domingo, 25 de agosto de 2024

Congresso e a democracia

Deputados e senadores, na última semana, se excederam no trabalho de demolir a confiança em deputados e senadores

Câmara vazia na promulgação da PEC da Anistia — Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados

A sessão estava tão vazia que o senador Eduardo Gomes, um dos presentes, ironizou: “está difícil achar lugar no plenário”. Nem os presidentes das duas casas compareceram. Naquela ausência, e da maneira mais rápida possível, o deputado Marcos Pereira promulgou a PEC da Anistia. Por ela um poder político, dominado por homens brancos, perdoava-se por não ter cumprido a lei que mandou investir em candidaturas de pessoas negras. De cambulhada, os partidos davam a si mesmos perdão de todas as dívidas tributárias. Os partidos poderão pagar sem juros e sem multas o muito que devem à Receita. Tudo havia sido aprovado à sorrelfa, em 20 minutos.

Eles escondem seus rostos, eles dissimulam suas práticas, eles não comparecem à promulgação de seus próprios atos, mas continuam com seu projeto 8 de janeiro. Deputados e senadores nessa última semana se excederam no trabalho de demolir a confiança em deputados e senadores. Foi uma semana de esforço concentrado, em que parlamentares legislaram para si próprios e usaram o poder para ameaçar outros poderes.

A semana havia começado com um almoço em que o deputado Arthur Lira chegou enfezado e o senador Rodrigo Pacheco cooperativo. Isolado, Lira fez que cedeu no almoço servido no Supremo para pôr ordem na farra de emendas pix, pizza, rachadinhas, individuais, de bancada, de comissão, impositivas. Através delas e seus expedientes o Congresso tem subvertido o princípio de que, na divisão de papeis entre os três poderes, cabe ao executivo executar o Orçamento.

Ao voltar do almoço no STF que traçou uma linha de recuperação da institucionalidade, Lira abriu sua caixa dos horrores. De lá sacou duas propostas de ameaça ao Supremo. Uma delas chega a ser bizarra de tão inconstitucional. Daria ao Congresso o poder de reverter decisões do Supremo. A outra, que tem mais apoio, é a de limitar decisões monocráticas dos ministros do Supremo. Para que ficasse claro que era uma ofensa, e não uma proposta de aperfeiçoamento, a deputada Caroline de Toni entregou a análise da admissibilidade a um investigado pelo Supremo por atos golpistas, deputado Filipe Barros. Era uma provocação. Filipe Barros é suspeito de quebrar sigilo de investigação federal para entregá-la ao ex-presidente Jair Bolsonaro, de disseminar mentiras e promover ataques aos ministros do STF. Caroline, por sua vez, foi escolhida para a honrosa Comissão de Constituição e Justiça para tentar achar uma brecha que anistie Bolsonaro de seus ataques à democracia. E, também, pelas suas posições extremistas contra as vacinas e a favor favor do homeschooling.

O ato do Congresso sobre decisões monocráticas poderá ter efeito bumerangue. São incontáveis os parlamentares já beneficiados por decisões individuais dos ministros quando algo supostamente fere os seus direitos e garantias. Em setembro de 2023, o ministro Gilmar Mendes determinou à Polícia Federal que destruísse todos os áudios captados por ordem da Justiça Federal em Alagoas que pudessem atingir Arthur Lira. A operação Hefesto investigava suspeitas de irregularidades na compra de kits de robótica pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Gilmar havia anulado as provas que mandou destruir. Monocraticamente. Seguiu entendimento do PGR de que se a investigação envolvia deputado não poderia ter sido feita na instância estadual.

O Congresso dedicou-se na semana passada ao esforço concentrado em seus próprios interesses. A CCJ do Senado aprovou o mais forte ataque à lei da ficha limpa, diminuindo o tempo da inelegibilidade de políticos condenados. O projeto nasceu na Câmara e foi de autoria da deputada Dani Cunha, filha de Eduardo Cunha, que a lei beneficiará, antecipando o fim do seu tempo de afastamento da política, de 2027 para 2024. Assim, em causa própria, ou usando os poderes para ameaçar outros poderes, o Congresso continua o trabalho de desmonte interno. O prédio foi fisicamente atacado por golpistas no 8 de janeiro. Lá dentro propostas têm frequentemente atacado um bem imaterial, a confiança na instituição do Parlamento. Isso é mais demolidor.

Sou da geração que viu o Congresso ser fechado por tropas e tanques. Trago na memória a sensação do ar grosso e seco tentando chegar aos pulmões quando isso aconteceu. Tenho, por isso, uma enorme paciência com os erros dos parlamentares. Mas a maioria do país é mais jovem e pode achar que o Congresso não vale seu preço.

Míriam Leitão, a autora deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 25.08.04.


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