Fenômeno sintomático de nosso tempo, o lawfare verbal abusa da ameaça
O cantor Michel Teló, do sucesso 'Ai se eu te pego' - João Cotta /Divulgação
"Grupo de advogados vai acionar MPF contra Nikolas Ferreira por vídeo sobre Pix"; "Governo avalia processar criminalmente quem divulga fake news sobre o Pix"; "Bolsonaro diz que vai processar Haddad após fala sobre crise do Pix"; "Boulos diz que vai processar Nikolas Ferreira por fake news sobre fiscalização do Pix"; "Bruno Dantas ameaça jornalista após comentário sobre atuação no TCU".
"Pablo Marçal ameaça processar jornalista em entrevista ao vivo"; "Carlos Bolsonaro diz que vai processar Marçal por injúria"; "Bolsonaro diz que vai processar Lula por fala sobre mansão nos EUA"; "Boulos diz que vai processar Marçal sobre caso envolvendo homônimo"; "Michelle Bolsonaro diz que vai processar pessoas do PT por ‘ameaças’".
"Janja diz que vai processar ‘X’ após ataque hacker"; "Felipe Neto diz que vai processar Gustavo Gayer por divulgação de fake news"; "Yasmin Brunet diz que vai processar médicos após críticas e especulações sobre sua aparência"; "Thor Batista diz que vai processar quem o atacou na internet"; "Susana Vieira diz que vai processar quem falar mal dela"; "Susana Vieira ameaça processar quem lhe chamar de velha".
A sequência de manchetes recentes mistura embates políticos, jurídicos e pessoais muito diferentes. Algumas caricatas, outras dotadas de argumento jurídico talvez respeitável, as chamadas guardam em comum a escolha pela teatralização pública da ameaça jurídica.
O instinto da ameaça, que raramente se consuma em ação judicial e fica só no recado, dá sinais importantes sobre muita coisa. Não indica apenas modalidade do jornalismo declaratório, aquele desprovido de fato relevante ou análise, e ansioso por reportar declaração frívola. Não demonstra só a precariedade da comunicação não violenta para ter algum êxito em ambiente definido pela beligerância e incivilidade.
Não só demonstra ímpeto de usar o direito para intimidar, ou a crença de que conflitos podem ser vencidos pela ameaça de processo. Não só revela a ignorância de muita gente que, ao sacar a arma do "vou te processar", pode ser acusada de crime de ameaça: "Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave" (art. 147 do Código Penal). Estará sujeita à imprevisível interpretação judicial sobre o significado de "mal injusto e grave".
Esse coro de ameaças talvez seja sintoma de patologia social e jurídica que se intensifica em nosso tempo. O lawfare verbal e pré-judicial, uma espécie de judicialização informal do discurso público, precisa ser mais bem conhecido, suas causas e efeitos mais bem pesquisados.
Não basta processar, tem que ameaçar antes. O fenômeno não se confunde com a judicialização ou com a litigância predatória, que instrumentaliza a Justiça para violar a lei, ou usa o Judiciário como arma para fins espúrios. O lawfare pré-judicial usa a ameaça midiática, pura e simples, como arma. É também uma forma de predação e banalização do direito.
Enquanto o Judiciário não oferecer uma saída doutrinária e processual para neutralizar o eventual abuso do direito, ou o eventual crime de ameaça, seremos cada vez mais submetidos a esse ridículo jogral: "Nossa, nossa, assim você me mata, ai se eu te processo, ai, ai se eu te processo".
Conrado Hübner Mendes, o autor deste artigo, é Professor de direito constitucional da USP; doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 29.01.25
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