quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Trump, o pombo enxadrista

Ao punir aliados como se fossem inimigos, presidente americano bagunça o tabuleiro das relações internacionais. Será difícil confiar nos EUA enquanto essa doutrina errática persistir

O presidente dos EUA, Donald Trump, se autoproclama o “homem tarifa” e diz que “tarifa” é a palavra mais bela do dicionário. Analistas ainda nutriam esperanças de que essas invectivas ficassem contidas na retórica e o emprego das tarifas seguisse o padrão mais moderado do primeiro mandato. Esse otimismo foi dizimado quando Trump abriu fogo não só contra os três principais parceiros comerciais dos EUA, mas mais agressivamente contra os dois vizinhos e aliados: Trump prometeu aumento de 10% para as tarifas da China e tarifas de 25% para o México e o Canadá. Logo depois, suspendeu temporariamente as taxas sobre os vizinhos, mas a mensagem foi clara: as tarifas serão mais agressivas e generalizadas, e ninguém está seguro. Não são só batalhas comerciais contra este ou aquele país, mas uma guerra contra o comércio global.

Para Trump, as tarifas servem a múltiplos objetivos econômicos: restaurar a indústria nacional, gerar receitas e reduzir o déficit comercial. Mas dois séculos de experiência econômica demonstram que, na melhor das hipóteses, seu efeito é inócuo e, na pior (e mais provável), contraproducente. E os danos exacerbarão os problemas econômicos. Uma vez que as tarifas não serão empregadas só com fins comerciais, mas como ferramentas para coagir países a cumprir todo tipo de demanda, elas alienarão aliados. E, uma vez que são aplicadas por meio de expedientes legalmente questionáveis, degradarão o Estado de Direito nos EUA.

Algumas indústrias se beneficiarão no curto prazo, mas isso não compensará os custos repassados aos demais consumidores e produtores, sobretudo aos consumidores mais pobres e produtores menores, que, em geral, dependem mais de produtos importados.

Mesmo majoradas, as tarifas responderão por uma fração marginal das receitas públicas e não abrirão muito espaço para reduzir impostos ou a dívida pública. A balança comercial é menos afetada por políticas comerciais do que por fatores macroeconômicos, como poupança, padrões de investimento, valor da moeda ou políticas fiscais. De resto, o aumento das alíquotas tende a ser anulado pela redução das importações. E, se as importações diminuirão, as exportações também diminuirão, primeiro, porque um dólar mais forte tornará os produtos americanos mais caros para outros países, depois, pelas retaliações que os alvejados se verão obrigados a impor.

Pagando mais pelos melhores produtos que o mundo oferece, a indústria americana ficará menos competitiva. Para piorar, o protecionismo estimula o clientelismo e desencoraja a inovação, resultando em menos empregos, renda, receitas e crescimento econômico.

Se o impacto sobre a economia americana é negativo, sobre os países atingidos é ainda mais. Trump aposta nessa assimetria para conquistar outras metas, como obrigar o México e o Canadá a coibir a imigração ou o tráfico de drogas. Mas um México mais pobre só agravará esses problemas, enquanto a participação do Canadá neles é irrisória. Os dois vizinhos têm uma economia altamente integrada aos EUA por tratados de livre comércio. Além dos danos econômicos para todos, a mensagem aos aliados dos EUA é de que o país não é confiável.

A destruição da rede de alianças ocidentais é um sonho tornado realidade para adversários como China e Rússia. Economicamente, a China perderá mais com um desacoplamento comercial com os EUA, mas isso a obrigará a buscar estratégias independentes para criar novas tecnologias (como já acontece com o 5G ou a inteligência artificial). Uma China menos interdependente tenderá a aumentar, não a diminuir, suas políticas totalitárias, agravando riscos geopolíticos que as tarifas de Washington supõem afastar e facilitando alianças de Pequim com países ressentidos com os EUA.

Se há alguma verdade no bordão tipicamente americano de que não há ganho sem dor (“no pain, no gain”), nem por isso toda dor é produtiva. Neste caso, só haverá dor, e nenhum ganho. Economicamente, todos perderão. Geopoliticamente, é como se Trump fosse um pombo enxadrista, que bagunça o tabuleiro e estufa o peito cantando vitória. A ofensiva tarifária degrada a aliança das democracias e fortalece as autocracias. Ela não tornará a “América grande de novo”, só tornará o mundo mais pobre e perigoso.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 05.02.25

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