Ao longo de duas décadas, o regime chavista tem manipulado os processos eleitorais de modo a desacreditá-los e induzir a oposição a boicotar as votações
O ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, acena para apoiadores em Caracas, Venezuela Foto: Juan Barreto/AFP
A ditadura venezuelana montou uma aparente fraude eleitoral acompanhada de uma versão fantasiosa de “ataque de hackers” ao sistema de transmissão dos resultados da votação para justificar a suspensão dos envios das atas, o enquadramento da oposição em crime de “terrorismo” e o recrudescimento da repressão contra protestos populares,
Ao anunciar uma improvável vitória do autocrata Nicolás Maduro por 51,2% dos votos, ante 44,2% para o representante da oposição, Edmundo González, o presidente do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), Elvis Amoroso, afirmou ter resolvido “problemas causados por agressões ao sistema, que causaram atrasos”. E que solicitou ao procurador-geral Tarek Saab, um dos braços da repressão do chavismo, “investigações contra o sistema eleitoral e contra seções e funcionários”.
Em geral quando se frauda uma apuração eleitoral, o sistema é derrubado da internet, enquanto se inserem os números escolhidos pelo regime. Aconteceu por exemplo na própria Venezuela na eleição para a Assembleia Constituinte, que eu cobri, em 2017. Dessa vez, os chavistas inovaram: aproveitaram a queda do sistema para enquadrar líderes oposicionistas pelo grave crime de terrorismo.
Em seguida, Maduro discursou em frente ao Palácio Miraflores, sede da presidência, numa trama claramente coreografada. “O fascismo na Venezuela, a terra de Bolívar e de Chávez, não passará hoje nem nunca”, prometeu ele. “O povo de Cristo foi mais forte frente aos demônios e demônias”, continuou, numa aparente referência a María Corina Machado, a única líder de oposição feminina, cuja candidatura foi impedida pelo regime.
“A Venezuela sofreu ataque de hackers durante a noite”, assegurou o ditador. “Não vou revelar o autor. Ataque doméstico ao sistema de transmissão do Conselho Nacional Eleitoral porque os demônios não queriam a certificação da nossa vitória. Já sabemos o mandante”, afirmou Maduro, causando um frio na espinha de quem conhece os métodos violentos de seu regime. “O Ministério Público vai entregá-lo para fazer justiça para o povo venezuelano.”
Segundo ele, trata-se de pessoas feias. “As pessoas belas estão aqui, cheias de amor, patriotismo e cristianismo”, disse ele, elogiando a multidão de chavistas reunidos para festejar a “vitória” do ditador, no poder desde 2013, e do regime, que já dura 25 anos. Reforçando a intimidação, Maduro advertiu: “Não vamos permitir que essas pessoas provoquem uma espiral de violência. O povo quer tranquilidade, estabilidade”.
María Corina Machado já está impedida de deixar o país, por uma condenação que também a tornou inelegível, embora tenha sido escolhida por nove partidos a candidata da oposição unida. Portanto, não tem a opção do exílio para escapar da prisão, como fizeram Juan Guaidó, que está em Miami, Leopoldo López, Julio Borges e Antonio Ledezma, que estão em Madri, para citar apenas alguns expoentes da oposição.
Machado discursou logo depois, ao lado de González. Ela afirmou que, segundo as atas que haviam recebido, González venceu com 70% dos votos, ante 30% para Maduro. “Essa é a verdade, maior margem de vitória na história”, festejou a líder oposicionista. Ela afirmou que foram retirados fiscais de centenas de mesas, nas quais era impedida a impressão das atas. Jornalistas presenciaram alguns desses incidentes, em que policiais e militantes dos “coletivos” chavistas impediram o acesso dos fiscais da oposição aos locais de apuração dos votos.
Machado rebateu a acusação de que oposicionistas teriam atacado o sistema para impedir a transmissão. “Os principais interessados na chegada das atas somos nós”, argumentou ela. “Por que acham que interromperam o envio das atas? Todos sabem o que aconteceu. Sabemos que essas pessoas são capazes de qualquer coisa, mas isso não é qualquer coisa, é violar a soberania popular. Não podem fazer isso, não com a informação que nós temos”, afirmou Machado, referindo-se às atas da contagem dos votos.
A líder da oposição, María Corina Machado, participa de uma coletiva de imprensa ao lado do candidato presidencial Edmundo González, em Caracas, após a divulgação dos resultados
A líder da oposição, María Corina Machado, participa de uma coletiva de imprensa ao lado do candidato presidencial Edmundo González, em Caracas, após a divulgação dos resultados Foto: Federico Parra/AFP
“Toda a comunidade internacional, até os que foram aliados em algum momento, sabem o que aconteceu”, disse Machado, numa aparente referência ao Brasil. O assessor especial da presidência Celso Amorim acompanhou a votação em Caracas. Antes do anúncio dos resultados, Amorim havia se declarado contente com o transcurso da votação.
Ao enviar Amorim, o governo Lula se obrigou a emitir um veredicto do processo eleitoral venezuelano. Dificilmente denunciará a fraude com todas as letras, ao julgar pela complacência diante da declaração de Maduro, de que a eleição brasileira não é auditável. Se Lula e Amorim recebem em silêncio um questionamento da legitimidade da eleição do próprio presidente, numa calúnia idêntica à que Jair Bolsonaro fez, por que desafiaria a legitimidade da eleição de Maduro?
Machado fez também um apelo às Forças Armadas, cooptadas pelo chavismo. “Os militares sabem, porque estiveram lá na primeira fila e viram as pessoas”, disse ela. “O dever das Forças Armadas é fazer que se respeite a soberania popular expressa nos votos. Isso é o que esperamos.” É improvável. Os generais venezuelanos estão inteiramente envolvidos no regime, e em seus crimes.
A líder oposicionista também rejeitou a ameaça de Maduro de reprimir as manifestações. “O que não vamos aceitar é dizer que a defesa da verdade é violência”, avisou ela. “Violência é ultrajar a verdade.” Machado, que diz que a oposição contou com 1 milhão de funcionários, num país onde restaram 23 milhões de habitantes, voltou a pedir que os mesários e testemunhas não saíssem das seções eleitorais enquanto não tivessem as atas impressas.
Ela convocou os manifestantes a saírem de casa com suas famílias, incluindo parentes idosos. “Quem sai com a família não quer violência”, justificou. “Nos próximos dias, continuaremos anunciando ações para defender a verdade. Iremos até o fim. Nosso movimento cívico, popular e pacífico não será interrompido.” É improvável que os venezuelanos se exponham à truculência da polícia, dos milicianos irregulares do regime, e ao risco de prisão. Atualmente há 305 presos políticos na Venezuela, dos quais 130 desde janeiro.
Boca-de-urna realizada pela empresa especializada americana Edison Research indicou vitória de González por 65% a 31%. Os números são consistentes com outras pesquisas independentes nos dias anteriores, que indicavam a vitória do candidato da oposição unida por uma margem de 25 a 50 pontos porcentuais.
Ao longo de duas décadas, o regime chavista tem manipulado os processos eleitorais de modo a desacreditá-los e induzir a oposição a boicotar as votações. Com isso, bastava inflar o dado do comparecimento, para dar uma aparência de legitimidade às eleições.
Foi assim na primeira reeleição de Maduro, em 2018, quando o CNE anunciou vitória dele com 68% dos votos e comparecimento de 46%, o mais baixo da história da democracia da Venezuela, instaurada em 1958. A União Europeia e a Organização dos Estados Americanos, entre outros, denunciaram fraude no processo. Isso deve se repetir agora.
O ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, participa de um compromisso de campanha ao lado da primeira-dama, Cillía Flores, em Caracas, Venezuela Foto: Fernando Vergara/AP
Vieram a invasão da Ucrânia e as sanções dos Estados Unidos e da União Europeia contra o petróleo e gás da Rússia. Aumentou o interesse do Ocidente de levantar as sanções contra o petróleo venezuelano. Com mediação da Noruega e aval do Brasil, o governo e a oposição firmaram em outubro o Acordo de Barbados, que previa a realização de eleições livres e justas, incluindo a libertação dos presos políticos.
O acordo foi firmado dia 17 de agosto. Cinco dias depois, Machado foi eleita nas primárias da oposição unida, com 92% dos votos.
Como parte do incentivo, para o regime, os Estados Unidos voltaram , por cerca de quatro meses, a comprar o petróleo venezuelano. Calculo que o regime tenha obtido US$ 1 bilhão em vendas extras de petróleo.
Já no início do ano, no entanto, ficou claro que o governo venezuelano não cumpriria sua parte no acordo. Machado foi inabilitada no fim de janeiro. Ela escolheu para seu lugar a professora Corina Yoris que, por ter o mesmo nome, atrairia os seus votos. O regime vetou também. Ela indicou então o diplomata aposentado Edmundo González, de 74 anos.
Um venezuelano segura um cartaz de apoio a Edmundo González no Rio de Janeiro Foto: Bruna Prado/AP
O regime aceitou, porque imaginou que os votos da oposição se diluiriam entre os candidatos de diversos partidos, e que a população se sentiria desencorajada a votar, como em 2018. Entretanto, a oposição se mobilizou em torno do nome de González. Os candidatos de outros partidos pediram a retirada de seus nomes das cédulas, mas o CNE os manteve, na tentativa de dispersar os votos da oposição e confundir os eleitores.
Nos comícios da oposição, policiais e militantes dos coletivos bloqueavam o acesso de ruas e avenidas para dificultar a checada dos participantes. Só havia cartazes de propaganda eleitoral de Maduro. A imprensa, o Judiciário, o Ministério Público e o Parlamento são controlados pelo regime. E agora, a fraude está consumada. Maduro gostaria de normalizar as relações com os Estados Unidos e a União Europeia, e vender mais petróleo. Mas não ao ponto de sacrificar sua perpetuação no poder.
Lourival Sant'Anna, o autor deste artigo, é colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 29.07.24
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