quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Sacola de dinheiro das emendas requer transparência

Que ao menos o nome do ‘padrinho’ e o destino das verbas sejam identificados publicamente

O plenário da Câmara dos Deputados — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

O vereador Francisquinho Nascimento quase conseguiu se livrar da prova. Quando os agentes da Polícia Federal chegaram a seu apartamento, em Salvador, na última terça-feira, ele atirou uma sacola pela janela. Deu azar. Os policiais recuperaram a sacola. Continha notas de R$ 200, R$ 100 e R$ 50, no valor exato de R$ 220.150,00.

Nascimento foi apanhado na Operação Overclean, coordenada pela Polícia Federal e pela Controladoria-Geral da União (CGU), órgão do governo federal. O objetivo era apurar um esquema de desvio de dinheiro de emendas destinado ao Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs). Segundo nota da CGU, investigações preliminares sugerem o possível desvio de R$ 1,4 bilhão em diversos contratos públicos.

Como a coisa funciona? Um deputado ou senador destina o dinheiro das “suas” emendas ao Dnocs. Algum órgão do ministério encaminha os recursos, obrigatoriamente. O dinheiro chega aos cofres do Dnocs e, nesse caso, parece ter sido usado não para obras, mas para encher o bolso de políticos e empresários.

Se fosse um caso isolado, já seria grave. Mas a investigação da CGU descobriu que R$ 5,5 bilhões de emendas foram destinados a organizações não governamentais. Numa análise por amostra, envolvendo dez organizações, a CGU verificou que pelo menos cinco entidades não tinham a menor condição de fazer nada, pareciam de fachada. A mesma investigação encontrou casos de obras não terminadas ou, pior, que nem começaram, mesmo já tendo recebido o dinheiro das emendas.

Claro que não se pode generalizar, e há mesmo pelo menos um ponto a favor do sistema de emendas. O parlamentar está mais perto das bases de seu estado, de modo que deve conhecer as necessidades da região. Mesmo assim, e mesmo que todo o dinheiro fosse bem utilizado, restaria um enorme problema para as finanças públicas.

Do Orçamento da União, 92% vão para despesas obrigatórias — basicamente, Previdência, pessoal e benefícios sociais. Com os restantes 8%, o governo federal mantém a máquina funcionando e investe. São as despesas discricionárias, entre as quais se incluem as emendas parlamentares, sobre as quais o Executivo não tem controle.

Segundo dados da Instituição Fiscal Independente, até setembro de 2024 a despesa discricionária total chegou a R$ 153 bilhões. E o gasto com as emendas parlamentares alcançou R$ 45,7 bilhões. O previsto para este ano todo passa dos R$ 50 bilhões. Em 2020, as emendas representavam 11,1% dos gastos discricionários. Neste ano, 17%.

O Orçamento da União é uma peça completa, montada de acordo com a orientação política do governo eleito, visando a atender as necessidades nacionais. Tem de ser aprovada pelo Congresso, que pode alterá-la, cortando certas despesas, acrescentando outras. É assim que funciona nas democracias. O Executivo propõe, o Legislativo aprova. O Congresso, portanto, já tem o poder sobre o Orçamento.

Mas deputados e senadores querem o que alguns líderes chamam de “Orçamento do Legislativo” — justamente aqueles R$ 50 bilhões, recursos para ser aplicados por cada parlamentar, conforme seu interesse político e eleitoral. É inédito o tamanho a que isso chegou. Há o sistema de emendas em alguns outros países, mas com valores mínimos.

Se não se consegue ao menos diminuir as emendas — a palavra final nisso é do próprio Congresso —, que ao menos o dinheiro seja aplicado com transparência e com critérios razoáveis. Que o nome do “padrinho” e o destino das verbas sejam identificados publicamente. E que o dinheiro seja liberado mediante a apresentação de um projeto mostrando como o recurso será aplicado.

É o que consta das regras estipuladas pelo ministro do STF Flávio Dino. Que foram mal recebidas no Congresso. O ministro também pediu que as emendas já pagas, nos últimos anos, fossem identificadas. O Congresso mandou dizer que, a esta altura, era impossível. Não é de estranhar, portanto, a bronca do ministro. Assim ele definiu:

— Bilhões de reais do Orçamento da Nação tiveram origem e destino incertos e não sabidos.

E querem continuar assim?

Carlos Alberto Sardenberg, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado original,ente n'O Globo, em 14.12.24

Nenhum comentário: