Exigir a capitulação da Ucrânia é uma abjeção moral e um brutal erro geopolítico: longe de garantir a paz, será só um incentivo para que a Rússia retome sua agressão com mais tranquilidade
Pela biografia de Donald Trump, sabe-se que ele genuinamente tem aversão a guerras e genuinamente superestima seus talentos como negociador. Na campanha, ele disse que a guerra na Ucrânia nunca teria acontecido se fosse presidente e prometeu acabar com a “guerra de Joe Biden” em um dia. Isso explica sua impaciência, em quase cem dias de mandato. Como genuíno populista, Trump está pronto a sacrificar os interesses de seu país em troca de uma satisfação imediata para si e seus eleitores. O acordo que ele está propondo para pôr fim à guerra – basicamente a capitulação do agredido e a recompensa ao agressor – não só seria moralmente abjeto, mas geopoliticamente contraproducente: longe de garantir uma paz duradoura, será só um incentivo para que no futuro o agressor retome suas agressões com mais confiança. Ou seja, a paz hoje seria conquistada ao custo de uma guerra maior e pior amanhã.
Seria paranoia conspiratória dizer em sentido não figurado e sem aspas que Trump é um “agente russo”, mas, de fato, ainda que involuntariamente, é o que vem sendo. Um ficcionista que tentasse imaginar o comportamento de um agente russo na Casa Branca dificilmente se sairia com algo melhor. Não faltam nem algumas “críticas” e “exigências” à Rússia, como faria um agente para não revelar seu disfarce. Mas, no conjunto da obra, o que ele fez só fortaleceu a posição de Vladimir Putin como nunca desde o começo da guerra.
Desde o início, o governo Trump descartou a entrada da Ucrânia na Otan ou a restauração integral de suas fronteiras. Depois, sugeriu a intenção de suspender as sanções à Rússia e votou contra resoluções na ONU críticas à Rússia. E uma das poucas exceções ao tarifaço de Trump foi, ora vejam, a Rússia de Putin.
Para a Rússia, afagos, para a Ucrânia, safanões: suspensões temporárias de assistência militar e cooperação de inteligência; a promessa de que não haveria novos envios de recursos; extorsão de direitos de exploração de recursos minerais; um ritual público de humilhação do presidente Volodmir Zelenski no Salão Oval; pressões para que ele reconheça ganhos territoriais de Putin.
O plano mais recente de Trump não chega a entregar tudo o que a Rússia quer, mas quase. Os territórios anexados desde 2022 não seriam reconhecidos e a Ucrânia não precisaria se desmilitarizar. Fora isso, Washington oferece o fim das sanções à Rússia, um cessar-fogo congelando as linhas atuais e o reconhecimento da Crimeia como território russo. Em troca, a Ucrânia não recebe praticamente nada, além de promessas vagas de segurança de Trump, que não valem nada.
É algo que Zelenski não pode aceitar, nem que quisesse. A sociedade ucraniana jamais toleraria essa decisão. A instabilidade social poria em risco a própria continuidade de seu governo. Putin sabe disso e possivelmente tem pressionado os americanos por essa concessão. Das duas, uma: ou a equipe de Trump não sabe, e isso expõe seu amadorismo, ou sabe, e isso expõe sua má-fé. Nesse último caso, essas exigências estariam sendo feitas para acusar Zelenski de intransigência, criando um pretexto para “lavar as mãos”, ou seja, abandonar a Ucrânia à sua própria sorte e normalizar as relações com Putin.
Foi exatamente o que Trump fez nos últimos dias. Enquanto ele só manifestou irritação com os ataques de Putin à Ucrânia, acusou Zelenski de obstruir a paz, lançando-lhe um ultimato: ou aceita todas as condições, ou os EUA lhes darão as costas.
O mais inacreditável é que legitimar a demanda russa pela Crimeia seria danoso aos interesses dos EUA, seja por degradar sua reputação, seja por encorajar outros agressores (como a China contra Taiwan), seja por alienar aliados como os europeus, seja por fomentar a divisão na sociedade americana. Os americanos estavam exaustos com 20 anos de guerra no Afeganistão, mas nunca perdoaram Biden pela retirada desastrosa que acabou entregando todas as posições ao Taleban. Muitos podem estar cansados ou desinteressados na guerra na Ucrânia, e todos sabem que Kiev terá de fazer concessões, mas não perdoarão Trump por trair um aliado e entregar de bandeja tudo o que Putin, um inimigo declarado de seu país, quer. •
Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 25.04.25
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