segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Do jornalismo ao entretenimento

Um mundo sem jornalismo será um mundo sem democracia. E também sem liberalismo.

Elon Musk comemora durante discurso feito por Donald Trump um dia antes da posse (Alex Brandon / AP, 19.01.25)

Entendimento

Quase ninguém mais quer saber de buscar termos de convivência. Quase ninguém acha que precisa

Em outubro de 2024, o Instituto Gallup, dos Estados Unidos, publicou mais uma pesquisa sobre a credibilidade dos meios de comunicação na sociedade americana. Os resultados não foram bons: o prestígio da imprensa nunca esteve tão baixo. Apenas 31% das pessoas disseram ter confiança “grande” (“great deal”) ou “razoável” (“fair amount”) na maneira como jornais, televisão e rádio reportam os acontecimentos. É a pior marca já registrada. (https://news.gallup.com/poll/65 1977/americans-trust-mediaremains-trend-low.aspx.)

O êxodo é muito maior na direita do que na esquerda. Entre os adeptos do Partido Republicano, hoje um reduto do trumpismo galopante, somente 12% declararam confiar em órgãos de imprensa (eram 20% em 2018), ante 54% nas hostes do Partido Democrata (estes eram quase 80% em 2018). Até os anos 2000, não havia tanta distância entre um polo e outro: ambos se situavam no mesmo patamar, em torno dos 50%. Agora, o cenário é mais crispado.

No Brasil, a paisagem é quase idêntica. As facções que cerraram fileiras com o bolsonarismo abominam os repórteres e seus periódicos. Seus porta-vozes elogiam torturadores, execram a ciência, caluniam a universidade, hostilizam as artes, insultam a justiça e, last but not least, ofendem sistematicamente os jornalistas – e as jornalistas, de preferência.

Em todos os continentes, aumentam as multidões que aderem à onda anti-imprensa. Essas legiões não fazem mais distinções entre informação e propaganda, não têm a menor ideia do que separa o juízo de fato do juízo de valor e não dedicam nenhum respeito à verdade factual. Não raro, preferem abertamente a mentira.

Em resumo, o esvaziamento da confiança na imprensa é apenas a ponta do iceberg. Por baixo, prospera o triunfo da mentira, graças ao trabalho escravo de milhões de voluntários que espalham falsidades. Podemos comprovar o fenômeno diariamente pelos grupos de WhatsApp, especialmente os grupos de família e de turmas de amigos, que se tornaram uma estratégia dos agentes da extrema direita. Os tios e as tias do Zap, embora pacóvios, não são inocentes inúteis – eles sabem muito bem o que fazem e o que desfazem.

E aí? Como entender o cenário? Por que pessoas que até outro dia levavam uma vida pacata passaram a disseminar engambelações em período integral?

Em parte, as causas podem estar relacionadas à carência afetiva: quem posta sandices nas redes sociais suplica por elogios de meia dúzia de pares igualmente extremistas. De outra parte, é possível que a adesão à escalada desinformativa funcione como um jogo viciante, que gera dependência severa: os que se deixaram acometer dessa compulsão não conseguem parar e, para alimentar o vício, aceitam trabalhar de graça para as organizações antidemocráticas.

O que parece estar em marcha é uma crise epistêmica de enormes proporções. Os métodos de que dispúnhamos para produzir conhecimento sobre a realidade dão sinais de fadiga, porque perdem praticantes e interlocutores. A polarização, ou seja, a cisão que partiu ao meio a sociedade dita ocidental, mina as formas abstratas pelas quais interpretávamos coletivamente o mundo. O estatuto da verdade factual, que já foi o alicerce do melhor jornalismo que tivemos, cai em descrédito.

Só assim podemos entender por que grupos que plantam seus pés sobre o mesmo pedaço de chão, dentro de um mesmo país, habitam mundos imaginários tão díspares. O diálogo racional sobre os fatos deixa de ser possível entre esses grupos. Pior: deixa de ser desejável. Quase ninguém mais quer saber de buscar termos de entendimento ou de convivência. Quase ninguém acha que precisa. E, se o diálogo racional já não tem serventia para fazer pontes entre as “bolhas”, a imprensa não tem mesmo por onde escapar: é convidada a se retirar, como se fosse uma pregação anacrônica ou uma tecnologia ultrapassada, mais ou menos como a bússola e o astrolábio, que caíram em desuso depois da invenção dos dispositivos de georreferenciamento via satélite.

LUZES, OBSCURANTISMO. Foi no calor das revoluções liberais do final do século 18 que a imprensa entrou em cena. A ideia de que a sociedade precisaria contar com uma instituição não estatal para criticar publicamente o poder nasceu do liberalismo insurrecional, não nasceu da democracia. O substantivo “democracia” mal aparecia nos panfletos quando a liberdade de imprensa foi inventada.

Naquela fase, os redatores das folhas públicas eram ativistas. Eles não tinham a menor preocupação com objetividade, com reportagem precisa, com ouvir os dois lados de um debate. Suas finalidades eram conquistar a simpatia da incipiente opinião pública e pressionar o soberano. Ser jornalista era ser militante.

Foi só ao longo dos séculos 19 e 20 que as duas práticas se diferenciaram. À medida que o ordenamento social se modificava e que as liberdades dos negociantes cediam espaço para os direitos dos que não eram donos de riquezas, as causas do liberalismo passaram a ter que negociar com as demandas, agora, sim, da democracia em construção. A liberdade de imprensa deixava de ser entendida como uma prerrogativa burguesa e passou a ser vista como um direito da sociedade inteira. O direito à informação do público aflorou. A instituição da imprensa, sem abdicar de seu espírito crítico de origem liberal, assumiu o tríplice encargo de (1) fiscalizar as autoridades, (2) informar a sociedade com independência e (3) mediar o debate público.

Na primeira metade do século 19, as redações começaram a se profissionalizar. Os pesquisadores Michael Schudson e Leonard Downie Jr., no ensaio A Reconstrução do Jornalismo Americano, publicado na Columbia Journalism Review, em 2009, anotaram que, nos Estados Unidos, somente por volta dos anos 1820 os diários começaram a contratar profissionais regularmente remunerados. Logo adiante, a notícia bem apurada virou mercadoria e, acima disso, um bem público. Foi então que as melhores redações, como a do New

York Times, sentiram a necessidade de separar o relato factual (o noticiário) da opinião (os editoriais). Militância e jornalismo se separaram.

No nosso país, o processo foi mais lento. Apenas no início do século 20 o proprietário de O

Estado de S. Paulo, Julio Mesquita, num movimento pioneiro, retirou seu jornal da órbita do Partido Republicano, ao qual sempre fora ligado, e fez dele um título independente, com diversidade de pontos de vista. O Estado se tornou o diário mais sólido, mais influente e mais próspero do Brasil, como narra o historiador Jorge Caldeira em Júlio Mesquita e Seu Tempo (Editora Mameluco, 2015). O dono do Estado morreu, em 1927, aos 64 anos de idade, como um empresário de sucesso, rico, poderoso, invejado e temido, mais ou menos como William Randolph Hearst nos Estados Unidos, apesar das diferenças éticas e estilísticas que os distinguiam.

Nesse período, na Europa, nos Estados Unidos ou no Brasil, os autores das páginas impressas começaram a fazer o caminho de volta: saíam das redações para entrar na política. O próprio Hearst, que se elegeu deputado, concorreu à prefeitura e ao governo de Nova York na primeira década do século 20, mas fracassou. Em 1919, numa conferência famosa, “A política como vocação”, proferida na Universidade de Munique, o sociólogo alemão Max Weber afirmou que o jornalista era o “demagogo” da modernidade. Weber não empregou a palavra “demagogo” no sentido pejorativo, mas para enfatizar que os expoentes da imprensa, como os oradores que discursavam na ágora na Grécia clássica, dispunham dos meios para “conduzir” o povo pela palavra. Os jornais eram o centro da esfera pública e reinavam absolutos.

Então, o negócio do entretenimento, nascido de uma costela dos diários, entrou na briga. A palavra impressa passou a enfrentar a concorrência da imagem e, logo em seguida, da imagem em movimento. Atores de cinema também tiveram a chance de se projetar como líderes potenciais e alguns se deram muito bem. Ronald Reagan, Arnold Schwarzenegger e Donald Trump (protagonista do reality O Aprendiz) que o digam.

Com o advento das tecnologias digitais, o entretenimento teve um impulso ainda mais vigoroso. As redes sociais catapultaram comediantes à posição de chefes de Estado. As plataformas têm sido elogiadas porque turbinaram o fluxo de mensagens e ampliaram absurdamente as audiências, mas elas também trouxeram reveses. As inovações, atreladas à indústria do divertimento, aposentaram os relatos informativos confiáveis e anabolizaram atrações mais excitantes – e menos confiáveis. Os formatos discursivos do show business contaminaram a linguagem da política, de modo irreversível.

Dentro dessas turbulências, as empresas jornalísticas foram pegas no contrapé, sem saber como reagir. Na virada dos anos 1980 para os anos 1990, o jornalista Rodrigo Mesquita, o diretor da Agência Estado, passou a integrar o Media Lab no MIT e alertou para a letargia das redações. Não foi ouvido.

O modo como os jornais foram atropelados pelas inovações digitais pode dar a impressão de que a derrocada foi, antes de tudo, um descompasso tecnológico, mas a história real não é bem essa. O maior impacto da internet e seus passatempos sobre a circulação das notícias bem apuradas e bem editadas não foi meramente tecnológico, assim como não foi apenas econômico. O maior impacto se deu no plano da linguagem, das formas de representação, nas tramas do discurso. A internet e suas técnicas permitiram que o aliciamento emocional, característico do entretenimento, se impusesse sobre o argumento racional. Isso desnutriu o jornalismo, desnaturou a política e abriu caminho para as multidões que hoje têm prazeres gozosos com a difusão da mentira.

Veio assim uma alteração drástica da vida cultural. Os apelos sensuais do entretenimento tomaram para si latifúndios inteiros da linguagem. O pensamento, por sua vez, só conseguiu resistir, se é que foi capaz de resistir, em franjas exíguas. A imprensa, consequentemente, também encolheu. A crise atual do jornalismo só pode ser compreendida no quadro mais amplo da crise epistêmica – e esta, por sua vez, é inseparável da expansão predatória do entretenimento, que redundou na crise agônica da política democrática.

Ninguém ignora que a disputa do poder sempre jogou com a dissimulação e com recursos cênicos. No nosso tempo, entretanto, não é mais a política que instrumentaliza o recurso cênico, mas o recurso cênico que se apossa da política, até o ponto de desfigurá-la. A escala mudou a ordem dos fatores e desorganizou o equilíbrio entre eles. O efeito de circo e a dimensão teatral, que antes entravam na fórmula como um meio para amplificar a razão política, foram convertidos no veio dominante, no qual a retórica política se reduziu a um pálido papel de coadjuvante. O marqueteiro roubou o emprego do ideólogo.

Olhemos em volta. Quem é o narrador: o jornalismo ou a indústria da diversão? Quem é o comentador? Quem é o indutor? Quem dá o tom? A resposta é tão fácil quanto ácida. Quem traz as boas-novas ou as más notícias é o entretenimento, que assumiu de vez o posto que antes cabia às manchetes. O entretenimento, com seus hábitos, seus templos, seus cânones e seu fundamentalismo contente, é quem confere a forma social da religião do nosso tempo. Ele modula as narrativas, rege o debate público, que funciona como um reality show, e subjuga as pobres vozes jornalísticas, às quais só resta a condição humilhante de sair por aí mendigando cliques.

O negócio do entretenimento não fiscaliza o poder. Não precisa. Ele é o poder.

Conclusão? Ora, por favor. A conclusão inexiste. Uma sociedade que se nega a conhecer os fatos não é nada além de uma turba que renuncia à textura da política e se rende ao fanatismo. O que vem a seguir não é bem uma nova ordem, mas uma desordem obscura, sem paralelo com nada que já tenhamos visto. Um mundo sem jornalismo será um mundo sem democracia – e, ironia das ironias, será também um mundo sem liberalismo.

Internet

O maior impacto das inovações digitais se deu no plano da linguagem, das formas de representação, nas tramas do discurso.

Ordem dos fatos

Não é mais a política que instrumentaliza o recurso cênico, mas o recurso cênico que se apossa da política

Eugênio Bucci, o autor deste artigo, é Jornalista. Professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de S. Paulo - USP, articulista do jornal  O Estado de S. Paulo e ECA-USP e membro da Academia Paulista de Letras. Publicado em 16.01.25

Nenhum comentário: