quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Como a vitória de Trump me fez voltar ao clássico ‘O Homem Que Matou o Facínora’, de John Ford

Os dilemas deste nosso mundo interconectado exigem o ideal de preservá-lo. A mentira, o negacionismo e a hipocrisia não podem ser adotados como valores

Cena de 'O Homem que Matou o Facínora'. Foto: Paramount Pictures/Divulgação

Quando Joe Biden e Kamala Harris venceram a eleição, revivi um filme de Frank Capra. Testemunhava o triunfo do bom senso. Nos filmes de Capra, a igualdade e a liberdade dos comuns vencem a arrogância e a sovinice dos ricos. A vitória reiterava a fé na democracia como um regime político cuja diferença está em periodicamente colocar-se em crise.

A vida imita a arte e a arte imita a vida. A vitória de Biden levou-me a Capra e o retorno de Donald Trump a um clássico de John Ford, O Homem Que Matou o Facínora. Um drama fabricado pela permanente batalha da lei que vale para todos, contra a cupidez particularista das violentas ambições de Liberty Valance.

O filme é famoso pela tese que o explica: “Quando a lenda vira fato, imprima-se a lenda!”. Ou seja: as confusões e as incertezas da realidade requerem o mito e o ideal. Os dilemas deste nosso mundo interconectado exigem o ideal de preservá-lo. A mentira, o negacionismo e a hipocrisia não podem ser adotados como valores. A mentira nos acompanha. É um mal permanente, mas não pode ser de modo algum estimulado e adotado como uma arte, como ocorre na política brasileira, que se define precisamente pela “nobre arte” de enganar os ignorantes e os trouxas numa castração eleitoral.

A vitória de Trump e sua fúria autocrática, sustentada por um narcisismo patológico e posta em prática num frenesi de decretos presidenciais que nos EUA têm excepcionalidade, nos obriga a recordar o elo entre ideais e fatos. E, em paralelo, constatar como o mundo globalizado exibe complexidades e desafios justamente porque hoje sabemos demais sobre os países-modelo. Como um carro desgovernado, temos mais fatos do que capacidade para compreendê-los. Duvidando, negando e descartando ideais o desumano triunfa e engloba os valores que asseguravam rumos e contribuíam para distinguir o certo relativo do errado absoluto.

No filme, o cruel malfeitor Liberty Valance é morto por um advogado seguro de que o crime (esse particularismo que justifica os desejos do criminoso) não pode continuar compensando. Não desejo mortes, mas espero que a fraude, a arrogância e o abuso vingativo contra o espírito americano sejam postos nos seus devidos lugares – tal como no lendário filme.

Mas é claro que perdi!

Roberto DaMatta, o  autor deste artigo, é antropólogo. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.02.25

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