Nem sabemos como explicar a aposta caótica no niilismo que define era de contradição e impotência diante da realidade
Donald Trump em nova Foto Oficial
[RESUMO] Autor reflete sobre a complexidade do cenário atual, marcada por polarização, superficialidade e impotência analítica diante da realidade, critica a fragmentação social, a perda de diálogo democrático e a transformação de antigas bandeiras em discursos contraditórios e sugere que a era digital amplifica histerias e abismos cognitivos.
Advertência: este texto não pretende explicar nada. Seu ponto de partida é a certeza de que ninguém entende o que está acontecendo no mundo hoje, que nossas ferramentas analíticas —sobretudo as autodenominadas críticas— perderam o poder de encontrar na (ir)realidade contemporânea qualquer pista para sua explicação ou, pior, interpretação. Nada faz sentido.
É preciso reconhecer essa impotência (contra a moda dos adjetivos potente, robusto, resiliente e companhia).
No lugar da maioria silenciosa de Baudrillard, o planeta ganhou uma maioria tagarela-rede-social, com inteligência emoticon e —spoiler do que vem abaixo— vontade (sem causa profunda nenhuma, tudo é superficial, tudo vibe sem motivação grave) de que o mundo acabe em crise climática apoteótica/apocalíptica cafona/patrocinada como festa de reality show ou em pirueta suicida de administrador de fundo de investimento em comemoração de privatização na Bolsa de Valores de Orlando.
Claro que não existe Bolsa em Orlando, mas não existir hoje é grife niilista indignação-ostentação, bem ao gosto do mercado. Deixe toda a esperança, quem ler o resto, as palavras a seguir. Fim da advertência.
Aperte os cintos, a partir da próxima segunda (20) temos novo governo nos EUA e o piloto é o Donald. A maioria do povo daquele país assim decidiu, mesmo conhecendo bem em quem votou. Não quero menosprezar a vitória, mas preciso lembrar, em antiquado respeito aos fatos: não foi uma maioria avassaladora. Trump teve 49,9% dos votos, e Kamala Harris, 48,4%.
Fazendo as contas: só 1,5 ponto percentual de diferença. 77.303.573 votaram em quem ganhou; 75.019.257, na candidata democrata. Esses números retratam uma nação rachada entre dois projetos de vida (educação, saúde etc. —até crença ou não em crise climática), que se mostram cada vez mais incompatíveis. Sendo assim, ainda é possível falar em nação?
Cada um dos lados do espectro político vê o outro como pura insanidade, sem possibilidade de diálogo ou de contenção de radicalidades. No primeiro governo Trump, houve até dois impeachments seguidos, que não mudaram coisa alguma. E agora com o Congresso todo dominado pelo Partido Republicano?
O que as 75 milhões de pessoas que votaram em Kamala Harris vão fazer quando, por exemplo (e espero ainda que isso não aconteça), a obrigatoriedade de várias vacinas para crianças for extinta? Um ponto percentual e meio de votos a mais —e o pacto democrático de aceitar o resultado de eleições— pode obrigar tanta gente assim a viver quatro anos sob um governo que ameaça só tomar decisões contra seus princípios mais caros (e contra a ciência etc.)? Ao levantar essas perguntas ingênuas, estou aqui contribuindo para a descrença em ou corrosão de valores democráticos?
Sei que os EUA são também a terra de Thoreau e sua desobediência civil, mas tal multidão desobediente significaria o quê?
Eu também sei: nada disso é exatamente novidade. Clausewitz já denunciava esse tipo de efeitos especiais do processo democrático como "continuação da guerra civil por outros meios".
No clássico "A Retórica da Intransigência", Albert Hirschman resumiu a receita para evitar impasses beligerantes: para haver legitimidade das decisões em uma democracia, as pessoas que participam das deliberações "não devem ter opiniões formadas de maneira plena ou definitiva no início". "Espera-se que se dediquem a um debate significativo, o que quer dizer que devem estar dispostas a modificar as opiniões que tinham anteriormente à luz dos argumentos dos demais participantes, e também como resultado das informações tornadas acessíveis no curso do debate."
Parece simples, mas as dificuldades para que as coisas aconteçam cordialmente são bem conhecidas desde as assembleias atenienses.
Hoje, ficaram frenéticas: todo o mundo chega no debate com opiniões imbecis tão sólidas e imutáveis quanto aquele monolito de "2001: uma Odisseia no Espaço" (olha a IA ali, gente!). Perda de tempo absolutamente desgastante. Certamente as redes sociais têm culpa no cartório, mas imagino que outros fatores estão em jogo, provavelmente alguma radiação alienígena fritando os cérebros humanos com o bug do milênio.
Nunca vi tanta gente esbravejando certezas idiotas ou tantos grupúsculos (coitado do Guattari) usando conspirações para desqualificar de antemão qualquer "nova informação". Passamos a viver saltando entre abismos cognitivos dissonantes.
No Brasil, somos medalha de ouro nessa nova categoria das olimpíadas de ideias. Eu me acreditava o mais esforçado defensor do relativismo, mas tudo tem um limite: descobri que não quero nem conversar com o pessoal formado em medicina (que em tese deveria entender o que é método científico) que receita cloroquina como cura milagrosa para qualquer doença. Se esse tratamento virar regra aprovada por um CRM da vida, quero me mudar para um lugar onde essa regra não seja aplicável.
Repito: chegamos a um ponto em que conversas não adiantam nada, ninguém vai convencer ninguém, não há chance de meio-termo conciliador. Como perguntaria Lênin: o que fazer? Secessão no país: quem quer vacinar crianças vai para o Nordeste (onde, segundo Manuel Bandeira, há brisa) e quem não quer se muda para o edifício residencial mais alto do mundo em Balneário Camboriú (ou vai para a Flórida ou para a Hungria)?
O filósofo especulativo francês Tristan Garcia, um dos pensadores mais interessantes da atualidade (autor inclusive de uma história, em andamento, do sofrimento), também escreve ficção, inclusive algo como ficção científica. No seu romance "7", uma das sete partes (a sexta) fala de um mundo transformado em hemisférios, bolhas hermeticamente fechadas para evitar a entrada de informações das bolhas exteriores.
Começou com a bolha cristã, depois a islâmica e aí disparou: aqui só entra neoanimistas, ali é o hemisfério do "comunismo em um só país", mais adiante o que legaliza o incesto, outro que reconstrói o Japão feudal da Paz Tokugawa e ainda uma cidade grega antiga fortemente militarizada.
Sabemos que há gosto para tudo e as pessoas gostam de viver entre "iguais". Claro que há rachas e a formação de sub-hemisférios com gente descontente. Sectarismo é coisa nossa, comoventemente humana. A fragmentação vai ficando tão intensa e acelerada que a tendência é só restar lobos solitários ou bolhas do eu e meus avatares sozinhos.
Esse separatismo radical seria a única solução para nossos impasses atuais? Pena: sempre simpatizei com gente diferente, que pensa diferente, que me faz pensar diferente do "costume". Mas ficou difícil: a tolerância e a aposta na boa-fé de quem pensa diferente não estão "funcionando" no meio da histeria atual.
Fico até desconfiado de que quem propõe —como cura para tudo— a recusa de qualquer vacina faz isso não por crença, mas por pura implicância ou diversão, estilo pagode só para contrariar. Gente de niilismo absoluto, mas envergonhado. Cosplayers fajutos do "mais feio dos homens" ("devasto e torno intransitável todo caminho em que piso") de Nietzsche, que querem se divertir com teatrinhos do absurdo, já que não encontram nada melhor para passar estes tempos com tantos indícios de serem terminais.
Por isso, optaram não por um novo governo nos EUA, mas por um reality show (com gabinete VIP de pulseirinha) de furiosa bizarrice transmitido direto da Casa Branca. Gente que quer bet, cada vez mais tudo bet, aposta pesada no caos, com distribuição farta de dopamina para espantar o tédio de propostas tidas como sensatas de melhorar o mundo.
É como naquela canção do Roberto: para essa bet-gente (não mais bat-gente), a sensatez só sabe proclamar que "tudo o que eu gosto é ilegal, imoral ou engorda", aumentando a chatice geral com cada vez mais limites e promessas de lockdowns ou finais do mundo por catástrofes terríveis.
A ideia básica da alt-right é estourar a boca do balão, sem medo de ser feliz, como se não houvesse amanhã, já que amanhã sem farra do boi (com muita picanha), próteses de silicone, fake news e queimação de combustíveis fósseis (com muita motociata) não tem graça nenhuma.
Sim, há também a pregação anarcocapitalista. Sua pré-história pré-alt-right está bem contada no livro "Radicals for Capitalism", de Brian Doherty, que parte da experiência pessoal do autor em grupos —que incluem há décadas muitos think tanks patrocinados por bilionários— desse movimento, que não é nada homogêneo e hoje se espalha mundo afora, do Vale do Silício à Casa Rosada.
São muitas leituras diferentes de Ayn Rand ou da antiga crítica que Hayek fez do Estado do bem-estar como caminho para a servidão, contra liberdades individuais. Na base de seu multifacetado projeto político, está a crença no poder do mercado (e a tecnologia produzida por um mercado totalmente desregulado) para resolver todos os problemas da humanidade.
Hoje, vemos a ideia de liberdade ser aplicada de forma seletiva e circunstancial por quem se diz fã de Hayek. Claro que imigrantes na fronteira entre Texas e México não têm a liberdade de decidir para onde querem ir (obviamente, há imigrantes com mais liberdade, como Elon Musk, agora com passe livre para entrar em Mar-a-Lago, ou o pai e a mãe de Usha Chilukuri Vance, mulher do J.D., agora segunda dama dos EUA). Outras liberdades "individuais", como de ser trans ou fazer aborto, são cada vez mais atacadas ou cerceadas.
Ao mesmo tempo, gente "influencer" em ambientes Cpac (Conferência de Ação Política Conservadora) e no Partido Republicano dos EUA (sem falar em gurus "eurasianos" da Rússia), como o economista Oren Cass (ou Trump inimigo de teto de gastos), já aponta para o fim do neoliberalismo, sem receio de apostar (bet!) em protecionismo para fortalecer a indústria norte-americana ou mesmo em privilégios para seu operariado do Cinturão da Ferrugem.
Quem poderia cuidar disso se não for um Estado "great again"? Afinal, mesmo o Vale do Silício tem consciência de que, sem o Estado, não teríamos computador, internet ou inteligência artificial (delicado lembrar esses "detalhes" no momento atual do Brasil, onde aparentemente o único projeto político aprovado pelo mercado —e adjacências— para o futuro do país é uma reforma fiscal —e ai do governo que não fizer a reforma que o mercado quer).
Essa situação ganhou contornos mais dramáticos com a pandemia. A China pôs o Ocidente contra a parede: decretou rapidinho um lockdown de proporções épicas, cercando Wuhan e o país todo logo depois. O mundo inteiro não teve opção, precisou ir atrás, mas em total desvantagem: com internet controlada etc., a China tinha facilidade para fazer o que fez.
Tentar a mesma coisa em democracias "ocidentais" se revelou tarefa mais que temerária, com questionamentos de todos os lados, sobretudo de novos movimentos de direita já bem populares, com a pregação de defesa de liberdades individuais estilo Hayek, incluindo campanhas antivacina. Agora já era: de certa forma, nunca mais saímos de nossos lockdowns mambembes.
Muito barulho em volta. A nova direita não cria nenhuma ideia realmente nova, mas inventa uma maneira de reciclar, de forma mais maluca a cada dia, tudo aquilo que um dia foi bandeira da esquerda (também encostada na parede de suas crenças do passado).
Quem fazia a crítica do capitalismo selvagem da indústria farmacêutica era a esquerda, agora isso virou coisa de gente "patriota" que defende tradição e família. De repente, ao mesmo tempo, até o desconstrucionismo virou arma da direita, que continua tratando tudo como se fosse "narrativa". Sem falar na psicodelia "conservadora". Que o diga o xamã do Q-Anon, invasor "viking" do Capitólio. Quem sabe se, com perdão presidencial, ele não passe a comandar rituais animistas nos jardins da Casa Branca?
Tudo confuso, tudo embaralhado, tudo duplo pensar 1984, tudo com sinais trocados. Tudo parecido com as estratégias das vanguardas da virada do século 19 para o 20 para "épater la bourgeoisie" com múltiplos tratamentos de choque. Só que agora a caretice é que parece estar no comando, ridicularizando a maluquice beleza, fazendo paródias de suas conquistas modernas.
Roteiro para os próximos anos: o Heliogábalo de Artaud reencenado sem parar na vida real, sem objetivo nenhum? Não precisa nem de crueldade ou a crueldade é bem mais sofisticada, como quando Trump tem que parar um comício e fica 40 minutos com aquela dancinha de filme de terror, repetida depois por Elon Musk em Mar-a-Lago.
Dançando o quê? YMCA, ex-hino gay! É "mashup" juntando elementos de procedências antes disparatadas do imaginário contemporâneo, tudo ganhando novos sentidos ou sentido nenhum.
A mesma coisa aconteceu com as coreografias e marchas TikTok inventadas para dançar o hino nacional brasileiro naqueles acampamentos nas portas de quartéis militares. Como cantava David Bowie citando o acionismo vienense: "It's all deranged". Ou: degringolou/abilolou geral.
Ronaldo Lemos diagnosticou tudo isso, aqui mesmo na Ilustríssima, como a Grande Ruptura. Cito suas palavras: "Seu objetivo final não é transmitir informação, mas modular experiências imediatas, especialmente estados emocionais; é muito mais experiência do que conteúdo. Para isso, seus artefatos são instrumentalizados mais para produzir alegorias e mesmo manipulação emocional do que para comunicar qualquer coisa".
Não é algo que acontece só na arte ou em guerras culturais. É a doença infantil (ainda lembrando Lênin) do conservadorismo doidão que derrubou o mundo.
Em que buraco abestalhado nos metemos! Como adverti acima, este meu texto-chacrinha não explica nada, quer apenas confundir ainda mais ou é atestado reclamão da minha perplexidade. Eu que não gostava de reclamar de nada, cá estou. Tenho que me acostumar: este é o (meu) novo normal.
Hermano Vianna, o autor deste ensaio, é Antropólogo, escreve no blog hermanovianna.wordpress.com / Publicado na Folha de S. Paulo - Ilustrada, em 19.01.25
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