O Brasil fragmenta o uso de seus recursos orçamentários, reduzindo a eficiência, produzindo redundâncias e estimulando a corrupção
Neste corre-corre de final de ano, deputados podem votar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para turbinar emendas individuais. Hoje, elas têm um limite de 2% da Receita Corrente Líquida. Esse limite já foi de 1,2%. Agora, pode crescer de novo, para 2,9%. Hoje, os parlamentares já dispõem de R$ 49 bilhões do Orçamento.
Isso é uma jabuticaba brasileira, uma anomalia nacional, se comparamos com outras democracias. Nos outros países, o Congresso tem um grande poder sobre o Orçamento, debatendo cada item, como o fazem os comitês orçamentários nos EUA. Na Inglaterra, o Orçamento preparado pelo Tesouro é apresentado pelo primeiro-ministro. Os parlamentares têm o direito de questionar os gastos, mas não de controlar sua aplicação.
Essa anomalia brasileira significa uma perda de poder do Executivo e, na verdade, interfere na separação de Poderes.
As eleições presidenciais não colocam o problema com a seriedade que tem. Lula da Silva prometeu acabar com o orçamento secreto, mas o fim dessa modalidade é apenas o fim de uma grande aberração inconstitucional. Se o orçamento secreto for superado, o que nunca é pelas inúmeras artimanhas para fugir à transparência, apenas será retirado um bode da sala.
O problema continuará de pé: que sentido terá um projeto presidencial, se o vencedor não tem condições de manejar os recursos orçamentários para realizar um programa aprovado pela maioria?
Uma saída pseudorrealista é estourar o Orçamento. Mas as consequências desse estouro se refletem na inflação e acabam inviabilizando o próprio programa, por meio de instabilidade econômica.
O argumento para as emendas parlamentares é o de que os deputados conhecem em detalhes as necessidades de suas regiões. Isso pressupõe que o governo central as ignora. Não haveria a possibilidade de trocar informações, de criar nos ministérios uma comissão de escuta dessas necessidades?
Da mesma forma, as chamadas emendas de comissões são uma espécie de redundância. Elas podem alcançar o limite de 1% da Receita Corrente Líquida. Mas as comissões no Congresso são uma réplica dos ministérios, elas atuam numa área em que o governo federal tem responsabilidade. Por que duplicar a administração de recursos? Por que o Ministério da Educação, por exemplo, não pode incluir em seus gastos as aspirações da comissão do Congresso?
Outra dificuldade são as chamadas emendas de bancada. São propostas pelo conjunto dos deputados de um Estado. Seu argumento é oposto ao das emendas individuais: são destinadas às grandes obras no Estado, às obras estruturais. Se os deputados partem do pressuposto de que pequenas obras escapam ao governo, aqui admitem que ele ignora as obras estruturais.
Na verdade, as chamadas emendas de bancadas acabam sendo divididas entre os deputados, uma espécie de rachadinha para que cada um destine sua parte do recurso.
A proposta que circula agora na Câmara acaba com a emenda de comissão e torna tudo emenda individual. É uma forma de se aproximar da verdade. No fundo, todos querem usar as emendas nos seus redutos individuais.
Mas a jabuticaba continua brilhando no pé. O Brasil, ao contrário das grandes democracias, fragmenta o uso de seus recursos orçamentários, reduzindo a eficiência, produzindo redundâncias e, por último, algo muito importante, estimulando a corrupção.
É um país em que aviões repletos de dinheiro são apreendidos pela Polícia Federal, em que vereadores jogam fortunas pela janela, na chegada da polícia – enfim, o País em que algumas cidades recebem por radiografias feitas em todos os seus habitantes, como se houvesse uma fratura unânime em seus limites territoriais.
A superação desse problema é muito difícil. Parece quase impossível fazer o gênio voltar para a lâmpada. Mas o primeiro passo, nas eleições de 2026, é não encarar as eleições presidenciais com tanta exclusividade, não montar frentes apenas com uma vaga visão democrática, mas tentar reduzir o desequilíbrio entre Executivo e Legislativo num campo tão decisivo como o da aplicação dos recursos orçamentários.
A batalha pela transparência e rastreabilidade das emendas parlamentares toca apenas na ponta do iceberg, apesar da sua enorme importância.
Não só o desequilíbrio continuaria a existir com a transparência. A própria ideia de controlar as emendas através de planos de trabalho é de difícil execução. Quem faria isso, com que regularidade e eficácia num país tão vasto?
A jabuticaba é insustentável se quisermos, como outras democracias, administrar com seriedade nossos recursos, que aliás não são nem do Executivo nem do Legislativo, mas frutos do trabalho da sociedade.
Não é sonhar muito com um país onde as coisas andam com regularidade e as pressões e contrapressões do processo se deem pelo confronto de ideias. Hoje o ritmo do trabalho parlamentar é primordialmente decidido pelo pagamento das emendas. Há dinheiro, trabalha-se; faltou dinheiro, boicotam-se as votações. A jabuticaba torna nossa democracia vulgar e desalentadora.
Fernando Gabeira, o autor deste artigo, é Jornalista. Escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto d'O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 19.12.24
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