domingo, 20 de abril de 2025

O insulto e a injúria no Salão Oval

Trump se junta a um autocrata centro-americano para desmoralizar o Judiciário dos EUA. A Suprema Corte tem evitado cair em provocações, mas precisará estabelecer um limite


Trump com Bukele no Salão Oval da Casa Branca

Os apetites autoritários de Donald Trump, combinados com sua concepção maximalista do Poder Executivo, estão submetendo o Estado de Direito nos EUA a um teste de estresse sem precedentes, que põe a Casa Branca em rota de colisão com a Suprema Corte. Ante os atritos do governo com o Judiciário, a Corte, com a prudência que lhe cabe, tem buscado garantir o devido processo legal, preservar as prerrogativas do Executivo e evitar uma crise constitucional.

Essa encruzilhada ficou evidente no caso de Kilmar Abrego Garcia, um salvadorenho residente nos EUA que foi deportado para uma prisão de segurança máxima em El Salvador sem qualquer processo legal. No dia 10 passado, a Corte sustentou unanimemente uma decisão da Justiça federal determinando que o governo “facilite” o retorno de Abrego Garcia. A resposta de Trump foi a mais cínica possível: em um teatro midiático armado no Salão Oval, calculado para tripudiar da Suprema Corte, Trump mostrou ao mundo que ignorará a sua decisão fingindo respeitá-la.

Com a presença de autoridades do alto escalão, Trump recebeu o presidente de El Salvador, o orgulhoso autocrata Nayib Bukele, para encenar um impasse conveniente, como se nenhum dos dois pudesse fazer nada sem abusar de seus poderes. “Cabe a El Salvador decidir”, disse a procuradora-geral dos EUA, Pam Bondi. “Se quiserem devolvê-lo, vamos facilitar, fornecendo um avião.” De sua parte, Bukele afetou escrúpulos: “Espero que não estejam sugerindo que eu contrabandeie um terrorista para os EUA”, disse aos repórteres referindo-se a Abrego Garcia, contra quem não há nenhuma acusação de terrorismo. O secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, recitou diligentemente seu papel na pantomima, advertindo que a relação entre dois países é uma questão de política externa, cuja condução cabe ao Poder Executivo e escapa à alçada do Judiciário. Como notou o articulista do Financial Times Edward Luce, “o drama no Salão Oval ofereceu uma lição cívica para o mundo: o governo dos EUA tem mais respeito por um homem forte estrangeiro do que por sua própria Suprema Corte”.

A farsa se prestou a normalizar dois precedentes assustadores e interligados. O primeiro é a ideia de que o governo pode prender pessoas à revelia da Justiça americana e encarcerá-las em algum Gulag improvisado mundo afora. Esse corolário foi expresso em uma declaração de três ministras da Suprema Corte: “As implicações da posição do governo” são “de que não só cidadãos estrangeiros, mas também cidadãos dos EUA podem ser detidos nas ruas, colocados à força em aviões e confinados em prisões estrangeiras sem oportunidade de reversão se a revisão judicial for ilegalmente negada antes da remoção”. E o voto prossegue: “A história não é estranha a tais regimes ilícitos, mas o sistema de leis desta nação foi projetado para impedir, e não viabilizar, a sua ascensão”.

O próprio Trump confirmou essa intenção: “Se for um criminoso nacional ( americano), para mim não há nenhum problema”, disse durante o encontro. “Os nacionais são os próximos. Você precisa construir mais uns cinco lugares”, disse a Bukele, referindo-se às prisões salvadorenhas, arrancando risos no Salão Oval.

O segundo precedente é o descumprimento de decisões judiciais, como parte do projeto de Trump de emular não só o Estado policial de Bukele, mas todo o seu maquinário autocrático: remover juízes, intimidar adversários políticos, solapar o devido processo legal e eventualmente os limites de mandatos presidenciais. “A acumulação de todos os Poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário, nas mesmas mãos”, já alertava um dos Pais Fundadores dos EUA, James Madison, “pode justamente ser designada como a própria definição de tirania”.

Uma colisão entre o Executivo e a Suprema Corte parece cada vez mais próxima. As políticas mais caras ao movimento Maga, das tarifas indiscriminadas à chantagem com os recursos do ensino superior, passando pelo desmonte da burocracia federal até a deportação de residentes estrangeiros por crimes de opinião ou mesmo sem qualquer acusação formal, ameaçam a divisão dos Poderes e direitos fundamentais. Até o momento, a Suprema Corte tem dado exemplos meritórios de autocontenção para evitar uma crise constitucional. Mas esse objetivo não pode ser mais importante que impedir a dilapidação da Constituição. •O insulto e a injúria no Salão Oval

Trump se junta a um autocrata centro-americano para desmoralizar o Judiciário dos EUA. A Suprema Corte tem evitado cair em provocações, mas precisará estabelecer um limite

Os apetites autoritários de Donald Trump, combinados com sua concepção maximalista do Poder Executivo, estão submetendo o Estado de Direito nos EUA a um teste de estresse sem precedentes, que põe a Casa Branca em rota de colisão com a Suprema Corte. Ante os atritos do governo com o Judiciário, a Corte, com a prudência que lhe cabe, tem buscado garantir o devido processo legal, preservar as prerrogativas do Executivo e evitar uma crise constitucional.

Essa encruzilhada ficou evidente no caso de Kilmar Abrego Garcia, um salvadorenho residente nos EUA que foi deportado para uma prisão de segurança máxima em El Salvador sem qualquer processo legal. No dia 10 passado, a Corte sustentou unanimemente uma decisão da Justiça federal determinando que o governo “facilite” o retorno de Abrego Garcia. A resposta de Trump foi a mais cínica possível: em um teatro midiático armado no Salão Oval, calculado para tripudiar da Suprema Corte, Trump mostrou ao mundo que ignorará a sua decisão fingindo respeitá-la.

Com a presença de autoridades do alto escalão, Trump recebeu o presidente de El Salvador, o orgulhoso autocrata Nayib Bukele, para encenar um impasse conveniente, como se nenhum dos dois pudesse fazer nada sem abusar de seus poderes. “Cabe a El Salvador decidir”, disse a procuradora-geral dos EUA, Pam Bondi. “Se quiserem devolvê-lo, vamos facilitar, fornecendo um avião.” De sua parte, Bukele afetou escrúpulos: “Espero que não estejam sugerindo que eu contrabandeie um terrorista para os EUA”, disse aos repórteres referindo-se a Abrego Garcia, contra quem não há nenhuma acusação de terrorismo. O secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, recitou diligentemente seu papel na pantomima, advertindo que a relação entre dois países é uma questão de política externa, cuja condução cabe ao Poder Executivo e escapa à alçada do Judiciário. Como notou o articulista do Financial Times Edward Luce, “o drama no Salão Oval ofereceu uma lição cívica para o mundo: o governo dos EUA tem mais respeito por um homem forte estrangeiro do que por sua própria Suprema Corte”.

A farsa se prestou a normalizar dois precedentes assustadores e interligados. O primeiro é a ideia de que o governo pode prender pessoas à revelia da Justiça americana e encarcerá-las em algum Gulag improvisado mundo afora. Esse corolário foi expresso em uma declaração de três ministras da Suprema Corte: “As implicações da posição do governo” são “de que não só cidadãos estrangeiros, mas também cidadãos dos EUA podem ser detidos nas ruas, colocados à força em aviões e confinados em prisões estrangeiras sem oportunidade de reversão se a revisão judicial for ilegalmente negada antes da remoção”. E o voto prossegue: “A história não é estranha a tais regimes ilícitos, mas o sistema de leis desta nação foi projetado para impedir, e não viabilizar, a sua ascensão”.

O próprio Trump confirmou essa intenção: “Se for um criminoso nacional ( americano), para mim não há nenhum problema”, disse durante o encontro. “Os nacionais são os próximos. Você precisa construir mais uns cinco lugares”, disse a Bukele, referindo-se às prisões salvadorenhas, arrancando risos no Salão Oval.

O segundo precedente é o descumprimento de decisões judiciais, como parte do projeto de Trump de emular não só o Estado policial de Bukele, mas todo o seu maquinário autocrático: remover juízes, intimidar adversários políticos, solapar o devido processo legal e eventualmente os limites de mandatos presidenciais. “A acumulação de todos os Poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário, nas mesmas mãos”, já alertava um dos Pais Fundadores dos EUA, James Madison, “pode justamente ser designada como a própria definição de tirania”.

Uma colisão entre o Executivo e a Suprema Corte parece cada vez mais próxima. As políticas mais caras ao movimento Maga, das tarifas indiscriminadas à chantagem com os recursos do ensino superior, passando pelo desmonte da burocracia federal até a deportação de residentes estrangeiros por crimes de opinião ou mesmo sem qualquer acusação formal, ameaçam a divisão dos Poderes e direitos fundamentais. Até o momento, a Suprema Corte tem dado exemplos meritórios de autocontenção para evitar uma crise constitucional. Mas esse objetivo não pode ser mais importante que impedir a dilapidação da Constituição. 

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 20.04.25

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