Abarrotamento do STJ não encontra similar em democracias respeitadas do mundo; chegou a hora de tomar providências e afastar o risco de implosão
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) encerrou 2024 com cifras que impressionam pelo gigantismo e preocupam pelos impactos negativos no desempenho satisfatório de suas funções. Marco inédito, os seus 33 ministros receberam mais de 500 mil processos e proferiram quase 700 mil decisões, aproximadamente uma em quatro minutos e meio.
Cálculo que computa oito horas de todos os dias úteis e não subtrai a duração de sessões presenciais de julgamento, atendimento a advogados, reuniões e outras atividades institucionais. Uma quantidade que supera a soma dos 11 anos iniciais da corte e mostra-se absolutamente incompatível com a capacidade humana de gestão de demanda recursal.
O abarrotamento do STJ não encontra similar em democracias respeitadas do mundo. Ao compará-lo com organismos análogos, a disparidade anual é gritante. Na França, com uma população de 68 milhões e dois tribunais nacionais que, juntos, correspondem ao STJ, as estatísticas são assaz distintas. A Corte de Cassação e o Conselho de Estado, cada qual com algo em torno de 200 ministros ("conseillers"), decidem, em média, de 10 a 20 mil processos. Na Índia, com 1,4 bilhão de habitantes, a Corte Suprema de 34 ministros prolata em torno de mil decisões.
De pronto, já se diga não ser correto atribuir a explosão de feitos no STJ ao recente reconhecimento de novos direitos, em particular a sujeitos antes preteridos. Muito menos advém de uma certa patologia social de litigiosidade compulsiva da grande massa. Saliente-se, ademais, que, ao oposto de outros países, não decorre de carência de pessoal ou meios financeiros, atraso tecnológico, deficiência administrativa, apatia ou baixa operosidade dos seus membros.
A fonte principal da avalanche de recursos acha-se em outro lugar: a transmutação da corte em terceira instância universal, aberta à revisão de toda e qualquer decisão dos 27 Tribunais de Justiça e seis Tribunais Regionais Federais do Brasil.
No presente debate, portanto, impõe-se começar pela reafirmação da "raison d’être" precípua do STJ, ou seja, a uniformização da interpretação da legislação federal nos quatro cantos do Brasil. Dele se espera que cumpra o seu ofício pela fixação de teses —precedentes pacificadores de entendimentos divergentes—, com o objetivo de garantir previsibilidade, isonomia e segurança jurídica à população e às empresas, simplificando a atuação do juiz, estimulando o empreendedorismo e reforçando a coerência do ordenamento jurídico nacional.
Um caos numérico de 500 mil novos recursos nunca foi, nem será, caminho para assegurar justiça, pois, não obstante a maior atenção possível dos julgadores, zelo extremado algum conseguirá evitar a morosidade, imprevisibilidade e discrepância de decisões. E, sabemos, o direito definha em clima de acaso e de jogo de azar. Logo, não fechemos os olhos à inexequibilidade total —pura ficção ou delírio— de ministros do STJ proferirem uma decisão em quatro minutos e meio.
O ato de julgar, por natureza, abomina a precipitação e a superficialidade, exige estudo e ponderação. Numa palavra, oportunidade para pensar. O juiz não é um burocrata a mais, com um carimbo padronizado à mão, nem carrega varinha de condão para, do éter, colher uma decisão adequada.
Que soluções se apresentam para o Superior Tribunal de Justiça? Problemas estruturais reclamam soluções estruturais. Desdenham paliativos, expedientes engenhosos e fórmulas transitórias. Daí que só uma medida vai à raiz da emergência do (anti)sistema recursal do STJ: repor o tribunal às fronteiras de sua gênese, uma instituição destinada a julgar casos de relevância nacional, na linha da emenda constitucional 125/2022.
Confiar em milagres da revolução tecnológica e da automação? Ora, se o ato de julgar resiste ao mecanicismo, nenhuma ferramenta substituirá completamente o julgador. Aumentar o número de ministros? Duplicar? Sairíamos de uma decisão a cada quatro minutos e meio para uma em nove minutos. Decuplicar? Teríamos 333 ministros, com uma decisão a cada 45 minutos.
A crise recursal do STJ prejudica o Brasil. Enfraquece a legitimidade do direito, desampara os cidadãos, afeta a economia e o ambiente dos negócios, corrói as contas públicas. Chegou a hora de acordar e tomar providências imediatas para afastar o risco de implosão do Tribunal da Cidadania.
Antonio Herman Benjamin, o autor deste artigo, é o Presidente do Superior Tribunal de Justiça. Publicado originalmente pela Folha de S. Paulo, em 09.02.25
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