segunda-feira, 21 de abril de 2025

A democracia no divã

Índice da Democracia mostra que a recessão é severa. Mas, ao contrário das autocracias, o remédio para os males das democracias liberais está nelas mesmas: mais liberdade e representação

Manchetes do mundo destacaram 2024 como “o maior ano eleitoral da História”. Metade da população foi às urnas em 75 países. Mas, a julgar pelo Índice da Democracia da Economist Intelligence Unit, a celebração global da democracia poderia ser uma festa de despedida.

O Índice da Democracia avalia 167 países por cinco critérios – processo eleitoral e pluralismo, funcionamento do governo, participação política, cultura política, e liberdades civis –, agrupando-os em quatro categorias: democracias plenas e falhas, e regimes híbridos e autoritários. Segundo o estudo mais recente, a democracia está em sua pior forma em duas décadas. O número de democracias diminuiu e o de autocracias aumentou. Os fatores que mais se deterioraram foram liberdades civis e processo eleitoral e pluralismo. Nos últimos anos, a degradação foi impulsionada sobretudo pelo avanço das autocracias e declínios na governança e no pluralismo.

O índice foca no problema: por que a democracia não está funcionando? Mas a questão em si é problemática: não está? À primeira vista, não. O alto índice de retaliação a incumbentes e apoio a insurgentes populistas exprime a irritação popular. Por outro lado, a marca distintiva das democracias é justamente a alternância de poder. As alternativas populistas, frequentemente apontadas como causa do mal-estar das democracias, também podem ser um sintoma. Os populistas podem ter as respostas erradas, mas a adesão popular sugere que estão fazendo as perguntas certas.

Com o perdão do clichê, essa situação de “copo meio cheio, meio vazio” é evidenciada por pesquisas globais que registram uma ampla adesão aos valores democráticos. Ou seja, as pessoas não estão frustradas com a democracia em si, e sim com seu funcionamento. Mas se a democracia não está funcionando, aparentemente há vastas reservas morais para fazê-la funcionar.

O modo de fazê-la funcionar depende da identificação dos problemas. A biópsia do índice evidencia uma história de “falhas” (de governos, partidos, políticos) e “déficits” (de igualdade, integridade, opções, ideias, cidadania). A restauração do vigor da democracia depende da reversão dessas falhas e déficits.

As causas da recessão são multidimensionais – geopolíticas, econômicas, políticas, culturais, sociais – e sua interação é complexa, mas todas apontam para uma solução, como o ponto de fuga de uma perspectiva: a representatividade. Em todos esses anos, a fé nos ideais democráticos se manteve. Mas o mundo mudou, e os canais de representação não acompanharam essas mudanças. Governos e partidos se alienaram dos cidadãos e não respondem aos seus anseios.

O problema das democracias é que estão funcionando pela metade. Quando as urnas punem incumbentes ou premiam líderes que se insurgem contra o status quo, funcionam como uma válvula de escape da insatisfação popular, mas não como um motor de sua satisfação.

“A resposta aos desafios enfrentados pela democracia representativa é não jogar o bebê com a água do banho. O desafio é renová-la e revigorá-la trazendo questões reais de volta à arena do debate público”, pondera o Índice da Democracia. “Isso significa ter uma verdadeira disputa sobre políticas públicas entre partidos em competição. E significa (re)construir relações entre os partidos e o eleitorado. A democracia é um trabalho duro – ela exige novas ideias, políticas claras, engajamento com os eleitores, vencer discussões com eles e mobilizá-los para criar uma maioria que possa vencer eleições.”

Não se pode subestimar a crise da democracia, tampouco sua resiliência. Há pouco mais de dois séculos só havia autocracias no mundo, e ninguém tinha direitos democráticos. Hoje metade das nações são democráticas e no ano passado 4 bilhões de pessoas foram às urnas. As democracias já tiveram sua morte decretada e sofreram recessões severas, notadamente no entreguerras e nos “anos de chumbo” da guerra fria. Mas, ao contrário das autocracias, só precisam buscar em si mesmas os remédios para seus males. É uma lei histórica: a agonia dos países autocráticos se cura com menos autocracia; a agonia das democracias liberais, com mais liberdade e representação.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 21.04.25

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