terça-feira, 22 de abril de 2025

Um papa em movimento

Como um legítimo vicário de Cristo, Francisco foi um sinal de contradição para progressistas e conservadores. Vindo da periferia do mundo, ele levou a Igreja à periferia do mundo

Foto - reprodução de Euro News.

“Parece que meus irmãos cardeais foram quase aos confins da Terra” para dar um bispo a Roma, disse o papa Francisco do balcão da Basílica de São Pedro em seu discurso inaugural. Doze anos depois, ninguém se pergunta mais “Jorge quem?”. Mas quem pode dizer que entende plenamente o significado de seu pontificado?

A familiaridade e a simplicidade estavam lá desde o início, a começar pelo nome, o santo de Assis que conclamou os cristãos, em especial os clérigos, a imitar Jesus vivendo na pobreza e respeitando o mundo natural. Bergoglio recusou um aposento no Palácio Apostólico em favor de uma hospedaria do Vaticano, calçava sapatos simples e viajava num Fiat. “O carnaval acabou”, disse a um cerimonialista papal. Suas primeiras visitas foram a prisioneiros e refugiados. Espontâneo, sempre a caminho de pessoas às margens da sociedade, Francisco parecia ignorar as regras da lei em favor das regras do amor.

“Somos a imagem do Senhor, e Ele faz o bem e todos nós temos este mandamento em nosso coração: faça o bem, não faça o mal”, disse com sua simplicidade característica. “‘Mas eu não acredito, padre, eu sou ateu!’ Mas faça o bem: nós nos encontraremos lá”.

São traços que atraíram os que veem a Igreja como restritiva e legalista. Seu acolhimento aos homossexuais e imigrantes despertou a simpatia dos progressistas. Os conservadores se irritaram com um pontificado que parecia transformar a Igreja numa espécie de ONG humanitária. Mas, desconcertando ambos os lados, Francisco apelava incisivamente a temas incômodos à sensibilidade liberal, como a atividade demoníaca na vida humana ou o papel central da Virgem Maria na vida cristã.

Muitos viram nessa atitude uma espécie de populismo religioso, na esteira da tradição argentina. “Todo o ponto do peronismo é que não se pode fixá-lo”, disse o escritor irlandês Colm Toíbín. “Ser um peronista significa ser nada e tudo. Significa que você pode por vezes estar de acordo com as próprias coisas que em outras circunstâncias não é realmente a favor”. Mas, nas palavras de Francisco, trata-se de “abraçar a vida tal como ela vem”.

Quem esperava mudanças radicais em temas como as regras do celibato, sacerdócio das mulheres ou casamento homossexual sentiu-se frustrado. Mas a Igreja não é uma democracia e suas tradições e ensinamentos não estão sujeitos ao voto popular. Francisco, no entanto, submeteu essas e outras controvérsias ao debate. Antes dele, os sínodos eram pouco mais que eventos coreografados para ratificar a vontade do alto cardinalato.

Francisco foi um papa que pensou em termos de processos. Assim, ele incomodou tanto “aqueles que querem mudanças (e esperam decisões rápidas) quanto aqueles que, ao contrário, querem deixar tudo como está”, disse o teólogo e repórter do Vaticano Hendro Munsterman. “O profético e o cautelosamente duvidoso se juntam no papa Francisco.”

Francisco se foi com mais idade que Bento XVI tinha quando renunciou e que João Paulo II quando morreu. Num momento em que o mundo se fragmenta, “Francisco foi o primeiro papa verdadeiramente global”, disse o historiador da Igreja Massimo Faggioli. Foi o primeiro latino-americano e o primeiro não europeu desde o século 8.º. Foi o primeiro a visitar a Península Arábica, onde, num gesto simbólico com o grande imã do Cairo, falou dos muçulmanos como irmãos. Numa Igreja que definha na Europa e cresce na África e na Ásia, ele trouxe o olhar das periferias, tal como o cristianismo primitivo nasceu, das periferias do Império Romano. O Colégio de Cardeais que escolherá seu sucessor será muito diferente daquele que o elegeu, incluindo uma amplitude regional muito maior.

“Comecemos esta jornada, os bispos e o povo, esta jornada da Igreja de Roma, que preside em caridade todas as Igrejas numa jornada de fraternidade em amor, confiança mútua”, disse Francisco em seu discurso inaugural. “Rezemos todos uns pelos outros.” Que seu sucessor saiba conduzir a Igreja no espírito de humildade, simplicidade e abertura legado por Francisco.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 22.04.25

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