Ou Trump quer abrir um buraco na economia dos EUA, ou está blefando ou não tem a mínima ideia do que está fazendo
Você diz que tem uma solução real.
Bem, você sabe
Todos nós adoraríamos ver o plano.
— “Revolution 1″, The Beatles
Creio que o mais assustador a respeito do que o presidente Donald Trump está fazendo com sua estratégia de tarifas para todos é ele não ter ideia do que está fazendo — nem sobre como a economia mundial funciona, nesse caso. Ele está simplesmente inventando tudo à medida que avança — e todos nós estamos nesse barco.
Não sou contra o uso de tarifas para combater práticas comerciais injustas. Eu apoiei as tarifas de Trump e do ex-presidente Joe Biden sobre a China. E se tudo isso não passa de um blefe de Trump para fazer com que outros países nos deem o mesmo acesso que nós damos a eles, por mim, tudo bem.
Mas Trump nunca é claro: algumas vezes ele diz que suas tarifas são para aumentar a receita, depois que elas servirão para forçar todos a investir nos Estados Unidos, outras vezes afirma que o objetivo é manter o fentanil fora.
Mas qual é a dele? Como cantavam Os Beatles, eu adoraria ver o plano. Tipo: É assim que achamos que a economia global opera hoje; portanto, para fortalecer os EUA, é aqui que precisamos cortar gastos, impor tarifas e investir — e é por isso que estamos fazendo X, Y ou Z.
Seria uma liderança real. Mas em vez disso Trump está ameaçando impor tarifas a rivais e aliados, sem nenhuma explicação satisfatória do porquê alguns países estão sendo tarifados e outros não, e sem se importar sobre como essas tarifas podem prejudicar a indústria e os consumidores americanos. É uma bagunça total.
Conforme apontou o presidente-executivo da Ford Motor, Jim Farley, corajosamente (comparado a outros presidentes-executivos): “Sejamos realmente honestos: a longo prazo, uma tarifa de 25% nas fronteiras do México e do Canadá abriria um buraco jamais visto na indústria dos EUA”.
Então, ou Trump quer abrir esse buraco ou está blefando ou não tem a mínima ideia do que está fazendo. Se a última hipótese for a verdadeira, Trump vai passar por um curso intensivo a respeito de duras realidades da economia global — como ela realmente é, não como ele a imagina.
Meu tutor favorito nesses assuntos é o economista Eric Beinhocker, da Universidade de Oxford, que chamou minha atenção quando conversávamos, outro dia, com a seguinte — e simples — fala: “Nenhum país do mundo é capaz de fabricar um iPhone sozinho”.
Pensem nessa frase por um instante. Não há um único país ou empresa na Terra que tenha todo o conhecimento, todas as peças, todas as capacidades de fabricação nem todas as matérias-primas que entram nesse dispositivo em seu bolso chamado iPhone. A Apple diz que monta seus iPhones, seus computadores e seus relógios com a ajuda de “milhares de empresas e milhões de pessoas, em mais de 50 países e regiões” que contribuem com “nossas habilidades, nossos talentos e nossos esforços para ajudar a construir, entregar, consertar e reciclar nossos produtos”.
Estamos falando de um enorme ecossistema de rede necessário para tornar esse telefone tão legal, tão inteligente e tão barato. E esse é o ponto de Beinhocker: a grande diferença entre a era em que estamos agora e aquela em que Trump pensa estar vivendo, é que hoje não é mais “a economia, estúpido”. Essa foi a era Bill Clinton. Hoje, “são os ecossistemas, estúpido”.
Ecossistemas? Ouça um pouco Beinhocker, que também é diretor-executivo do Institute for New Economic Thinking, na Oxford Martin School. No mundo real, argumenta ele, “Não existe mais uma economia americana que você possa identificar de forma real e tangível. Existe apenas essa ficção contábil que chamamos de PIB americano”. Sem dúvida, afirma ele, “Existem interesses americanos na economia. Existem trabalhadores americanos. Existem consumidores americanos. Existem empresas sediadas nos EUA. Mas não existe uma economia americana nesse sentido isolado”.
Os velhos tempos, acrescenta ele, “quando você fazia vinho e eu fazia queijo, e você tinha tudo o que precisava para fazer vinho e eu tinha tudo o que precisava para fazer queijo e então nós negociávamos um com o outro — o que nos melhorava a vida, conforme ensinou Adam Smith — esses dias já se acabaram há muito”. Exceto na cabeça de Trump.
Em vez disso, existe uma rede global de “ecossistemas” comerciais, de fabricação, serviços e negociação, explica Beinhocker. “Existe um ecossistema de automóveis. Existe um ecossistema de IA. Existe um ecossistema de smartphones. Existe um ecossistema de desenvolvimento de medicamentos. Existe um ecossistema de fabricação de chips.” E as pessoas, os componentes e o conhecimento que conformam esses ecossistemas se movem de um lado para o outro entre muitas economias.
Conforme observou a NPR numa reportagem recente sobre a indústria automobilística, “as montadoras construíram uma vasta e complicada cadeia de fornecimento que abrange toda a América do Norte, com peças atravessando fronteiras durante todo o processo de fabricação de automóveis. (…) Algumas peças cruzam fronteiras várias vezes — como, digamos, um fio que é fabricado nos EUA, enviado para o México para ser integrado a um grupo de cabos e, em seguida, volta aos EUA para ser instalado em um componente maior de um carro, como um assento”.
Trump simplesmente ignora isso tudo. Ele disse a repórteres que os EUA não dependem do Canadá. “Não precisamos deles para fazer nossos carros”, afirmou ele.
Na verdade, nós precisamos sim deles. E graças a Deus por isso. Isso nos permite não apenas tornar os carros mais baratos, mas também melhores. Tudo o que um Modelo T fez foi nos levar de um ponto a outro mais rapidamente do que um cavalo, mas os carros de hoje oferecem ar-condicionado quente ou frio e entretenimento via internet e satélites. Eles navegam para você, eles até dirigem para você — e são muito mais seguros. Quando somos capazes de combinar conhecimentos e componentes complexos para resolver problemas complexos, nossa qualidade de vida dispara.
Mas eis a questão: não é mais possível fazer coisas complexas sozinhos; é complexo demais.
Em um ensaio de 2021, publicado no website da Escola de Saúde Pública de Yale, Swati Gupta, diretora para doenças infecciosas emergentes da IAVI, uma organização de pesquisa científica sem fins lucrativos, explicou como as vacinas de mRNA contra a covid-19 foram desenvolvidas em tempo recorde:
“Vacinas tradicionalmente levam de 10 a 20 anos para serem desenvolvidas, e os custos de pesquisas e testes podem facilmente chegar a bilhões de dólares. Então, a pergunta natural após a pandemia de covid-19 é: como as vacinas atualmente disponíveis foram desenvolvidas tão rapidamente? (…) Houve uma colaboração global sem precedentes, realizada por meio de parcerias coordenadas entre governos, indústrias, organizações doadoras, organizações sem fins lucrativos e a academia. (…) Somente agindo dessa maneira nós teríamos alcançado o que foi visto no ano passado, pois nenhum grupo isolado poderia ter feito isso sozinho.”
O mesmo vale hoje para os microchips mais avançados. Agora eles são fabricados por um ecossistema global: a AMD, a Qualcomm, a Intel, a Apple e a Nvidia se destacam no design dos chips. A Synopsys e a Cadence criam ferramentas e softwares sofisticados de design auxiliado por computação nos quais os fabricantes de chips elaboram realmente suas ideias mais recentes. A Applied Materials cria e modifica os materiais para forjar bilhões de transistores e fios de conexão nos chips. A ASML, uma empresa holandesa, fornece as ferramentas de litografia em parceria com, entre outros, a Carl Zeiss SMT, uma empresa alemã especializada em lentes ópticas, que desenha os estênceis nas pastilhas de silício desses projetos. A Lam Research, a KLA e empresas da Coreia do Sul, do Japão e de Taiwan também desempenham papéis importantes nessa coalizão.
Quanto mais ultrapassamos limites da física e da ciência dos materiais para enfiar mais transistores em um chip, menos uma só empresa ou um só país pode se destacar em todas as partes do processo de design e fabricação. Todo o ecossistema global é necessário.
No Dia de Natal de 2021, eu despertei às 7h20 para assistir o lançamento do Telescópio Espacial James Webb, que vasculha profundamente o espaço sideral. De acordo com a NASA, “milhares de cientistas, engenheiros e técnicos qualificados”, de 309 universidades, laboratórios nacionais e empresas, principalmente nos EUA, Canadá e Europa, “colaboraram no projeto, na construção, nos testes, na integração, no lançamento, no comissionamento e nas operações do Webb”.
Adam Smith identificou famosamente a divisão do trabalho, e isso sem dúvida é importante — nós somos capazes de fabricar mais alfinetes com menos trabalhadores se dividirmos o trabalho corretamente. “Isso foi ótimo”, observa Beinhocker. “Mas o motor mais poderoso é a divisão do conhecimento, o que é necessário para fabricar coisas mais complexas do que alfinetes. Nós temos de nos valer da divisão do conhecimento, da divisão da expertise.”
Se dermos um passo atrás e considerarmos o grande arco da história da economia, explica Beinhocker, “a história é realmente de uma expansão de nossas redes de cooperação para utilizar e compartilhar conhecimento para fabricar produtos e serviços mais complexos, que nos conferem padrões de vida cada vez mais elevados. E se você não fizer parte desses ecossistemas, seu país não prosperará.”
E a confiança é o ingrediente essencial que faz esses ecossistemas funcionarem e crescerem, acrescenta Beinhocker. A confiança é a cola e a graxa. A confiança fixa laços de cooperação e ao mesmo tempo lubrifica fluxos de pessoas, produtos, capitais e ideias entre os países. Sem confiança os ecossistemas começam a ruir.
A confiança, no entanto, é erguida por regras boas e relações saudáveis, e Trump está pisoteando ambas. O resultado: se seguir nesse caminho, Trump tornará os EUA e o mundo mais pobres. Senhor presidente, faça sua lição de casa.
Thomas Friedman, o autor deste artigo, ganhador de vários Prêmios Pullitzer, é colunista do New York Times, especialista em relações internacionais. Publicado em língua portuguesa n' O Estado de S. Paulo, em 20.02.25, em tradução de Guilherme Russo.
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