sexta-feira, 7 de março de 2025

Catarina Mina, de escravizada a empreendedora de sucesso

São Luís do Maranhão guarda a história intrigante de uma mulher trazida da África no século 19, que subverteu a mecânica da escravidão ao conquistar liberdade e enriquecer. Mas há controvérsias sobre como isso aconteceu.

Beco Catarina Mina, em São Luís do Maranhão (Foto: Tainã Mansani/DW)

Quando a africana liberta Catarina Mina caminhava pelas ruas de São Luís do Maranhão colonial, a cidade parecia estremecer. Caminhava altiva, sempre sorrindo. Atrás dela, o cortejo de outras africanas, vestidas de renda, ouro no pescoço, nos pulsos, nas orelhas. "Lá vem Catarina Mina com as suas escravas para a festa da padroeira", escreveu um jornalista da época.

Catarina Rosa Pereira de Jesus chegou ao Brasil como escrava da Costa da Mina, região do golfo da Guiné (daí o nome "Mina"). Foi quituteira, comerciante: de escrava de ganho a "mulher de negócios". Comprou sua alforria e fez fortuna com o dinheiro do próprio trabalho, e, segundo dizem, dos favores prestados a comerciantes portugueses da Praia Grande (algo que a historiografia nunca provou).

"Quando encontrei o inventário da Catarina Mina, fiquei surpresa. Essa mulher era riquíssima! O inventário, e depois o testamento, foram os documentos que mais me emocionaram durante as pesquisas sobre a vida dela", contou à DW Brasil a historiadora Iraneide Soares da Silva, que estuda a vida da africana. Embora seja difícil precisar o valor dos seus bens, sabe-se que tinha muito – e o mistério sobre como ela alcançou tal feito intriga estudiosos até hoje.

Trazida para o Brasil no século 19, Catarina Mina continua viva na cidade que adotou, "sempre sorrindo" (Foto: Tainã Mansani/DW)

Testamento generoso

Datado de 1887 e hoje preservado no arquivo público do Tribunal de Justiça do Maranhão, o testamento da ex-escrava revela uma generosidade incomum entre os ricos da época. Mina distribuiu sobrados, casas, vilas e lotes entre comadres, figuras influentes do judiciário e do meio eclesiástico. Mas, acima de tudo, libertou seus escravos e lhes assegurou riqueza – algo raro, pois em geral esses eram repassados como bens.

Os documentos mostram que Catarina Mina acumulou riqueza e criou uma rede de socialização e cooperação entre mulheres libertas durante a escravidão, explica a Iraineide Soares. Nos jornais da época há muitos a anúncios de fugas de mulheres que contavam com redes de apoio, pois, para fugir, precisavam de colaboração externa.

De fato, até hoje circulam em São Luís histórias sobre a vida de Catarina Mina. Elas falam de uma personagem de caráter heroico, que comprava escravos para os libertar. Mas as pesquisas historiográficas revelam que ela também manteve escravos durante a vida.

Quando eles saíam com ela às ruas, andavam bem ornados, mas sempre descalços, explica a historiadora. "Há sempre essa pergunta: 'Como assim? Catarina Mina viveu a escravidão e escravizou?' Minha compreensão é a que, quando existe um escravo numa condição de vida miserável, e você o traz para perto de si para ser tratado com mais humanidade, há um pouco a lógica de trazer para perto para poder libertar de algum modo."

A documentação sobre Mina revela que foi uma das mulheres mais ricas do período, com pecúlios e riqueza, mas que não teve o título de 'senhora dona', um importante símbolo de distinção para mulheres de posse.

"Beco Catarina Mina"

Catarina Mina não teve o reconhecimento oficial para a época, mas fez história. Seu nome ficou em ruas, músicas, marcas de roupas e nas cozinhas da capital maranhense. O assim chamado "Beco Catarina Mina" era o local onde vendia peixes e farinha, e nele se encontra um restaurante que também leva o nome da benfeitora.

Maria de Lourdes, a dona do estabelecimento, ri ao dizer que trabalha muito, mas não tem a liberdade que Catarina Mina conquistou. Para ela, a história de Mina – marcada pela solidariedade e uma mudança incomum de condição social para a época – entrelaça passado e presente, inspirando sua própria vida.

"Quando eu coloquei o nome do restaurante ‘Catarina Mina', comecei uma grande pesquisa. Antes de eu vir para esse beco, ninguém falava sobre ela. Eu já trabalhei muito essa história e divulgo sempre que posso."

Maria de Lourdes tem o restaurante desde 1990. Por muitos anos preservou o testamento de Catarina Mina, mas o entregou para conservação. Segundo ela, a ex-escrava teria falecido por volta dos 35 anos. Ao longo de sua vida, além de comprar a própria alforria, comprava outros escravos e os libertava, incluindo a própria mãe.

A pesquisa revela que Mina teve um único filho, chamado Alexandre (embora haja controvérsias se foi realmente filho, afilhado ou se faleceu ao nascer). A africana também teria se casado e, num gesto significativo de ascensão social, adquirido para seu esposo uma patente de alferes, um posto de oficial subalterno do Exército, intermediário entre tenente e aspirante a oficial.

Dona do Bar e Restaurante Catarina Mina preserva a memória da homenageada (Foto:Tainã Mansani/DW)

Como Mina enriqueceu?

Uma das questões mais intrigantes sobre a história dessa personagem é por que Catarina conseguiu enriquecer e outros escravos, não? Segundo historiadores, havia uma diferença entre a escravidão urbana (contexto em que Mina viveu) e a rural, em que era muito mais difícil qualquer ascensão social, pois escravos raramente tinham alguma remuneração.

No Brasil colonial e no Império, escravos de ganho, como Mina, trabalhavam nas ruas sob ordens de seus senhores, devendo entregar uma quantia diária estipulada. Essa prática surgiu no século 17, mas só no Império passou a ser mais controlada pelo Estado. Esse trabalho lhes permitia, em algumas circunstâncias, acumular algum valor excedente, que poderia ser guardado para negociar a compra da alforria e acumular algum recurso.

Diferentemente dos escravizados nas fazendas, os escravos de ganho desempenhavam atividades urbanas remuneradas, como carregadores, doceiras ou faziam pequenos reparos. As mulheres trabalhavam dentro das casas e podiam sair para vender. E as pesquisas mostram que Catarina foi além, ao construir, à sua própria maneira, negócios que lhe permitiram acumular muitos bens.

O caráter de Catarina Mina chama atenção nos documentos seu respeito, explica a historiadora Iraneide Soares. Como quituteira, estabeleceu sua rede de sociabilidade que manteve até a ascensão social. Foi uma personagem bem relacionada naquele contexto histórico, o que explicaria, em grande parte, o seu mérito.

Também o historiador Manolo Florentino, um dos maiores nomes nas pesquisas sobre os escravos de ganho no Brasil, mostrou, com estudos principalmente sobre o Rio de Janeiro, que os escravizados eram vítimas, mas também tinham ação, relevância e protagonismo como sujeitos humanos.

Florentino explicou numa entrevista em 2012: "Sobretudo em países como o Brasil, estratégias que levavam à formação de famílias e à adoção do trabalho por tarefas foram fundamentais para a acumulação de pecúlio e a obtenção da alforria [...]. Sabemos terem sido altas as taxas anuais de alforrias, sobretudo nas cidades, com amplo predomínio de manumissões [ato de libertar um escravizado]."

Outras histórias de ascensão social

Mas Catarina Mina não foi a única ex-escrava bem-sucedida no Brasil colônia, embora essa não fosse a realidade mais comum em todo contexto da escravidão. Cem histórias semelhantes de mulheres negras escravizadas com trajetórias excepcionais para o período estão no livro Dicionário biográfico: Histórias entrelaçadas de mulheres afrodiaspóricas (Editora Malê, 2024).

Adelina, a Charuteira, filha de uma escravizada e de um senhor empobrecido, tornou-se vendedora de charutos em São Luís. Frequentando o Largo do Carmo, entrou em contato com estudantes abolicionistas e passou a atuar como informante, alertando sobre investidas policiais e auxiliando na fuga de escravizados, contribuindo para o movimento abolicionista.

Para além do Maranhão, no Piauí do século 18, Esperança Garcia não se tornou advogada formalmente, mas é reconhecida simbolicamente pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) como primeira advogada do país. Mulher negra e escravizada, ela ficou conhecida por escrever uma carta-petição ao governador da capitania do Piauí, em 1770, denunciando os maus-tratos que sofria e pedindo melhores condições para si e outras escravizadas.

Esse documento foi considerado por juristas e historiadores um dos primeiros registros de petição por direitos no Brasil. Em reconhecimento a seu ato pioneiro na luta por justiça, a OAB do Piauí concedeu-lhe, em 2017, o título honorário de primeira advogada do estado.

Segundo a pesquisadora Iraneide Soares, a ausência de histórias como essas nos livros escolares implica que "a historiografia brasileira tem muito a avançar nas pesquisas sobre essas personagens que aparecem como sujeitos ativos e dinâmicas de vida diferentes, na história da escravidão".

Tainã Mansani, a autora, é Jornalista. Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 07.03.25

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