as personalidades dos dois candidatos. Lançou luz sobre as maiores forças de Biden e a gigantesca fraqueza de Trump. Esqueça a política por um momento. Trump é um homem de mau caráter, que abusou de pessoas, instituições e normas, sempre para tirar alguma vantagem pessoal. Foi isso que as imagens transmitiram.

As novas revelações sobre suas declarações de imposto de renda só confirmam o que sempre soubemos sobre ele. Como Drew Harwell reportou em 2016, na única vez que Trump esteve à frente de uma empresa de capital aberto, trapaceou os acionistas para benefício próprio. Ele transferiu para a empresa quase US$ 2 bilhões de dívidas pessoais e remunerou a si mesmo com dezenas de milhões de dólares, ao mesmo tempo em que levava a empresa à falência e limpava os bolsos dos acionistas. Talvez tudo tenha sido legal, mas pouquíssimos CEOS de empresas se comportam assim. Em uma sociedade complexa e civilizada, não podemos tratar como ilegais todas as ações antiéticas ou desagradáveis concebíveis. Acima e além das leis, deve haver normas.

A democracia não consegue funcionar sem alguma adesão às normas. Você não pode realizar debates presidenciais quando um dos lados simplesmente se recusa a cumprir as regras, constantemente interrompendo e importunando seu oponente e contestando tudo o que ele diz. Trump também está fazendo uma coisa nova e muito mais prejudicial. Ele mente de uma maneira que nenhum candidato jamais mentiu, totalmente livre de qualquer compromisso com os fatos. Os republicanos reconheceram que revogar o Obamacare sem nenhum programa para substituí-lo será politicamente impopular, mas não conseguem chegar a um acordo sobre uma alternativa. Para Trump, isso não representa nenhum problema: ele simplesmente afirma que tem uma alternativa.

Trump quebrou tantas normas que é difícil catalogá-las. Longe de aceitar que o outro lado também é legítimo, ele pediu para que sua adversária na disputa de 2016 fosse presa. Ele rejeitou se afastar de seus interesses comerciais e, já na cadeira de presidente, permitiu que governos estrangeiros cobrissem a ele e a sua família com presentes na forma de marcas registradas e receitas de hotéis. Os assessores da Casa Branca promoveram abertamente os interesses comerciais de Trump e de sua família. Ele usou seu poder para recompensar e ameaçar empresas – e, o que é mais preocupante, para intimidar a imprensa livre. Sob a direção da Casa Branca, várias agências federais vêm trabalhando para atacar o Twitter depois que a plataforma decidiu sinalizar alguns de seus tuítes mais flagrantemente falsos. O uso dos extraordinários poderes do estado contra oponentes políticos é um dos sinais mais perturbadores de autoritarismo.

Ao que tudo indica, Trump está bem atrás nesta eleição. Estamos assistindo a um homem sob pressão. E, se suas perspectivas continuarem sombrias, ele ficará mais desesperado, mais antiético e mais cruel. Vamos torcer para que a democracia americana consiga resistir ao ataque

Esqueça a política por um momento. Trump é um homem de mau caráter.

O autor deste artigo, Fareed Zakaria é colunista e analista politico da rede de TV americana CNN. Publicado em O Estado de São Paulo, edição de 05.10.2020.

sábado, 3 de outubro de 2020

Organizar a oposição

      Não há que entregar o jogo, asfaltando o caminho do autoritarismo digital

Recente pesquisa de opinião pública atribuiu a Bolsonaro 40% de aprovação, isso na mesma semana em que o Brasil passou pela vergonha de discurso irresponsável do presidente da República na ONU, no qual disse ter a Justiça atribuído aos governadores a condução das medidas no campo da saúde pública, além de culpar “índios e caboclos” pelos incêndios na Amazônia. O resultado da pesquisa revela a consagração do embuste como expediente para enganar uma população que admira mais o histrionismo do governante do que a realidade visível.

Membros da imprensa e da sociedade civil se manifestaram contra o desplante do discurso. Mas grande parte de nosso povo não quer ler nem ouvir manifestações revestidas de racionalidade e não alimenta interesse em se informar e minimamente avaliar os fatos. 

Em maio, quando 30% consideravam o governo Bolsonaro bom ou ótimo, foram lançados vários manifestos tradutores do sentimento e pensamento dos demais 70%, destacando-se o documento editado pelo movimento Estamos Juntos. Do manifesto realçam dois parágrafos. “Somos a maioria e exigimos que nossos representantes e lideranças políticas exerçam com afinco e dignidade seu papel diante da devastadora crise sanitária, política e econômica que atravessa o país”; e “Temos ideias e opiniões diferentes, mas comungamos os mesmos princípios éticos e democráticos. Queremos combater o ódio e a apatia com afeto, informação, união e esperança”.

Outro manifesto, de cerca de 600 juristas, intitulado Basta, destacava que o País estava em crise política “quando já imerso no abismo de uma pandemia que encontra no Brasil seu ambiente mais favorável, mercê de uma ação genocida do presidente da República”. E mais adiante sinalizava: “Todos nós acreditamos que é preciso dar um BASTA… Não nos omitiremos. E temos a certeza de que os Poderes da República não se ausentarão”.

Hoje estamos quase virando minoria e, em vez de se ter dignidade do presidente nesta devastadora crise sanitária, o que há é continuada falta de solidariedade e de coragem de sua parte. Em 18 de setembro ele fez chacota das medidas de isolamento, ao dizer a agricultores: “Vocês não pararam durante a pandemia. Vocês não entraram na conversinha mole de ‘fica em casa’, ‘a economia a gente vê depois’. Isso é para os fracos”.

Exigia-se, nos manifestos, que houvesse afeto, informação, presença dos Poderes da República. O que se vê, todavia, da parte de Bolsonaro é apenas desprezo pela dor dos doentes e de seus familiares, humilhação dos receosos de contrair o vírus causador de tantas mortes, ofendendo todos os que se cuidam ao chamá-los de fracos. Elogia, assim, o ideal infantil do Superman, que munido de substância milagrosa, a cloroquina, uma anticriptonita, enfrenta o vírus de peito aberto. 

Clamava-se por ação dos Poderes da República, mas há um alarmante silêncio dos principais atores políticos, a começar pelos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, que em sua ambição de reeleição, manifestamente inconstitucional, se fazem de surdos.

Nos manifestos requeria-se informação veraz, mas o que se tem é desinformação. Na ONU o presidente disse: “Por decisão judicial, todas as medidas de isolamento e restrições de liberdade foram delegadas a cada um dos 27 governadores das unidades da Federação. Ao presidente, coube o envio de recursos e meios a todo o País”.

Mentira. O voto do ministro Fachin, relator da Adin 6.341, bem esclarece ser “competência comum dos entes federativos a adoção ou manutenção de medidas restritivas durante a pandemia da covid-19. Assim, a princípio, tanto a União quanto os Estados e os municípios podem (e devem) adotar imposição de distanciamento social”. O ministro Gilmar Mendes, no seu voto, elucida: “Todas as esferas federativas que compõem o SUS (União, Estados, municípios e Distrito Federal) possuem deveres e responsabilidades com a saúde pública, e é de todas elas que devem ser cobradas atuações administrativas eficazes, preventivas e de assistência”. 

A verdade deixou de ser um valor, haja vista Bolsonaro blasonar-se, com sucesso, da concessão do auxílio emergencial, quando propusera só R$ 200 e foi o Congresso a impor o triplo. No lugar de sinceridade, união e afeto, vive-se a criação artificial de inimigos e a exploração do medo, geradora de crenças salvacionistas e polarizadoras. 

O que fazer diante desse quadro? Como diz Milagros Pérez Oliva no El País (27/9), não se tem antídoto certo para afrontar a teoria da conspiração do neopopulismo.

Contudo não há que entregar o jogo, asfaltando o caminho do autoritarismo digital. Cumpre fazer o debate, mesmo que com isso se venha a ser acusado de fazer parte da conspiração.

Cabem, então, novos manifestos dos grupos de maio passado e ocupar as redes sociais, denunciando com firmeza o atual descalabro político, econômico e moral. É hora de organizar a oposição sem partido, visando a preservar a racionalidade e a democracia.

Miguel Reale Júnior, o autor deste artigo, é Advogado, Professor Titular Sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras. Foi Ministro d Justiça (Governo FHC). Publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 03.10.2020.

O governo é isso aí

De um governo se espera que governe. Do atual governo, contudo, a conclusão, perto da metade do mandato de Jair Bolsonaro, é que seria esperar demais que ele se dedicasse à faina

De um governo se espera que governe, ou seja, que dê uma direção à administração, com planos bem definidos e disposição de negociar com o Congresso sua implementação. Do atual governo, contudo, a conclusão, perto da metade do mandato de Jair Bolsonaro, é que seria esperar demais que ele se dedicasse à faina.

É tão evidente que o governo Bolsonaro não consegue articular nenhuma política concreta, apenas lampejos e arroubos desconexos, que mesmo a crítica a esse incrível estado de coisas perdeu o sentido. Pois a crítica presume, da parte do crítico, a expectativa de que o criticado venha a se emendar e passe a fazer o que deve ser feito. E isso não vai acontecer, pois o governo Bolsonaro é essencialmente isso aí.

Há ilhas de excelência em meio a esse mar de profunda mediocridade, claro. Quando o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, diz num encontro com investidores que os juros vão imediatamente subir se o teto de gastos for desrespeitado, colocando o Brasil no caminho da insolvência fiscal, indica que há gente de muito bom senso em posições estratégicas no governo. Vai na mesma linha o secretário do Tesouro, Bruno Funchal, que afirmou recentemente que “aumentar despesa gera um resultado socialmente ruim, destrói empregos”, enfatizando o que deveria ser óbvio.

Outros setores que têm atuado razoavelmente bem no governo a despeito da mixórdia bolsonarista são a Agricultura e a Infraestrutura. No primeiro caso, a ministra Tereza Cristina vem dando duro para reparar os danos causados à imagem do País e ao agronegócio brasileiro em razão da atitude beligerante de Bolsonaro e da ala lunática do governo em relação ao meio ambiente. No segundo, o ministro Tarcísio de Freitas se dispõe a trabalhar com o que tem e elabora projetos de acordo com a realidade, algo raríssimo na administração bolsonarista.

Infelizmente, contudo, esses bons exemplos não são suficientes para desfazer a sensação generalizada de que o governo é irremediavelmente desorientado, resultado da inaptidão de Bolsonaro para o exercício da Presidência. Não é outra a razão do vexame do tal “Renda Cidadã”, ou “Renda Brasil”, ou seja lá que nome venha a ter o programa social que Bolsonaro quer usar no palanque. O incrível fiasco envolveu o primeiríssimo time do governo, do “superministro” Paulo Guedes ao líder na Câmara, deputado Ricardo Barros, passando pelo presidente da República em pessoa. Se já era difícil acreditar no que dizem os próceres do governo, agora é praticamente impossível.

O único projeto de Bolsonaro que vai de vento em popa é o eleitoral. O presidente vem aos poucos abandonando os bolsonaristas fanáticos, que só têm a lealdade cega a lhe oferecer, e decidiu entregar o governo de vez ao Centrão, em troca da permanência no poder e da viabilização de sua reeleição.

Se é isso, como parece ser, então é ocioso cobrar do governo que, enfim, governe. Por essa razão, mais do que nunca, a sociedade brasileira, especialmente sua elite – intelectual, empresarial e integrante dos Poderes Judiciário e Legislativo, além de governadores e prefeitos País afora –, deve se mobilizar para impedir que o País se renda à apatia.

Cada um deve se empenhar para fazer o que estiver a seu alcance, e que não dependa do desgoverno federal, para dar aos brasileiros em geral a sensação de que há um rumo, e que esse rumo não é o do precipício. Há sinais promissores: empresas têm demonstrado genuína preocupação com o meio ambiente e com a abertura de oportunidades para quem é historicamente marginalizado; o Congresso vem exibindo inegável perfil reformista, encaminhando discussões cruciais para o futuro do País; e muitos governadores e prefeitos têm trabalhado duro para enfrentar a pandemia, recorrendo à ciência em vez da mistificação bolsonarista.

Portanto, há saída. Se é esse o presidente que temos, o País deve então buscar soluções bem longe do Palácio do Planalto – o que talvez seja uma oportunidade de ouro para desenvolver no Brasil o sentido cívico, de participação ativa na vida política e de envolvimento efetivo com o futuro de todos.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S.Paulo. Publicado em 03.10.2020

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Novas regras para as ações coletivas

Objetivo é acabar com indústria da litigiosidade e aumentar a segurança jurídica das empresas

A pedido do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), um grupo de juristas acaba de concluir um projeto de lei que modifica as exigências para o ingresso de ações coletivas nos tribunais. Com 35 artigos, o texto vai para a Câmara dos Deputados. O que levou o CNJ a tomar essa iniciativa é a tentativa de reduzir o custo das litigâncias coletivas abusivas que penalizam as empresas e impedem a redução do chamado “custo país”. Segundo a última edição da pesquisa Doing Business, do Banco Mundial, o Brasil está na 124.ª posição de um ranking de 190 países sobre a facilidade para fazer negócios. Os custos da Justiça são um dos indicadores da pesquisa.

O projeto envolve uma questão delicada da legislação processual civil e talvez demore para ser votado. Durante décadas, a lei tratou basicamente das ações que tratam de interesses individuais homogêneos. Mas, com o avanço da urbanização e a industrialização do País, na segunda metade do século 20, surgiram ONGs, movimentos sociais e as mais variadas entidades representativas. Por isso, na medida em que os conflitos coletivos foram aumentando, o Legislativo criou a figura jurídica dos direitos coletivos e dos direitos difusos e, por consequência, das ações coletivas. Com o tempo, as prerrogativas das associações representativas, bem como as do Ministério Público e das Defensorias Públicas, foram alargadas. 

Essas inovações jurídicas foram saudadas como um avanço da cidadania, permitindo o questionamento de planos de saúde, de tarifas dos serviços bancários, do atendimento das lojas de varejo aos consumidores e dos serviços das concessionárias de serviços públicos.

Paralelamente, porém, surgiram associações sem representatividade, criadas com o objetivo de converter as ações coletivas em forma de ganhar dinheiro, propiciando assim o surgimento de uma indústria da litigiosidade. Além disso, muitos procuradores de Justiça passaram a propor ações polêmicas, para ganhar visibilidade na mídia e, desse modo, abrir caminho para uma carreira política. Apesar de saírem derrotados inúmeras vezes, eles aparecem na mídia e não arcam com qualquer custo financeiro.

O projeto enviado pelo CNJ à Câmara quer pôr fim a esses abusos. Tem crescido, nos últimos anos, o número de empresas que, mesmo obtendo sentenças favoráveis, são obrigadas a arcar com os custos judiciais, pois as associações representativas de fachada que as processam não têm dinheiro para arcar com taxas e honorários de sucumbência. Essas associações muitas vezes são criadas por pequenos escritórios de advocacia que ajuízam ações coletivas sobre um mesmo tema em várias regiões do País, obrigando as empresas a se defender em várias comarcas, a um alto custo. 

Como a fronteira entre as ações coletivas sérias e as abusivas é difusa, o desafio do CNJ foi encontrar uma solução que evitasse abusos sem restringir um instrumento processual para a defesa do interesse de coletividades. No caso do Ministério Público, uma das inovações propostas é que ele seja obrigado a arcar, com recursos de seu orçamento, com os valores pecuniários das ações coletivas que vierem a ser consideradas “manifestamente improcedentes” pelos tribunais. No caso das associações, a proposta é que sejam submetidas a um teste de representatividade. Uma terceira medida é exigir de quem for beneficiado por um ganho numa ação coletiva que abra mão de ação individual. 

São medidas sensatas. Como afirma a exposição de motivos do projeto, “abusos precisam ser coibidos de lado a lado, para que as ações coletivas possam gerar os benefícios desejados para a sociedade. A proteção dos indivíduos não se pode dar em detrimento da prosperidade econômica da sociedade, pois desta prosperidade depende o bem-estar dos próprios indivíduos”. Pela prudência demonstrada neste caso, com o objetivo de tornar o ambiente de negócios seguro e saudável, a iniciativa do CNJ vem em boa hora. 

Editorial / Notas & Informações, O Estado de São Paulo. Publicado originalmente em 02.10.2020

O capitão parece sem rumo

O presidente Jair Bolsonaro não sabe para onde quer ir ou está perdido

Basta alinhar um fato atrás do outro para concluir que o capitão Bolsonaro ou não sabe o que quer ou está perdido.

Para o dia 25 de agosto, o ministro da Economia, Paulo Guedes, havia agendado o que chamou de “big bang”, aquilo que seria um ato de recriação da economia. Haveria o anúncio do Renda Brasil, um avanço sobre o Bolsa Família, que distribuiria mais renda. O ministro Paulo Guedes avisou que teria como principal fonte orçamentária a extinção de programas sociais pouco eficazes: o abono salarial, que concede um salário mínimo por ano para trabalhadores que ganham até dois salários mínimos por mês; o seguro-defeso, distribuído aos pescadores artesanais nos períodos de desova dos peixes, em que teriam de permanecer inativos; e o próprio Bolsa Família, cujos recursos seriam incorporados ao novo programa.

O presidente Bolsonaro fulminou a proposta. Disse que “não tiraria dos pobres para dar aos paupérrimos”. O “big bang” não passou de um estourinho de pipoca dentro da panela. 

Do “big bang” fariam parte duas outras providências: a desindexação total da economia (inexistência de reajustes), que alcançaria salários, aposentadorias e pensões; e o anúncio de um programa estimulador de empregos, a desoneração dos encargos sociais, a que estão obrigados os empregadores. A arrecadação que deixaria de ser obtida com a redução dos encargos sociais seria coberta com um novo imposto, que incidiria sobre transações financeiras, em quase nada diferente da extinta CPMF. 

Às críticas a essa nova CPMF o ministro Paulo Guedes disse que seria “a troca de um imposto cruel por um feioso”. Se esse imposto cria distorções, argumenta ele, mais e maiores distorções são produzidas pelos encargos sociais, que impedem a criação de postos de trabalho, estimulam a informalidade e semeiam concorrência desleal pelas empresas que pagam salários “por fora” e não recolhem os encargos. 

Há três dias, o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), avisou que não havia acordo político para a nova CPMF e que, por isso, o projeto não teria condições de tramitação no Congresso. A proposta vai outra vez para a gaveta e, com isso, fica para depois a desoneração pretendida.

Dia 15 de setembro, o secretário especial do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues, avisou que a cobertura para o programa Renda Brasil viria do congelamento de aposentadorias e pensões, por dois anos. Não era nada do que não tivesse sido combinado anteriormente, seja porque Paulo Guedes já havia adiantado essa desindexação por ocasião do anúncio do “big bang”, seja porque Waldery não é o tipo da autoridade que fala por conta própria. 

Mas o presidente Bolsonaro desconsiderou avaliações técnicas anteriores, desautorizou pelas redes sociais o secretário Waldery e advertiu que levantaria o cartão vermelho para autoridades do governo que defendessem propostas desse tipo. Waldery recolheu-se à toca, à espera do que viesse, e não se falou mais em desindexação de salários e aposentadorias.

Na última segunda-feira, o mesmo líder do governo, Ricardo Barros, fez um comunicado na presença do presidente Bolsonaro e do ministro Paulo Guedes – portanto anunciava algo previamente negociado –, de que o Renda Brasil seria rebatizado de Renda Cidadã e que seria financiado com recursos do adiamento do pagamento das dívidas precatórias e com parcela do Fundeb, cujo nome e sobrenome é Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais de Educação.

Depois do caos produzido no mercado com a perspectiva da caracterização de um calote e o uso para outra finalidade de recursos liberados do teto dos gastos, nesta quarta-feira o ministro Paulo Guedes, aparentemente por ordem superior, desdisse o que defendia antes. Abateu a tiros a ideia do adiamento do pagamento dos precatórios, que já havia sido determinado pela Justiça, para lastrear o Renda Cidadã. Outra vez, o anúncio oficial já não valeu para nada.

O presidente Bolsonaro vem repetindo o princípio que aprendeu no Exército de que “pior do que uma decisão ruim é a indecisão”. Mas tem coisa pior do que isso. São decisões tomadas e, repetidamente abandonadas. Ele mesmo autoriza o piloto a mudar a rota do barco e, logo depois, volta atrás e ainda recrimina o piloto por ter obedecido a sua ordem. No Estado Maior deve haver um nome para isso.

Importa menos a direção dos ventos. Basta ajustar as velas do barco. Mas Bolsonaro não sabe para onde quer ir e os marinheiros não sabem como ajustar as velas.

O autor deste artigo, Celso Ming, é comentarista de economia do jornal O Estado de São Paulo. Publicado originalmente na edição de 02.10.2020.

Franquia’ da Lava Jato migra para Estados e municípios

Em 17 de março de 2014, o Brasil assistiu – sem imaginar o que estava por vir – à primeira fase da Operação Lavajato. Durante os 6 anos seguintes, as investigações e delações premiadas apontaram para a prática de corrupção de altos membros da política nacional e executivos da empresa estatal petrolífera Petrobras, além de empresários de grandes empresas brasileiras. Sem receio de errar, se trata da maior investigação contra a corrupção e lavagem de dinheiro da história do país.

Por outro lado, é fato que esse fenômeno não está mais restrito à cidade de Curitiba. E, nos últimos meses, temos assistido a uma nova onda de operações policiais contra a corrupção e a lavagem de dinheiro, mas agora os alvos são governadores, deputados estaduais, prefeitos e vereadores em estados e municípios do país.

Nesse novo cenário, umas das mais recentes operações encabeçadas pelo Ministério Público Estadual, batizada de Easy Legis, foi realizada em 5 de setembro deste ano na cidade de Mogi das Cruzes e culminou na prisão de vereadores, funcionários públicos, além de um empresário. Por outro lado, é fato que essa operação desestabilizou a política local, criou cenários, antecipou julgamentos e estabeleceu algumas certezas de culpabilidade às vésperas de eleições municipais.

Nessa esteira, é muito cedo para afirmar que a migração da franquia jurídica da “lavajato” para estados e municípios traz apenas benefícios para a sociedade a longo prazo.

Não se trata de aceitar e conviver com a corrupção, lavagem de dinheiro ou organizações criminosas em desfavor da administração pública, mas sim entender quais são as limitações constitucionais de investigações penais e de processo criminal, a fim de evitar que o livre convencimento de voto seja de alguma forma vilipendiado.

Especificamente nesse caso da cidade de Mogi das Cruzes, o Superior Tribunal de Justiça, em sede de Habeas Corpus, já reconheceu a ilegalidade da prisão e a necessidade de aplicação de medidas acautelatórias diversas do encarceramento, com o objetivo de evitar a punição antecipada ou como forma de resposta aos anseios da sociedade.

Não obstante, a recente denúncia ofertada pelo Ministério Público, da qual os acusados vão agora se defender, repete integralmente os fatos e fundamentos que embasaram a ordem judicial para as buscas e apreensões e as prisões preventivas que foi afastada pelo Superior Tribunal de Justiça.

E mais: com uma simples leitura da denúncia, é possível identificar uma deficiência na descrição das condutas supostamente criminosas, além da ausência de algumas tecnicidades jurídicas que podem levar ao fracasso de toda a operação.

Por exemplo, o crime de lavagem de dinheiro, uma figura outrora coadjuvante, tornou-se um instrumento hábil e eficiente para trazer a juízo aqueles que apresentam movimentações financeiras suspeitas. Entretanto, transferências bancárias duvidosas não são motivo suficiente para uma condenação por ablução de capitais. Há a necessidade da prática de um ilícito penal antecedente.

Nesse sentido, faz-se mister sobrelevar que, por exemplo, um ato de corrupção, por si só, não pode ser definido como crime antecedente, certo e imutável, para a tipificação do crime de lavagem de dinheiro, pois há necessidade da comprovação de que os recursos utilizados como contrapartida ao ato corrupto tenham procedência criminosa. E de forma inversa, diversas transações bancárias suspeitas não são o suficiente para a caracterização do crime de corrupção.

Por vezes, inclusive, as instituições que trabalham em prol da acusação e também membros do Poder Judiciário têm ignorado a premissa da exigência de um crime antecedente para a caracterização do delito de branqueamento de capitais e buscado a subsunção do fato à norma penal incriminatória com base apenas na destinação dos recursos, o que subverte a ordem dos fatores erigida pelo legislador e que, nesse caso, altera o produto.

Feitas essas rápidas observações e partindo-se do cenário político-jurídico que se descortina para uma explosão de procedimentos criminais para apurar a corrupção e a lavagem de dinheiro em estados e municípios, fica a seguinte questão: a corrupção e lavagem de dinheiro devem ser combatidas a qualquer custo ou sua a aplicação deverá sempre ocorrer dentro dos limites legais?

O autor deste artigo, Armando S. Mesquita Neto, advogado especializado em Direito Penal Econômico e sócio do Leite, Tosto e Barros Advogados. Publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 02.10.2020.

Barafunda

Quando o ministro da Economia afirma que o cerne de uma proposta como o tal “Renda Cidadã” simplesmente não vale, tem-se a dimensão da barafunda

Que confiança pode inspirar um governo que anuncia algo num dia para desmentir categoricamente no dia seguinte? Que palavra vale, a de ontem ou a de hoje? Como investidores devem avaliar um país que tem no presidente da República, ninguém menos, a principal fonte de instabilidade?

Quando o ministro da Economia, Paulo Guedes, informa que o cerne de uma proposta apresentada com estardalhaço pelo próprio presidente Jair Bolsonaro dois dias antes simplesmente não vale, como foi o caso do tal “Renda Cidadã” – programa de transferência de renda tido e havido como a maior realização de um governo que até agora fez quase nada –, tem-se a dimensão da barafunda.

O governo não se entende nem a respeito do nome do programa. Já foi “Renda Brasil”, tornado assunto proibido por Bolsonaro depois que a equipe econômica sugeriu que a única maneira de financiá-lo seria congelando aposentadorias. Poucos dias depois, surgiu o tal “Renda Cidadã”, bancado pelo calote em precatórios e por dinheiro tomado indevidamente do Fundeb, o fundo de financiamento da educação básica.

Do Fundeb, Paulo Guedes nada falou, mas nem precisava: é a segunda tentativa do governo de tirar verba da educação para, como disse o ministro da Economia em outra ocasião, “injetar dinheiro na veia dos pobres”. A primeira tentativa, como se sabe, foi barrada no Congresso, por ser um drible tosco no teto de gastos, ao qual o Fundeb não está submetido.

Já a respeito da limitação dos recursos destinados ao pagamento de precatórios para financiar o “Renda Cidadã”, o ministro Guedes foi didático: disse que o novo programa não pode ter a arquitetura de um “puxadinho” e que o dinheiro destinado aos precatórios “não é uma fonte saudável, limpa, permanente e previsível”. E explicou que o “Renda Cidadã”, por ser uma despesa permanente, “tem que ser financiado com uma receita permanente”.

O fato embaraçoso é que o próprio ministro Guedes estava presente no solene anúncio do novo programa e ouviu tudo sem se manifestar. Segundo gente do governo, a ideia de usar os precatórios foi de Guedes. O senador Márcio Bittar (MDB-AC), relator do Orçamento de 2021, declarou, em meio ao espanto do mercado com as ideias francamente irresponsáveis que nortearam o plano, que uma proposta como essa jamais teria sido apresentada sem a chancela de Bolsonaro e Guedes.

A esta altura, pouco importa o que disse o ministro Guedes ou o que argumentou o senador Bittar. O responsável é o presidente Jair Bolsonaro. É ele quem deseja criar um programa de transferência de renda sem promover cortes de gastos, especialmente com o funcionalismo. Tampouco sinaliza apoio às reformas e convicção em relação às privatizações. Enquanto isso, quer, em suas palavras, “ficar de bem com todo mundo”, o que ninguém consegue.

O governo é exclusivo reflexo das decisões de Bolsonaro – ou, talvez seja melhor dizer, da falta delas. Se algo funciona, reivindica para si a autoria mesmo quando a iniciativa é de terceiros, como no caso da reforma da Previdência ou do auxílio emergencial; quando não funciona, o que acontece na maior parte do tempo, o governo terceiriza a responsabilidade, como no caso da devastação econômica da pandemia ou de sua desesperadora incapacidade de tocar a agenda liberal prometida na campanha. 

O ministro Paulo Guedes, macaqueando seu chefe, chegou ao cúmulo de acusar o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, de mancomunar-se com a esquerda para barrar as privatizações que ele e sua equipe, por incompetência e por falta de apoio de Bolsonaro, não conseguem realizar. Rodrigo Maia devolveu a agressão, dizendo que Guedes está “desequilibrado” e “deveria assistir ao filme A Queda” – que mostra Hitler nos seus últimos dias, encerrado num bunker com seus auxiliares e completamente alheio à realidade.

E a realidade é que o Brasil, justamente no momento em que mergulha em profunda crise e precisa de direção firme e racional, está à mercê de um governo que reflete fielmente a incapacidade de seu chefe de administrar até mesmo seu bunker.

Editorial / Notas & Informações. O Estado de São Paulo, edição de 02.10.2020

Confirmação de que Trump está com covid gera reviravolta em corrida eleitoral

Contaminação do presidente a 32 dias da eleição irá mudar de imediato o ritmo da campanha, com consequências políticas ainda imprevisíveis

 O anúncio feito pelo presidente Donald Trump  por volta da 1h da manhã desta sexta-feira, 2, que está com covid-19 gera uma reviravolta na corrida eleitoral. A contaminação do presidente pelo coronavírus a 32 dias da eleição irá mudar de imediato o ritmo da campanha, com consequências políticas ainda imprevisíveis para o resultado de uma eleição já tumultuada

Trump, que vinha fazendo comícios eleitorais e eventos de arrecadação de fundos para a campanha em ambientes fechados, iniciou a quarentena na madrugada de hoje. Se ele tiver um ciclo normal de recuperação da doença, de 14 dias após a infecção, pode ficar quase metade do tempo restante até as eleições afastado do contato com o público. Os comícios são considerados um dos maiores ativos políticos do presidente, conhecido por ser um "showman" com alta capacidade de energizar seus eleitores em discursos. Trump viajaria para a Flórida nesta sexta-feira e para o Wisconsin no final de semana, dois Estados-pêndulo cruciais para as eleições.



Donald Trump e primeira-dama Melania testam positivo para o novo coronavírus

A infecção por covid-19 também coloca em xeque a realização dos próximos dois debates com o democrata Joe Biden. O próximo encontro entre os dois candidatos está agendado para o dia 15 de outubro. A imprensa americana já discute também o que acontecerá em um cenário mais grave, caso Trump sofra com complicações da doença e esteja com a saúde ameaçada no dia da eleição, em 3 de novembro.

Um rastreamento de contágio entre o alto escalão do governo americano que esteve com Trump nos últimos dias deve acontecer hoje. Ainda não há informação da campanha do democrata Joe Biden, que esteve com Trump na terça-feira durante debate eleitoral, se ele será testado.

Com os comícios dos últimos meses, Trump tentou não apenas retomar o contato com o eleitorado, mas também mostrar que os Estados Unidos estavam voltando à vida normal apesar do coronavírus. Parte da mensagem política do presidente consiste em mostrar que ele colocou os EUA no caminho da recuperação econômica, de saúde e que conseguirá anunciar uma vacina em tempo recorde.

Tonight, @FLOTUS and I tested positive for COVID-19. We will begin our quarantine and recovery process immediately. We will get through this TOGETHER! — Donald J. Trump (@realDonaldTrump) October 2, 2020

Considerado o favorito para ganhar a disputa eleitoral no início do ano, o republicano perdeu apoio desde o início da pandemia. A maioria da população reprova a resposta dada pelo presidente à crise de saúde. Os EUA têm o maior número de casos (7,2 milhões) e de mortos (207 mil) por covid-19 no mundo.

Trump negou a gravidade do coronavírus no início do ano. Quando a situação já havia saído do controle em Nova York, na metade de março, ele endossou a necessidade de adotar medidas de isolamento, mas apenas por um breve período. Em abril, diante da explosão no número de desempregados no país e já em queda nas pesquisas de opinião, o presidente passou a pressionar governadores para reabrir a economia antes do considerado seguro por especialistas.

Desde março, o republicano entrou sucessivas vezes em choque com o corpo de infectologistas que orienta a Casa Branca, abraçou teorias de cura não comprovada, resistiu a defender o uso de máscaras e quebrou regras de distanciamento. No debate com Biden na última terça-feira, ele ironizou o fato de o democrata fazer eventos de campanha para pouquíssimas pessoas. "Ele faz círculos com três pessoas", disse Trump. "Se você conseguisse ter as multidões, você faria o mesmo (comícios)", completou o republicano, que também zombou do fato de Biden sempre aparecer de máscara em público -- algo que ele já disse que "não é muito presidencial".

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iden respondeu com a acusação de que Trump tem sido "totalmente irresponsável na forma como ele lida com distanciamento social, o uso de máscaras -- basicamente encorajando as pessoas a não usarem". "Ele é um idiota nisso", disse o democrata. Considerado uma das principais formas de prevenção, o uso de máscara foi politizado nos EUA. Apoiadores do presidente resistem a usar máscaras em muitas partes do país.

A confirmação de que Trump está com covid-19 não apenas tira o republicano da campanha, como também joga para o centro do debate público e eleitoral o tema que mais o prejudica: a pandemia. Nos últimos meses, Trump tentou mudar o foco da discussão eleitoral e centrar sua mensagem em narrativas que têm apelo entre o eleitorado republicano.

Em junho, Trump adotou o discurso de defesa da lei e da ordem diante dos protestos antirracismo e contra violência policial que se espalharam pelo país após o assassinato de George Floyd em Mineápolis. Em agosto, com novos protestos em Kenosha, no Wisconsin, Trump renovou o mesmo discurso e apelou para o medo, ao dizer que os subúrbios seriam destruídos por protestantes e anarquistas se os democratas fossem eleitos. Nas últimas duas semanas, o foco do republicano foi a indicação de uma nova juíza para a Suprema Corte, um assunto caro à base conservadora. Em todas as ocasiões, Joe Biden tentava puxar o debate novamente para questões sobre acesso à saúde em meio e a pandemia, uma fragilidade na campanha de Trump.

O impacto eleitoral ainda é imprevisível. O jornalista e âncora da CNN americana Anderson Cooper citou o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, na cobertura dessa madrugada ao dizer que Trump pode reforçar seu discurso de que a doença não é grave caso se recupere brevemente. Bolsonaro, Trump e o primeiro-ministro britânico Boris Johnson são considerados por analistas internacionais como símbolos de líderes que minimizaram a gravidade do vírus. Os três foram infectados.

A confirmação de que Trump está com coronavírus também coloca em questão o esquema de segurança da Casa Branca. O presidente alegava que pode circular e interagir sem máscara durante eventos porque todas as pessoas que o cercam são testadas diariamente. Com frequência, os eventos realizados pela presidência ou pela campanha ignoraram protocolos de segurança defendidos por médicos e autoridades do país. 

Beatriz Bulla, correspondente de O Estado de S.Paulo em Washington, DC. Publicado originamente em 02.10.2020, às 07h02.

O presidente Donald Trump anunciou na madrugada desta sexta-feira, 2, que ele e a primeira-dama Melania testaram positivo para o novo coronavírus. Em uma publicação no Twitter, Trump disse que vai começar a quarentena "imediatamente". Os dois fizeram exames para a covid-19 após a conselheira próxima do presidente, Hope Hicks, ser diagnosticada com o novo coronavírus. 

O médico do presidente, Sean Conley, disse em comunicado que Trump vai continuar a cumprir seus deveres “sem interrupções”. Segundo ele, o presidente e a primeira-dama passam bem e “planejam continuar em casa durante a recuperação”.

Mesmo após serem notificados dos sintomas de Hope Hicks, Trump e sua comitiva viajaram até Nova Jersey para participar de um evento de arrecadação de fundos para a campanha. O presidente entrou em contato direto com dezenas de outras pessoas, incluindo apoiadores.

Aos 74 anos, Donald Trump é um paciente de alto risco para o novo coronavírus por conta da idade e por ser considerado "acima do peso". Ele demonstrou ter boa saúde durante os últimos anos na Casa Branca, mas não costuma se exercitar com frequência ou seguir uma dieta saudável.  

Trump cancelou os planos de participar de um evento de campanha na Flórida nesta sexta-feira, mas manteve na agenda uma ligação telefônica ao meio-dia sobre “apoio a idosos vulneráveis durante a covid-19”.  

Presidente anunciou diagnóstico positivo na madrugada desta sexta-feira e disse que irá começar a quarentena "imediatamente" Foto: Carlos Barria/REUTERS

Hicks viajou com o presidente americano a bordo do Air Force One diversas vezes nesta semana e esteve com ele no debate, em Cleveland. Com a quarentena de Trump, a agenda de campanha muda radicalmente. 

Trump, que sempre minimizou os efeitos da covid, vinha fazendo comícios com grande público. O presidente disse a Sean Hannity, âncora da Fox News, durante uma entrevista ao vivo na noite desta quinta-feira, que ele e a primeira-dama, Melania Trump, foram testados depois de saberem sobre Hicks e estavam aguardando os resultados. 

Hicks, de 31 anos, foi porta-voz da campanha de Trump em 2016 e, em seguida, se tornou diretora de comunicações da Casa Branca. Em 2018, deixou o governo para ocupar um cargo na Fox News. Ela voltou à Casa Branca em fevereiro no papel de conselheira do presidente. Nos últimos dias, Hicks viajou com Trump para Pensilvânia, Ohio e Minnesota.

A conselheira foi fotografada sem máscara no comício da Pensilvânia, batendo palmas ao som de YMCA, da banda Village People, com outros assessores de Trump. Ela também não usava proteção em Cleveland (Ohio), onde foi realizado o primeiro debate da campanha presidencial na terça-feira.  

Trump, que não usa máscara nem promove distanciamento social, costuma ser visto próximo a sua comitiva, que também não segue as recomendações de especialistas em saúde pública. 

“O presidente leva muito a sério sua saúde e segurança, assim como a de todos que trabalham em seu apoio e do povo americano”, disse Judd Deere, porta-voz da Casa Branca. “O Departamento de Operações da Casa Branca colabora para garantir que todos os planos e procedimentos incorporem as orientações e as melhores práticas do CDC para limitar ao máximo possível a exposição à covid-19.”

Biden

Histórias falsas sobre a saúde do democrata Joe Biden se espalharam nas redes sociais dois dias após o primeiro debate presidencial. Parte das informações falsas vem de anúncios enganosos no Facebook promovidos pela campanha de Trump, além de vídeos virais no TikTok. Uma história falsa sobre Biden usando um fone de ouvido durante o debate com Trump surgiu na terça-feira e continuou a ganhar força no Facebook após o evento. 

O anúncio promovido pela campanha de Trump, que incentiva as pessoas a “verificarem os ouvidos de Joe” e perguntava “por que Sleepy Joe (Joe Dorminhoco, em tradução livre) não se compromete com a inspeção do fone de ouvido?”, foi visto entre 200 mil a 250 mil vezes.  

Uma parcela grande das visualizações foi de pessoas com mais de 55 anos no Texas e na Flórida. O anúncio, cujo conteúdo se originou de um tuíte de um repórter do New York Post, que citou uma única fonte anônima, diz que Biden usou o fone para que alguém lhe passasse informações.  

Na plataforma TikTok, quatro vídeos que diziam que Biden estava usando um fio para “trapacear” durante o debate acumularam mais de meio milhão de visualizações, segundo uma pesquisa do grupo de vigilância de mídia Media Matters.  

Um deles mostra uma foto de Biden com a mão dentro do terno, enquanto outro sobrepõe uma flecha sobre a gravata de Biden, mas nenhum dos vídeos mostra qualquer evidência visual do uso de dispositivo eletrônico. 

Antes do debate, os executivos do Twitter e do Facebook revisaram hashtags, tendências e outras contas que podem violar as regras das empresas usando uma combinação de software e revisão humana.

Fonte: The Washington Post e The New York Time. Publicado no Brasil por O Estado de São Paulo, edição de 02.10.2020.

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

O Brasil tem 144.103 mortes por coronavírus confirmadas até as 13h desta quinta-feira (1°),

É o que revela levantamento do consórcio de veículos de imprensa a partir de dados das secretarias estaduais de Saúde.

Desde o balanço das 20h de quarta-feira (30), 7 estados atualizaram seus dados: BA, CE, GO, MG, MS, PE e RR.

Veja os números consolidados:


144.103 mortes confirmadas

4.820.116 casos confirmados

Às 8h, o consórcio publicou a primeira atualização do dia com 143.910 mortes e 4.813.989 casos.

Na quarta-feira, às 20h, o balanço indicou: 143.886 mortes confirmadas, 876 em 24 horas. Com isso, a média móvel de mortes no Brasil nos últimos 7 dias foi de 689, uma variação de -12% em relação aos dados registrados em 14 dias.

É o 8º dia seguido que o país apresenta média móvel abaixo de 700. Uma sequência tão grande com o número abaixo dessa marca só ocorreu antes em meados de maio.

Desde o dia 14 de setembro a tendência na média móvel de mortes segue em estabilidade, ou seja, o número não apresentou alta nem queda representativa em comparação com os 14 dias anteriores. Antes disso, o país passou por um período de uma semana seguida com tendência de queda no registro de mortes por Covid.

Em casos confirmados, eram 4.813.586 brasileiros já tiveram ou têm o novo coronavírus desde o começo da pandemia, com 33.269 desses confirmados no último dia. A média móvel de novos casos foi de 26.544 por dia, uma variação de -15% em relação aos casos registrados em 14 dias.

Brasil, 30 de setembro

No total, 2 estados apresentam alta de mortes: Roraima e Rio Grande do Norte.

Vale ressaltar que há estados em que o baixo número médio de óbitos pode levar a grandes variações percentuais. Em Roraima, por exemplo, a média saltou de 0 para 5 no intervalo de 14 dias, o que levou a uma variação de 700%; e, no Rio Grande do Norte, a média passou de 4 para 5, que representou variação de 16% em relação a duas semanas antes. A média é, em geral, em números decimais e arredondada para facilitar a apresentação dos dados.

Estados

Subindo (2 estados): RR e RN

Em estabilidade, ou seja, o número de mortes não caiu nem subiu significativamente (14 estados): SC, ES, MG, RJ, GO, MS, AM, AP, BA, CE, MA, PB, PE e SE

Em queda (10 estados + DF): PR, RS, SP, DF, MT, AC, PA, RO, TO, AL e PI

Essa comparação leva em conta a média de mortes nos últimos 7 dias até a publicação deste balanço em relação à média registrada duas semanas atrás (entenda os critérios usados pelo G1 para analisar as tendências da pandemia).

Publicado originalmente por G1


A inflação do Alvorada

As palavras, decisões e atitudes irresponsáveis de Jair Bolsonaro espantam investidores, afetam o câmbio e inflam os preços

O presidente Jair Bolsonaro é hoje a fonte de inflação mais perigosa. Suas palavras, decisões e atitudes irresponsáveis assustam o mercado, espantam investidores, afetam o câmbio e acabam inflando os preços com a alta do dólar. Em outros países se pode conter a inflação com aumento de juros, principal instrumento de aperto monetário. Não há, no entanto, meios de controlar o presidente brasileiro, fazê-lo medir suas palavras e tentar criar um ambiente político e econômico saudável e previsível.

Um novo susto derrubou a bolsa de valores na segunda-feira e levou o dólar a R$ 5,67, a maior taxa desde 21 de maio, quando a cotação chegou a R$ 5,70. O fato assustador, desta vez, foi o anúncio de mais uma gororoba fiscal para financiar a Renda Cidadã, estandarte da campanha pela reeleição. A fórmula anunciada inclui uma redução de pagamentos de precatórios, algo com cheiro de calote, e uma apropriação muito polêmica de recursos do Fundeb. De novo o Banco Central (BC) precisou intervir no mercado, vendendo moeda americana, para derrubar a cotação até R$ 5,63, uma taxa ainda muito elevada.

Dólar muito caro, muitas vezes superando por 40% a cotação do início do ano, tem pressionado os preços por atacado. Os aumentos são em parte explicáveis pelas exportações do agronegócio, principalmente para a China, e em parte também pelo câmbio. Dólar mais caro estimula também as vendas de produtos de menor peso na balança comercial, como o arroz, mas muito importantes para o mercado interno. Além disso, preços domésticos tendem a acompanhar os externos, especialmente quando há aumento de custos.

A inflação do atacado é bem visível no Índice Geral de Preços – Mercado (IGP-M), calculado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Esse indicador subiu 4,34% em setembro, 14,40% neste ano e 17,94% em 12 meses. Mas convém traduzir esse aranzel de letras e números. O IGP-M é formado por três componentes. Os preços ao produtor (atacado) têm peso de 60%. Os preços ao consumidor correspondem a 30% do conjunto. O índice nacional do custo da construção representa 10% do indicador total.

Os preços por atacado, os mais sensíveis ao mercado internacional e ao câmbio, subiram 5,92% em setembro, 20,14% em 2020 e 25,26% em 12 meses. As maiores altas foram as dos produtos agropecuários: 9,41% no mês passado, 28,82% no ano e 45,52% em 12 meses. Mas, com o isolamento, a perda de renda e a insegurança de milhões de famílias, o consumo foi refreado. Por isso, a maior parte da alta de preços ficou represada no atacado. Houve pouco repasse ao varejo e ao comprador final.

Por isso, o Índice de Preços ao Consumidor (IPC) aumentou apenas 0,64% no último mês, 2,03% em 2020 e 3,04% nos 12 meses até setembro. Mas isso é um número médio. O custo da alimentação, um dos principais componentes do IPC, subiu bem mais que os outros preços pagos pelas famílias, com altas de 1,30%, 7% e 9,08% nos períodos considerados. Em setembro o arroz ficou 11,08% mais caro e virou o novo terror inflacionário.

“O câmbio médio dos próximos 30 dias poderá determinar o futuro de curto prazo do IGP-M”, disse o coordenador de índices de preços da FGV, André Braz, ao apresentar os novos dados. Dólar na faixa de R$ 5,50 a R$ 5,60 poderá, segundo ele, impedir a desaceleração dos preços.

Não se pode rejeitar a possibilidade de um IGP-M com 20% de alta em 2020, embora o cenário básico seja outro, comentou o economista. Com a volta da China e de outras grandes economias à normalidade, as commodities se valorizam “e a incerteza doméstica cria uma desvalorização cambial que, se for perpetuada, poderá criar uma pressão em direção a esse cenário”, acrescentou.

A incerteza doméstica, refletida no dólar, também é fator inflacionário. É palavra de especialista, confirmada no dia a dia dos mercados. Faltou dizer de onde vem a incerteza. Vem, é claro, do desgoverno, principal fonte de insegurança fiscal e econômica. Exemplo: a lambança orçamentária discutida na segunda-feira. Endereço: Palácio da Alvorada. Mas as emas são inocentes.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo. Publicado originalmente em 01.10.2020

A democracia na América

Donald Trump não respeita o adversário político, o próprio partido e o eleitor

O primeiro debate das eleições americanas assustou os telespectadores. Foram 90 minutos de injúrias, insultos e demasiadas interrupções. “Ninguém jamais viu um debate presidencial como o festival de gritos e agressões de terça à noite entre o presidente Donald Trump e o ex-vice-presidente Joe Biden”, resumiu Dan Balz, do Washington Post.

Desde o início, o presidente americano impôs o tom do debate, com falas agressivas e contínuas interrupções. Sem sucesso, o moderador Chris Wallace fez vários apelos a Donald Trump para que respeitasse a ordem do debate. Tal incivilidade impediu uma discussão efetiva sobre os reais problemas do país. No entanto, por mais constrangedores que tenham sido os maus modos de Trump, eles não foram o aspecto mais assustador do debate – e do que se tem visto até agora da campanha eleitoral nos Estados Unidos.

Atrás nas pesquisas de opinião, Donald Trump tem colocado em dúvida a lisura do sistema eleitoral americano, sem trazer qualquer fato que apoie sua acusação. Como escreveu Thomas L. Friedman no New York Times, “o presidente disse-nos de inúmeras maneiras que ou será reeleito ou deslegitimará o voto, alegando que todas as cédulas por correio – uma tradição consagrada que conduziu republicanos e democratas ao cargo e foi usada pelo próprio Trump – são inválidas”.

Perversa, a tática de Trump, lançando suspeitas infundadas sobre a contagem dos votos, causa enormes estragos na confiança na democracia. Caso não vença no Colégio Eleitoral, o candidato republicano dá sinais de querer criar uma enorme confusão, levando o resultado das urnas para avaliação da Suprema Corte ou do Senado.

Esse descarado desrespeito às regras do jogo tem causado apreensão. “Nossa democracia está em terrível perigo”, escreveu Thomas L. Friedman. Segundo o colunista do New York Times, um perigo como esse não era visto “desde a Guerra Civil; mais perigo do que depois de Pearl Harbor, mais perigo do que na crise dos mísseis cubanos e mais perigo do que durante Watergate”. Não deixa de ser estranho que esse perigo se dê precisamente no país que tem sido o paradigma de democracia.

Essa dramática situação é resultado de uma tática usada há anos por Donald Trump, com a conivência de não poucas pessoas. O candidato republicano não respeita o adversário político, não respeita o próprio partido e não respeita o eleitor.

Pesquisa realizada pela CNN apontou que Joe Biden venceu o debate da noite de terça-feira contra Donald Trump por 60% a 28%. Num cenário tão dramático, é um alívio constatar que o bom senso parece ainda prevalecer minimamente. Mas, como disse o cientista político Hussein Kalout, “foi um dos piores debates da história das eleições americanas. Um debate caótico e desprovido de conteúdo e de propostas estruturais. O confronto se deu de forma rasteira e é impossível auferir a vitória a um dos lados. O eleitor americano foi o maior perdedor”.

O quadro é extremamente preocupante. A confusão que Donald Trump se esforça para armar pode trazer grandes prejuízos não apenas para os Estados Unidos, mas para todo o mundo. No caso do Brasil, há ainda um aspecto especialmente constrangedor. Mesmo diante do comportamento de Donald Trump, o governo de Jair Bolsonaro insiste em ser submisso, de um jeito nunca visto na diplomacia brasileira, ao candidato republicano e a seus interesses eleitorais.

O debate de terça-feira à noite, com a atuação absolutamente incivilizada do candidato republicano, evidencia o grau de cegueira deliberada de Jair Bolsonaro e de parte de seu governo, em especial da chamada ala ideológica. Vale lembrar, por exemplo, a análise do chanceler Ernesto Araújo, publicada em artigo, na qual dizia que Donald Trump era o único que talvez pudesse ainda salvar o Ocidente. Mais realista parece ser a constatação de Thomas L. Friedman sobre o candidato republicano: é “a pessoa mais desonesta, perigosa, mesquinha, divisiva e corrupta que já ocupou o Salão Oval”.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo. Publicado originalmente em 01.10.2020

Queimadas no Pantanal batem recorde em 9 meses e são as maiores em 23 anos

Total de focos entre 1º de janeiro e 30 de setembro foi de 18.259, alta de 82% em relação ao observado em 2019, e é o maior do registro histórico para um ano inteiro; Amazônia também teve alta de queimadas

 Ao contrário do discurso recente, e errado, do governo Bolsonaro minimizando o número de queimadas no Brasil, os dois biomas mais preservados do País fecharam o mês de setembro com altas expressivas no número de focos. 

O Pantanal – maior planície úmida do mundo, que se estende pelos Estados do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul – apresentou a sétima alta mensal consecutiva e bateu o recorde do registro histórico para setembro, com 8.106 focos de calor, alta de 180% em relação ao mesmo mês do ano anterior, que teve 2.887 focos. Somente na quarta-feira, 30, os satélites captaram 682 focos ativos. Em apenas nove meses, o bioma também bateu o recorde anual. 

                                

                            Queimadas no Pantanal Matogrossense Foto: Dida Sampaio/Estadão

De acordo com dados do Programa Queimadas, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), entre 1º de janeiro e 30 de setembro, o total de pontos de fogo no Pantanal – 18.259 – já supera em 82% o total de queimadas observado ao longo de todo o ano passado no bioma (10.025). E é o maior valor observado para o período de um ano desde o início dos registros do Inpe, em 1998. O maior valor até então era o de 2005, com 12.536 focos para 12 mese

Em área, as queimadas já consumiram neste ano cerca de 23% do bioma, segundo estimativas do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa), da UFRJ, compiladas até 27 de setembro. O cálculo aponta que o fogo atingiu até domingo 34.610 km². 

O Instituto Centro de Vida (ICV), organização sediada em Mato Grosso e que tem acompanhado de perto as queimadas no bioma, relatou no início da semana que mesmo as primeiras chuvas de setembro ainda não foram capazes de controlar o alastramento dos incêndios no Estado.

Segundo o ICV, o fogo segue avançando pelo Parque Estadual Encontro das Águas, maior reduto de onças pintadas do mundo e que já teve 93% de sua área atingida. Outra unidade de conservação afetada foi a Estação Ecológica Taiamã, com 27% da área queimada.

Cinza, lama e fogo predominam sobre o verde e criam a nova paisagem no Parque Encontro das Águas. Foto: Dida Sampaio/Estadão

Fogo na Amazônia

Na Amazônia, foram 32.017 focos, alta de 60,6% em relação ao mesmo mês do ano passado, que teve 19.925 focos em setembro. É o maior valor desde 2017 para este mês no bioma.

Em agosto, tinha ocorrido uma leve queda dos focos na Amazônia em comparação com os números do mesmo mês no ano passado (29.307 ante 30.900). As queimas em agosto do ano passado eram as piores desde 2010 e deram início às críticas estrangeiras sobre a falta de atenção do governo federal à região. Foi também quando ocorreu o chamado "Dia do Fogo", em que proprietários de terra do Pará, de modo coordenado, colocaram fogo em várias regiões simultaneamente, segundo as investigações

De acordo com o IBGE, maior perda de área natural ocorreu na Amazônia

Amazônia teve 32.017 focos de incêndio em setembro deste ano, alta de 60,6% em relação ao mesmo mês de 2019. É o maior valor desde 2017 para este mês no bioma. Foto: Christian Braga / Greenpeace

A queda registrada neste ano, porém, pode estar subestimada. O Inpe informou que os valores estão menores em razão de uma “indisponibilidade global de dados” na segunda quinzena de agosto do sensor de um dos satélites da Nasa usados para medir as queimadas. Com isso, a expectativa é que o total de focos de calor na Amazônia tenha sido maior que o registrado em agosto, mas as informações ainda não foram atualizadas.

Giovana Girardi, de O Estado de S.Paulo. Publicado originalmente em 01.10.2020