A política municipal transformou-se num bico de pena de um quadro federal lastimável. A maioria dos agentes políticos são néscios de dar dó
Brizola,Ulisses (com D.Mora), Tancredo, FHC nas ruas pelas Diretás Já!
A boa notícia é que a eleição municipal assumiu uma tendência centrista, desfazendo a radicalização que ameaçava o País desde 1926; a ruim, é que esse resultado se deveu principalmente ao fato de a maioria dos eleitores terem se desinteressado pela política num grau nunca visto pelo menos desde o fim da 2.ª Guerra Mundial.
Fosse facultativo o nosso sistema de votação, dificilmente o comparecimento às urnas atingiria 40%. Que motivos podemos aventar para essa abrupta queda? Afirmo sem temor de errar que o principal motivo foi a qualidade mediana dos candidatos. Para chegar a essa conclusão, não precisamos evocar o pitoresco episódio do recurso a peças de mobiliário para aquecer o debate. Basta-nos observar que, no Brasil, a teratológica centralização do poder sempre reduziu a política municipal a um quase nada. Os candidatos, sim, têm muito apreço por ela, pois sabem que é um bom negócio plenamente compatível com um quase total ócio.
O segundo motivo é que o Brasil não consegue superar a entressafra política em que se meteu desde o fim do governo Fernando Henrique. No Congresso constituinte de 1987-1988, qualquer cidadão medianamente atento podia facilmente identificar, de uma ponta a outra do espectro político, no mínimo 20 figuras públicas de alta envergadura. Não estou aqui expressando uma preferência ideológica, mas apenas ressaltando que lá estavam Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Mário Covas, Afonso Arinos, Fernando Henrique Cardoso, Roberto Campos, Delfim Netto e outros mais. Ora, em nenhum país a política municipal produzirá políticos desse calibre, mas devemos admitir que, havendo lideranças de tal ordem, o nível não cairá a zero. Agora, sim, caiu a zero, e o eleitor, por ingênuo que seja, percebe claramente o quadro que tem diante de si. A política municipal transformou-se num bico de pena de um quadro federal lastimável. Entre o ponto inicial e o presente – desde o início da entressafra –, a maioria dos agentes políticos são néscios de dar dó.
Nunca é demais lembrar que o vácuo que se formou desde o fim da geração de homens públicos acima mencionados cresceu numa proporção monstruosa, à medida que forças políticas antes apegadas a um rançoso esquerdismo passaram a se apresentar como um centro. O marco zero desse processo foi a campanha eleitoral de 2002, quando o PT decidiu amenizar sua tradicional carranca lançando um documento intitulado Carta ao povo brasileiro, que também poderia ser designado como carta aos banqueiros, ou aos empreiteiros. O passo seguinte, já com o iniciático Lula da Silva ocupando o Palácio do Planalto, foi recorrer à infecciosa expressão “herança maldita” a fim de inquinar a obra de governo de Fernando Henrique Cardoso, que lograra a proeza de estabilizar uma superinflação que já durava 33 anos. O episódio do “mensalão”, de 2005, podemos deixar de lado, por não merecer figurar nem nesse contexto de pura falcatrua. Nos anos seguintes, beneficiado pelo crescimento do comércio mundial e, especialmente, pelas compras da China, Lula não teve dificuldade em posar de estadista e menos ainda, with a little help from his friends, em emplacar Dilma Rousseff no Planalto, esse sim um golpe de misericórdia que traria em seu rastro um brutal retrocesso econômico e um Mr. Hyde (Jair Bolsonaro) para fazer o contraponto com o Dr. Jekyll, ou seja, Lula e o PT, configurando-se, assim, a famigerada polarização de 2016, que debilitou de vez nossa crônica anemia para enfrentar uma tragédia do tamanho da covid-19.
Voltemos, pois, à boa notícia. Vem de priscas eras o ditado de que certos males vêm para bem. A mediocridade dos candidatos e a indiferença dos eleitores na eleição municipal deste ano parecem realmente ter desfeito a polarização iniciada em 2016. Temos tempo para encontrar um ou mais candidatos de centro, dotados do mínimo indispensável de energia, lucidez e tirocínio, e para repensar a fundo nossa estratégia de crescimento econômico.
Mesmo se todos esses milagres acontecerem, outro personagem precisa ser acordado de sua letargia. Falo, evidentemente, do eleitorado. A maioria dos cidadãos precisa compreender que seu papel político não pode ser ignorante e preguiçoso como tem sido ao longo dos séculos. Em última análise, ele é o arrimo que teremos de edificar para sobrestar crises do tamanho das que já começam a bater à nossa porta. Desvistam-se de seus preconceitos e revejam a transição levada a cabo na África do Sul em 1990-1994. Ao tomar posse em 1990, o presidente Frederik Willem de Klerk, dirigindo-se aos descendentes de ingleses e aos afrikaners – as duas castas racistas que dominaram o país durante séculos –, virou o país de ponta-cabeça. Pronunciando, sem ser interpelado, um discurso de 45 minutos, firmou a posição de que a partir do dia seguinte não haveria mais apartheid nem segregação, e que todos os cidadãos adultos teriam o direito de voto, instituindo-se, assim, a democracia representativa. No Brasil, é imperativo formarmos gente desse calibre nos próximos cinco ou, no máximo, dez anos.
Bolívar Lamounier, o autor deste artigo, é sócio da Consultoria Augurium, membro da Academia Paulista de Letras e da Academia Brasileira de Ciências. Publicado ooriginalmente n'O Estado de S,. Paulo, em 19.10.24
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