sexta-feira, 7 de março de 2025

EUA com Trump vivem 'situação mais aterrorizante desde a guerra civil', diz autor de "Como as Democracias Morrem" Morrem'

Como alguém que se destacou no estudo do declínio das democracias no mundo todo, o cientista político Steven Levitsky tem certeza de uma coisa: os Estados Unidos estão a caminho de perder a sua.

'Depois da vitória de um populista, a oposição fica sempre estagnada e atordoada, muito insegura sobre o que fazer', diz Levitsky

Professor da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, Levitsky observa semelhanças cada vez maiores entre o presidente americano, Donald Trump, e o que aconteceu com líderes latino-americanos, tanto de direita quanto de esquerda, com tendências autoritárias.

"Em vários aspectos, a democracia dos EUA, o regime dos EUA, começa a se parecer muito mais com muitos regimes da América Latina do que antes", avalia Levitsky, que pesquisou esta região em profundidade, em entrevista à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.

Ele não acredita que Trump esteja seguindo necessariamente uma espécie de manual populista latino-americano, nem que a democracia dos EUA vá entrar em colapso total.

Mas adverte que "o maior ataque às instituições democráticas dos EUA na história moderna" está em andamento, e que o país pode tirar algumas lições do passado recente da América Latina.

Leia a seguir a entrevista da BBC News Mundo com Levitsky, coautor do livro "Como as democracias morrem."

BBC News Mundo - Qual é a principal conclusão que você tira após o primeiro mês do segundo mandato de Donald Trump?

Steven Levitsky - Acho que os EUA estão perdendo sua democracia, entrando em um regime híbrido que eu caracterizaria como autoritário competitivo.

Estava bastante claro que os americanos estavam elegendo uma figura abertamente autoritária em 2024. Diferentemente de 2016, não havia ambiguidade sobre a posição de Donald Trump em relação às normas democráticas.

O establishment político dos EUA, incluindo o Partido Democrata, não estava preparado de forma alguma para o que viria. Acho que nunca vou entender por que estava tão despreparado.

Mas Trump começou uma onda de ataques contra as instituições do Estado, contra a lei... É um pouco como o primeiro round de uma luta de boxe em que um boxeador desfere uma série de golpes, e seu oponente fica atordoado e tonto.

É apenas o primeiro round. Não creio que possamos tirar muitas conclusões sobre o que vai acontecer. Não creio que a nossa democracia vá entrar em colapso total. Mas este é o maior ataque às instituições democráticas dos Estados Unidos na história moderna, e estamos entrando em um momento autoritário: leve, mas ainda assim um momento autoritário.

BBC News Mundo - A democracia americana passou por vários testes ao longo da história e nos últimos anos. O que poderia ser diferente agora?

Levitsky - Não exageremos o quão democráticos os EUA foram no passado. No século 19, éramos uma democracia para homens brancos que coexistia com a escravidão. Entramos em uma guerra civil, e a democracia entrou em colapso. Depois houve um período em que o sul dos EUA esteve sob um governo autoritário de partido único.

Por fim, a democratização total ocorreu em 1965, quando o país se tornou uma democracia multirracial. E aí começou a polarização que agora está matando nossa democracia. Portanto, não temos sido uma democracia tão robusta quanto gostaríamos de pensar.

Steven Levitsky afirma que 'Trump usou desta vez um discurso populista que seria bastante familiar em grande parte da América Latina'

Algo novo e diferente em relação, por exemplo, ao macarthismo [acusar alguém de comunismo ou traição sem respeitar o devido processo legal] é que temos agora um partido político inteiro afastado das normas democráticas e sob o controle de um único líder.

O Partido Republicano sempre foi um partido de múltiplas facções, comprometido com as regras democráticas, e agora não é nada disso. É um partido personalista que consente abertamente o autoritarismo.

É um grande perigo quando, num sistema bipartidário a nível nacional, há um partido que não está comprometido com a democracia, e é condescendente com o autoritarismo.

E Donald Trump também não tem precedentes. Nunca nos bem-aventurados 250 anos de história desta república, tivemos um presidente que se recusou a aceitar os resultados de uma eleição, tentou anular a eleição e depois usou violência para tentar impedir uma transferência pacífica de poder [uma referência à invasão ao Capitólio por parte de alguns dos seus apoiadores, em 6 de janeiro de 2021]. Este é um território novo.

Portanto, temos uma figura abertamente autoritária apoiada por todo um partido político. É uma situação política tão aterrorizante como eu acho que não tínhamos desde, pelo menos, a época da guerra civil.

BBC News Mundo - Donald Trump foi eleito presidente ao vencer desta vez no voto popular, e os EUA cumprem os critérios para serem classificados como uma democracia liberal...

Levitsky - Ambas as coisas são verdadeiras.

BBC News Mundo - Então, como ambas as coisas podem ser verdadeiras ao mesmo tempo em que você diz que os EUA estão perdendo sua democracia?

Levitsky - A Venezuela era uma democracia liberal em 1998, quando Hugo Chávez ganhou de forma esmagadora no voto popular, em uma eleição livre e justa, totalmente democrática, e depois começou a desmantelar a democracia venezuelana.

Juan Perón foi eleito livremente nas eleições de 1946 na Argentina e, em seguida, começou a desmantelar a democracia argentina. Viktor Orbán foi eleito livremente na Hungria, assim como o AKP na Turquia em 2002.

Devemos deixar bem claro agora que o fato de um governo ser eleito não dá a ele o direito de ser rotulado como democrático, independentemente do que faça depois.

Se você for eleito livremente e começar a perseguir ou processar diretores de empresas, universidades, políticos, meios de comunicação que criticam o governo, você deixou de ser uma democracia.

Porque as democracias são regimes que realizam eleições livres e justas, mas também protegem as liberdades civis básicas dos cidadãos. E é isso que está ameaçado hoje nos EUA.

BBC News Mundo - Desde o primeiro mandato de Trump, você comparou as ações dele como presidente ao que os populistas latino-americanos fizeram. Você percebe cada vez mais semelhanças nesse sentido neste segundo mandato?

Levitsky - Em alguns aspectos, sim. A personalização do Partido Republicano, sem precedentes na história dos Estados Unidos, me lembra o tipo de relação que Perón e Chávez tinham com seu partido, ou que Ortega chegou a exercer sobre o partido sandinista na Nicarágua.

Este não era o caso nos EUA durante o primeiro mandato de Trump, então é algo novo.

Trump usou desta vez um discurso populista que seria bastante familiar em grande parte da América Latina.

'Diferentemente de 2016, não havia ambiguidade sobre a posição de Donald Trump em relação às normas democráticas', diz Levitsky (Getty Images)

Além disso, a politização do Estado por parte de Trump, algo que já aconteceu antes nos EUA e em outros países, e o uso do Estado como arma são bastante familiares na América Latina.

Assim, em vários aspectos, a democracia dos EUA, o regime dos EUA, começa a se parecer muito mais com muitos regimes da América Latina do que antes.

BBC News Mundo - Os populistas latino-americanos tendem a pressionar seus críticos e os meios de comunicação independentes que consideram ameaças aos seus planos. Você vê isso acontecendo nos EUA?

Levitsky - Sim, houve ameaças de usar a Comissão Federal de Comunicações para punir empresas de mídia que estão do lado equivocado para Trump.

Já houve processos judiciais frívolos movidos por Trump contra empresas de mídia por difamação, e outras autoridades do governo ameaçaram com mais.

Resta saber se o Departamento de Justiça vai ser mobilizado para investigar a oposição, empresários ou políticos.

BBC News Mundo - E como você avalia, comparando com a América Latina, uma postagem recente do presidente Trump nas redes sociais dizendo que "aquele que salva seu país não viola nenhuma lei"?

Levitsky - Não tenho certeza se há presidentes latino-americanos que diriam isso. Não acho que Milei diria isso. Talvez, sim...

BBC News Mundo - Mas há muitos que chegaram ao poder como "salvadores"...

Levitsky - Sim, isso me lembra um artigo muito importante que o cientista político argentino Guillermo O'Donnell escreveu há uns 30 anos sobre o que chamou de "democracia delegativa", em que presidentes latino-americanos eleitos livremente fariam campanha como "salvadores da pátria", dizendo: "Há uma crise enorme, só eu posso nos salvar".

O povo confiaria no presidente, que acumularia muito poder, e então governaria como bem entendesse. Ele estava se referindo a pessoas como Fujimori [no Peru], Menem [na Argentina] e Collor de Mello [no Brasil]. Exemplos mais recentes são Bukele [El Salvador], Chávez [Venezuela] e Correa [Equador].

Não é algo que tivéssemos visto nos EUA. Mas, acima de tudo, se trata de alguém que não é democrata. A presidência está nas mãos de uma figura autoritária. Ele nos disse isso repetidas vezes, e os americanos não prestaram atenção ou não se importaram.

BBC News Mundo - Você acha que essas semelhanças que observa entre o populismo latino-americano e as ações de Trump são meras coincidências, ou Trump segue uma espécie de manual?

Levitsky - Não acho que seja necessariamente um manual. Os eleitores são muito antiestablishment nas democracias do mundo todo, as elites políticas estão enfraquecendo drasticamente, especialmente por causa das redes sociais e do poder da internet.

É muito mais fácil ser populista hoje do que em meados do século 20.

Levitsky afirma que Trump conseguiu uma 'personalização' sem precedentes do Partido Republicano em torno da sua figura (Getty Images)

Portanto, acho que não se trata tanto de um manual, mas de uma espécie de método para se apresentar como um outsider político, atacando o establishment e o status quo, e depois personalizando o poder. É um conjunto de táticas políticas que não haviam sido muito utilizadas nas últimas décadas nos EUA, mas que vimos funcionando no mundo.

BBC News Mundo - A propósito, você está comparando Trump com presidentes latino-americanos de diferentes ideologias, como Chávez, Bukele, Correa e Fujimori... As divisões tradicionais entre esquerda e direita são irrelevantes neste sentido?

Levitsky - Há populistas de diferentes ideologias. O populismo não é uma coisa de esquerda ou de direita. Continua havendo esquerda e direita, mas os populistas podem aparecer em ambos os lados.

BBC News Mundo - Você também vê semelhanças com os países latino-americanos na forma como a oposição política atua nos EUA para equilibrar o poder do presidente Trump?

Levitsky - É muito difícil se opor a um governo populista autoritário. Muitas vezes, seus opositores têm dificuldades, como vimos na Venezuela, no Peru e no Equador.

Neste sentido, acho que os democratas têm uma certa vantagem. Eles estão em melhor forma, são um partido único que continua viável do ponto de vista eleitoral.

Mas depois da vitória de um populista, a oposição fica sempre estagnada e atordoada, muito insegura sobre o que fazer. É uma experiência humilhante. E, muitas vezes, a oposição leva anos para se recuperar.

Não é de se surpreender que o Partido Democrata tenha chegado a esse estado de choque e atordoamento, mas acredito que ele vai se recuperar mais rapidamente do que outras oposições.

BBC News Mundo - Muitos podem se perguntar se Trump é uma causa ou um sintoma da crise que você vê na democracia dos EUA. O que você diria?

Levitsky - Boa pergunta. Acho que são ambas as coisas.

Definitivamente, é um sintoma em vários aspectos. Mesmo antes de Trump, durante o governo Obama, já estava surgindo dentro do Partido Republicano uma facção populista radicalizada e cada vez mais antidemocrática, o Tea Party, que tinha muitos traços do Maga (acrônimo do movimento trumpista Make America Great Again).

Então isso, para mim, é uma reação mais ampla à transição dos EUA para uma democracia multirracial, que é realmente uma mudança muito drástica. Trump surge a partir disso.

Mas há coisas que Trump fez que nenhum outro político teria feito, como tentar anular os resultados das eleições de 2020. Portanto, há elementos nesta crise que são produto de Trump.

BBC News Mundo - Em uma entrevista que tivemos no início do primeiro mandato de Trump, você disse que o apelo dele para os brancos em geral era menos inclusivo do que o dos populistas latino-americanos que apelam para os pobres em geral.

E que esta distinção tornava difícil para Trump alcançar os altos níveis de apoio que Fujimori, Chávez e Evo Morales tiveram. Esta diferença continua sendo relevante para entender até onde pode chegar o poder de Trump?

Levitsky - Sim. Acho que Trump em 2024 foi mais populista do que em 2016. Sua mensagem antiestablishment e antigovernista alcançou mais eleitores não-brancos. Mas continua sendo principalmente um apelo etnonacionalista.

Levitsky observa semelhanças e diferenças entre Trump e políticos latino-americanos, como Hugo Chávez (Getty Images)

E embora Trump tenha vencido no voto popular, ele obteve 49,8% dos votos. Seu índice médio de aprovação é de 48,5%. Isso é alto para Trump, mas não chega nem perto do que pessoas como Chávez, Fujimori, Correa ou Bukele alcançaram. E ele nunca vai chegar nesse patamar.

BBC News Mundo - Isso significa que Trump não vai ser capaz de fazer coisas que outros presidentes com os quais você o compara foram capazes de fazer?

Levitsky - Correto. Fujimori, Correa e Chávez impuseram unilateralmente novas Constituições. E todos eles, assim como Bukele, conseguiram alterar ou burlar a Constituição para estender seus mandatos.

Não creio que Trump seja capaz de fazer isso. Ele pode abusar do poder, mas não mudar unilateralmente a ordem constitucional.

BBC News Mundo - Na mesma entrevista, perguntei se havia alguma lição que os EUA poderiam tirar do que aconteceu com o populismo na América Latina, e você disse que não tinha uma resposta clara, embora tivesse refletido muito sobre o assunto. Você chegou a uma conclusão oito anos depois?

Levitsky - Olha, não é muito feliz, mas uma lição que aprendemos ao observar as experiências populistas na América Latina, por exemplo, com Perón, Chávez, Correa, Fujimori, Bukele e Obrador, é que é realmente difícil ser oposição a um presidente populista bem-sucedido.

As derrotas rápidas de populistas que vemos costumam ser conduzidas pelos militares, e não queremos isso.

Então, nos casos do populismo latino-americano, não vemos muitas lições positivas para a estratégia da oposição.

Acho que o Brasil oferece algumas lições úteis, sem ser tanto um caso de populismo. Bolsonaro é um político de direita radical que nunca teve apoio generalizado.

Mas a forma como grande parte da sociedade civil respondeu à ameaça representada por Bolsonaro, a forma como até os políticos de direita aceitaram os resultados das eleições de 2022, e a forma como o sistema judicial, com todas as suas falhas e possíveis excessos, e as instituições brasileiras responderam a um ataque autoritário, responsabilizando política e judicialmente Bolsonaro, oferecem muito para os EUA aprenderem.

As instituições do Brasil responderam de forma mais eficaz do que as instituições dos EUA a Trump.

Gerardo Lissardy, originalmente para a BBC News Mundo, em 07.03.25

  • Role,BBC News Mundo

Nenhum comentário: