Para a filósofa, diferente de mentiras tradicionais que ocultavam segredos, as modernas distorcem fatos conhecidos
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, durante discurso no Capitólio - Ting Shen - 6.fev.25/AFP
Quando, pela primeira vez, Donald Trump assumiu a presidência dos Estados Unidos, muitos recorreram à leitura de Hannah Arendt para tentar compreender o que estava acontecendo na política americana.
Foi assim que "Origens do Totalitarismo" passou a figurar nas listas de livros mais vendidos de lá, e que trechos dessa obra passaram a ser compartilhados nas redes sociais, motivando debates sobre as consequências políticas da solidão.
Outro texto de Arendt que também despertou o interesse dos leitores, e que merece ser relido no contexto do retorno de Trump à Casa Branca, foi o ensaio "Verdade e Política".
Inspirado na controvérsia desencadeada pela publicação de "Eichmann em Jerusalém: Um Relato Sobre a Banalidade do Mal", quando o testemunho de Arendt sobre o caso Eichmann foi distorcido, "Verdade e Política" propõe uma reflexão sobre o lugar da verdade —principalmente do que a autora chama de verdade factual— no âmbito público, frisando tanto a sua relevância para a preservação da realidade que compartilhamos com outros seres humanos, como a sua fragilidade ante o poder político.
No ensaio, Arendt comenta que verdade e política nunca mantiveram uma boa relação. Assim, ela ressalta, não é de se surpreender que sempre tenhamos visto as mentiras como "ferramentas necessárias e justificáveis ao ofício não só do político ou do demagogo, como também do estadista".
Segundo Arendt, as verdades factuais estão sempre relacionadas a outras pessoas e fazem referência a eventos dos quais muitos participaram. Consequentemente, para que tomemos conhecimento delas, precisamos dos relatos das testemunhas e da sua comprovação. Isso, por sua vez, faz com que as verdades factuais sejam caracterizadas por um elemento de contingência. É esse elemento que faz com que tais verdades sejam especialmente frágeis, pois quando a maioria das pessoas desacredita de um fato, ele corre o risco de perder a sua relevância política.
Arendt também destaca a diferença entre as mentiras políticas tradicionais e as suas equivalentes modernas. Para ela, as mentiras tradicionais tinham por alvo um inimigo específico e costumavam se referir tanto a segredos que jamais deveriam vir a público quanto a intenções que talvez nunca viessem a se realizar. Já as mentiras modernas lidam com fatos conhecidos, tendo por objetivo iludir a todos, incluindo os próprios mentirosos.
"Isso é óbvio no caso em que a história é reescrita sob os olhos daqueles que a testemunharam, mas é igualmente verdadeiro na criação de imagens de toda espécie, em que todo fato conhecido e estabelecido pode do mesmo modo ser negado ou negligenciado caso possa vir a prejudicar a imagem."
Arendt exemplifica esse tipo de mentira ao mencionar a ausência proposital do nome de Trotsky nos antigos compêndios soviéticos sobre a história da Revolução Russa: "Quando Trotsky escutou que nunca desempenhara nenhum papel na Revolução Russa, deve ter tomado consciência de que sua sentença de morte fora assinada (...) Em outras palavras, a diferença entre a mentira tradicional e a moderna acarretará, na maior parte das vezes, a diferença entre ocultar e destruir".
Mas, como questiona a própria Arendt, será mesmo que a verdade é essencialmente impotente diante do poder? Não exatamente, pois aqui vale a pena enfatizar que, embora o poder atente contra a verdade, ainda assim, precisa dela para se manter. Afinal, segundo Arendt, nada se sustenta por muito tempo na ausência da verdade: "Ela é o solo sobre o qual nos colocamos de pé e o céu que se estende acima de nós".
Juliana de Albuquerque, a autora deste artigo, é escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 09.02.25
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