quarta-feira, 19 de março de 2025

Cláudio Lembo, o liberal que incomodou a ‘elite branca’

 Ex-governador de São Paulo surpreendeu seus pares ao criticar a classe dominante

Ex-governador de São Paulo, Claudio Lembo — Foto: Claudio Belli/Valo

Cláudio Lembo havia acabado de assumir o governo de São Paulo quando o PCC deixou o estado de joelhos. A onda de atentados matou mais de 50 agentes de segurança. Num revide sangrento, homens encapuzados executaram mais de 500 civis.

A explosão de violência fez as atenções se voltarem para o ex-vice de Geraldo Alckmin, que havia deixado o cargo para concorrer ao Planalto. Com longa trajetória em partidos de direita, Lembo surpreendeu ao criticar o “cinismo nacional” e cobrar a responsabilidade das elites.

“Temos uma burguesia muito má, uma minoria branca muito perversa”, disse, em entrevista à Folha de S.Paulo. “A bolsa da burguesia vai ter que ser aberta para poder sustentar a miséria social brasileira”, prosseguiu.

O novo governador afirmou que o Brasil ainda era um país dividido entre casa grande e senzala. “Quando os escravos foram libertados, quem recebeu indenização foi o senhor, e não os libertos, como aconteceu nos EUA. Então é um país cínico. É disso que nós temos que ter consciência”, advertiu.

As declarações deixaram em polvorosa seus colegas de PFL. Exasperado, o senador Antonio Carlos Magalhães disse que Lembo tinha “cara de burro”. O ofendido não se intimidou. “Isso é típico de senhor do engenho. Tudo o que eu disse sobre a burguesia branca ficou caracterizado na frase dele”, devolveu.

Lembo já tinha uma longa folha de serviços prestados ao conservadorismo. Havia passado pela Arena, sigla de sustentação da ditadura, e colaborado com governos de Jânio Quadros e Paulo Maluf.

Não simpatizava com as bandeiras da esquerda, mas nunca abriu mão de sua independência. Em 1979, quase foi expulso do partido por se encontrar com Leonel Brizola. Arquirrival dos militares, o líder trabalhista voltava do exílio para retomar a carreira política no Brasil.

A breve gestão de Lembo no Palácio dos Bandeirantes ficou marcada pelos massacres de maio de 2006. Nos anos seguintes, sua língua ferina continuaria a incomodar os aliados.

Quando João Doria reuniu artistas e socialites no movimento “Cansei”, de oposição ao governo Lula, Lembo disse que aquilo era coisa da “elite branca”. “Deve ter começado em Campos do Jordão”, debochou. Quando a garotada da periferia começou a promover “rolezinhos” nos shoppings paulistas, ele ironizou as senhoras que exigiam providências da PM. “Isso não é problema de polícia. Os jovens não estão fazendo nada de errado”, afirmou.

No fim de 2015, procurei o ex-governador para saber o que ele pensava dos protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff. Mais uma vez, ele foi na contramão de sua turma.

“A elite branca está furiosa”, ironizou, referindo-se aos panelaços contra o governo petista. “A lei exige um crime de responsabilidade, o que não vejo. Ninguém diz que a presidente enriqueceu. Sua honra está preservada”, sentenciou.

Lembo estava filiado ao PSD de Gilberto Kassab, mas não exercia mais funções públicas. Autor de livros como “O testemunho de um liberal” (1979) e “A opção liberal” (1985), continuava a se descrever como um conservador.

Quando perguntei o que ele dizia a seus pares que buscavam derrubar o governo, ele desconversou: “Estou velho. Não querem mais saber de mim”.

O ex-governador ainda viveria mais uma década. Morreu na madrugada desta quarta-feira, aos 90 anos.

Bernardo Mello Franco, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo online, em 19.03.25.

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