Sua proposta para Gaza é moralmente ultrajante e impraticável operacionalmente. Ainda que concebida como cortina de fumaça ou tática de negociação, pode desencadear uma catástrofe.
Donald Trump chocou o mundo, de novo, mas desta vez um ponto acima na escala Richter geopolítica. A ideia de varrer 2 milhões de palestinos, apropriar-se de Gaza e transformá-la na “Riviera do Oriente Médio” foi moralmente a mais ultrajante de seu catálogo de ideias moralmente ultrajantes. Ao mesmo tempo, é tão impraticável que faz a anexação do Canadá, da Groenlândia e do Canal do Panamá parecer um negócio trivial. É uma bomba, mas uma bomba de efeito moral.
Os palestinos estão horrorizados; os israelenses estão confusos; os árabes, indignados; os analistas, atônitos. “Todo mundo com quem eu falei ama a ideia dos EUA possuindo aquele pedaço de terra”, disse Trump. Quem? Egito e Jordânia disseram que jamais receberão os palestinos. Junto a três países árabes aliados dos EUA, eles assinaram uma declaração alertando que a deportação “empurrará a região para mais tensão, conflito e instabilidade”. A Arábia Saudita reafirmou seu compromisso com um Estado palestino. Mesmo os fundamentalistas israelenses, eufóricos com a possibilidade de uma limpeza étnica, jamais aceitarão um resort americano, por exemplo, numa terra que consideram sua por mandato divino.
O mais estupefaciente na proposta – além de ser um crime contra a humanidade – é que parece minar os objetivos que Trump diz ter para o Oriente Médio, a começar pela manutenção dos Acordos de Abraão entre Israel e aliados árabes, a primeira conquista de Trump na região; a normalização das relações entre Israel e Arábia Saudita; os tratados de paz entre Israel e Egito e Jordânia; a consequente dissuasão do Irã; e a consumação do cessar-fogo com o Hamas. E o que dizer dos americanos que sufragaram seu voto pela promessa de que as aventuras americanas no exterior seriam sepultadas?
Qual pode ser a intenção de Trump? Será uma manobra diversionista ou uma tática de negociação? As duas possibilidades não se excluem.
A provocação pode ser uma distração da opinião pública doméstica ao assalto à burocracia federal. Pode ser também uma boia de salvação para o premiê israelense, Benjamin Netanyahu, e uma cortina de fumaça para ele manobrar o cessar-fogo com o Hamas conforme seu interesse.
Trump pode ter concebido seus planos maximalistas como uma alavanca de negociação. Entre preservar seu controle de Gaza e manter a população palestina lá, o Hamas poderia abdicar da primeira opção. A Arábia Saudita poderia amolecer a sua posição e ceder sua pretensão a um território soberano dos palestinos em troca de sua mera permanência. “Trump está demonstrando pressão máxima contra o Hamas para assustá-los, para que façam concessões reais”, sugeriu o analista político palestino Mkhaimar Abusada ao The New York Times. “Ele também está impondo pressão máxima sobre a região, para que pactuem por menos em troca da normalização com Israel.”
Estas táticas disruptivas podem funcionar, mas também produzir resultados catastróficos. O Hamas está entocado, mas não está morto e detém dezenas de reféns. Diante de uma situação desesperada, pode mandar o cessar-fogo pelos ares. O ultraje dos árabes pode superar o pragmatismo e desencadear retrocessos nas tratativas com Israel. Seja como for, a credibilidade dos EUA com seus parceiros europeus e com o chamado Sul Global se deteriorará alguns graus a mais. Rússia e China terão novas justificativas para tomar territórios como acharem que lhes convêm.
O suposto sonho de Trump é um pesadelo para os palestinos. Após décadas sob o jugo dos terroristas do Hamas, após meses de destruição sob a artilharia de Israel, o deslocamento seria uma nova nakba (“catástrofe”), mais terrível do que aquela experimentada em 1948, quando os palestinos foram forçados a fugir de suas casas nas guerras em torno da criação do Estado judeu. Ainda que Trump realmente queira isso – o que é improvável –, não acontecerá, porque nem os países árabes, nem o povo americano, nem os palestinos o tolerarão. Mas, desde já, sua retórica inflamará mais antissemitismo e antiamericanismo pelo mundo. E, se a reação dos fanáticos do Hamas for ainda mais irracional e truculenta que a sua “proposta”, o sangue estará também nas suas mãos.
Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 08.02.25
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