No momento em que castiga México e Canadá com tarifas inexplicáveis e bagunça cadeias produtivas globais, Trump celebra a si mesmo e promete mais disrupção em discurso ao Congresso
O primeiro pronunciamento presidencial anual no Congresso americano de Donald Trump em seu novo mandato foi um sucesso – ao menos para os fins almejados por ele. Ecoando o discurso de posse – que por sua vez ecoou os comícios de campanha –, o pronunciamento foi calculado para humilhar os democratas, intimidar republicanos, unir o movimento trumpista Maga, mas, acima de tudo, celebrar o próprio Trump. Por isso, considerando os fins almejados pela Constituição – um diagnóstico ao Congresso acompanhado de recomendações – e pela tradição – uma demonstração cerimonial de unidade entre os Poderes –, o discurso foi um desastre.
Como bom populista, Trump invocou agendas populares: ampliar a produção de petróleo, cortar gastos perdulários da burocracia federal, reduzir impostos, deportar imigrantes que violam leis, proibir cirurgias de mudança de sexo em crianças e a participação de mulheres transgênero em esportes femininos. São políticas que o ajudaram a vencer o voto popular e os republicanos a vencer a Câmara e o Senado, e o fato de que os democratas ainda não aceitam que essas agendas têm amplo apoio da população só mostra por que perderam. Trump pretende reduzir tudo a uma luta de classes – a classe trabalhadora, defendida pelos republicanos, contra as elites identitárias entranhadas na administração pública.
Mas se Trump é mais popular do que os democratas gostariam, é menos do que ele imagina. Ao contrário do que sugerem suas mentiras e hipérboles, ele é relativamente impopular num início de mandato, com menos de 50% de aprovação.
É revelador que em seu longuíssimo discurso Trump tenha se omitido justamente sobre o tema de campanha que mais machucou os democratas. Com seis semanas de governo, Trump continua atribuindo a culpa pela inflação – como, de resto, por tudo de ruim no país – ao governo de Joe Biden, sem contudo dar nenhuma pista de como pretende reduzi-la.
Ao contrário, ele impôs 25% de tarifas ao Canadá e ao México e mais 10% sobre a China, sob o argumento de que protegerão a “alma da nação” e, como num passe de mágica, resolverão problemas como o narcotráfico. O mercado de ações caiu, pela óbvia razão de que as tarifas contra México e Canadá são inexplicáveis, e os economistas projetam mais inflação, prejuízos para a indústria e para os exportadores agrícolas e ampla disrupção nas cadeias globais de produção. Trump diz que será só um “pequeno distúrbio”, mas logo deve descobrir que para os eleitores, sobretudo para a classe trabalhadora, o distúrbio é imenso.
No front externo, Trump não terminou a guerra da Ucrânia em 24 horas, como prometeu, mas está perto disso. Só que o que chama de “paz” são a capitulação da Ucrânia e o triunfo da Rússia, isto é, um interlúdio para novas guerras. Os americanos muito provavelmente não votaram para que seu presidente impusesse indiscriminadamente tarifas sobre aliados, e menos ainda para que alienasse aliados, como faz com os europeus, e reabilitasse adversários, como faz com a Rússia.
Mais significativa que os conteúdos presentes ou ausentes no discurso foi a posição de seu destinatário. Nunca o Congresso pareceu tão irrelevante. Trump falou muito do que fez e pouco do que fará, mas, em todo caso, promove poucas negociações com o Congresso, o que sugere escassa confiança na maioria republicana.
De fato, o protecionismo comercial e o desmonte da aliança transatlântica podem ser populares entre os trumpistas, mas não entre os republicanos tradicionais. Que a escolhida pelos democratas para responder ao discurso de Trump, a senadora Elissa Slotkin, uma moderada, tenha concentrado suas críticas nesses pontos sugere que um exame de consciência pós-eleições pode estar surtindo frutos. Um governo construído sobre ordens executivas pode ser bombástico, mas também efêmero. Outra legislatura pode revertê-las rapidamente.
Por isso, Trump tem pressa e submeterá os freios e contrapesos da república americana a um teste de estresse. Seu discurso no Congresso mostra isso. Nessa toada, muitos desses freios e contrapesos podem quebrar irremediavelmente.
Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 06.03.25
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