quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

É tudo culpa do Lula?

Sem compromisso republicano das lideranças do país, inclusive do setor privado, a cada dia colocamos um tijolo na parede da ingovernabilidade do Brasil


Chico Buarque visitou Lula em sua casa nesta terça-feira em São Paulo — Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação

No regime presidencialista, a responsabilidade sobre os rumos da economia recai no presidente da República. Mesmo que os demais poderes cumpram papel relevante, cabe ao chefe do Executivo buscar o diálogo e soluções majoritárias.

Essa equação, porém, é mais complexa no Brasil, onde o patrimonialismo é disseminado e arraigado, beneficiando muitas corporações e grupos organizados, em um contexto de elevada desigualdade social. As muitas demandas por proteção, benefícios e privilégios, inclusive de dentro da máquina estatal, batem nas portas de todos os poderes.

Quando atendidas, pesam nos cofres públicos, comprometendo a capacidade de investimento do Executivo, enquanto não atendê-las implica elevado custo político e até ameaça à governabilidade.

O fato de o governo atual ter abraçado a agenda de elevação de gastos já de largada — e não em final de mandato, com vistas à reeleição — colocou mais combustível nas demandas. Afinal, todos tentam garantir o seu quinhão.

O quadro de polarização política extrema é sério agravante na construção de apoio político para avançar com reformas e evitar pautas-bombas. Ainda mais com Lula fazendo parte da divisão, o que, de quebra, impõe um teto à aprovação de seu governo.

Com magras taxas de aprovação (avaliação bom/ótimo em 35% em dezembro, segundo o Datafolha, é comparável à de Bolsonaro em 2020), o presidente exibe modesto capital político, inclusive com questionamentos à viabilidade de sua reeleição. E aqui vale a máxima: a força de um político está associada à perspectiva futura de poder.

Com a fraqueza do governo, muitos grupos aproveitam as fissuras abertas para preservar o status quo. A lista de más notícias só faz crescer. Vale citar algumas recentes.

A Reforma Tributária foi mais uma vez desidratada pelo Senado. Novamente, vários itens foram equivocadamente incluídos nos regimes diferenciados de tributação, elevando a alíquota-padrão. A Câmara retirou alguns dos excessos do Senado.

Ainda assim, o balanço final é desfavorável aos mais pobres, pois são mais impactados pela alíquota-padrão e a maioria dos itens com menor tributação não está na sua cesta de consumo.

Os jabutis do setor elétrico são outro exemplo. No projeto de lei que regulamenta a produção de energia eólica em alto-mar, o Senado ampliou os benefícios da geração solar de pequenas centrais. A fatura vai para o bolso do consumidor, reforçando o lema do país com baixo custo de geração de energia, mas com tarifa elevada.

O projeto de lei de renegociação das dívidas de estados com a União, de autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, é mais um a premiar más gestões e a desestimular reformas estruturais nos entes.

Os juros da dívida são reduzidos e os pagamentos postergados, sem uma contrapartida de ajuste fiscal, enquanto se abre espaço para aumentar gastos. Estados ricos, mais endividados, são os mais beneficiados.

Tem ainda os seguidos penduricalhos do Judiciário, que escapam do teto do funcionalismo (R$ 44 mil em 2024). São benefícios de todo tipo que engrossam as remunerações, sem sofrerem a incidência de impostos.

O pacote fiscal do atual governo, ainda que propondo mudanças em poucos itens, tem o mérito de reconhecer que somos um país onde corte de despesas é praticamente impossível, pois os grupos impactados reagem, sendo mais razoável adotar mudanças graduais. Ainda assim, o vento contra é forte, sendo a liberação de emendas parlamentares a moeda de troca.

Esse quadro não é de hoje. Vale relembrar que o ex-ministro Paulo Guedes passou maus bocados. A Reforma da Previdência precisou poupar alguns segmentos, como militares e o funcionalismo de estados e municípios. Depois vieram gastos excessivos na pandemia, que resultaram em volta mais rápida da inflação, e os furos no teto de gastos.

O próprio presidente era contra as reformas pretendidas por Guedes, que defendia medidas extremas, inviáveis politicamente. As consequências não foram mais graves porque a arrecadação batia recordes, inclusive impulsionada pela elevada inflação ao produtor.

O presidente pode menos do que se imagina. Sem autocontenção e compromisso republicano das lideranças do país, inclusive do setor privado, seguiremos colocando a cada dia um tijolo na parede da ingovernabilidade do Brasil, quem quer que seja o próximo presidente.

 Zeina Latif, a autora deste artigo, é economista. Publicado originalmente n'O Globo, em 18.12.24

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