Trump sempre quis exercer o poder como bem entender, sem freio. Obviamente, digam o que disserem os republicanos da Corte, não foi com isso que os fundadores dos EUA sonharam
ASuprema Corte dos Estados Unidos decidiu, por 6 votos a 3, que ex-presidentes da República não podem ser investigados e julgados criminalmente por seus atos no exercício do cargo. A decisão diz respeito ao caso que envolve o ex-presidente Donald Trump, acusado de ter tentado reverter o resultado da eleição de 2020, na qual foi derrotado por Joe Biden.
Os seis votos vencedores foram dos ministros indicados por presidentes republicanos (três deles por Trump), enquanto os três votos derrotados foram dos ministros indicados por presidentes democratas, o que explicita a dimensão política do debate: para os republicanos, a decisão da Suprema Corte respeita a Constituição e a separação de Poderes; para os democratas, a decisão viola a Constituição e cria um Poder – o Executivo – acima dos demais.
Essa divisão evidente mostra que não houve debate, e sim uma disputa politicamente motivada, cujo desfecho refletiu apenas e tão somente a aritmética – aparentemente há seis juízes dispostos a defender Trump a qualquer custo e há apenas três dispostos a condená-lo de modo implacável. Eis a miséria do debate público atual, nos Estados Unidos e em praticamente todo o mundo: não parece haver mais a possibilidade de um consenso sobre aspectos basilares da vida em sociedade e sobre o funcionamento do Estado – inclusive, ou principalmente, sobre a própria Constituição, espécie de contrato fundamental da relação entre indivíduos, sociedade e Estado.
O fato incontornável, contudo, é que a questão da imunidade presidencial é decisiva para as eleições presidenciais deste ano nos Estados Unidos, razão pela qual seu componente político é central. Um revés para Trump na Suprema Corte possivelmente o alijaria da disputa eleitoral, e não é de hoje que aquele tribunal evita tomar decisões que possam resultar na inelegibilidade de quem quer que seja.
Recentemente, por exemplo, a Suprema Corte rejeitou uma decisão judicial que havia retirado Trump da cédula eleitoral das primárias republicanas no Estado do Colorado por seu envolvimento na invasão do Capitólio em janeiro de 2021, em que seus seguidores pretendiam impedir a certificação da vitória de Biden. É interessante observar que essa decisão foi unânime – ou seja, todos os ministros da Suprema Corte, sejam republicanos ou democratas, entenderam que nenhum Estado, individualmente, pode impedir candidaturas presidenciais.
Mas o caso da imunidade presidencial reivindicada por Trump está em outro patamar. Sua intenção evidente é escapar de punição por seus crimes, a começar pela tentativa de destruir a democracia dos Estados Unidos, sobre a qual há inúmeras e inquestionáveis evidências.
Quando os formuladores da Constituição americana imaginaram o instituto da imunidade presidencial, não o fizeram para impedir que os presidentes, uma vez fora do cargo, fossem imunes a processos por crimes, sobretudo crimes contra a democracia, e sim para dar ao presidente da República conforto jurídico para tomar suas decisões de Estado, muitas das quais impopulares, duras e eventualmente violentas, sem se preocupar com eventuais processos no futuro.
Tentar reverter o resultado de uma eleição por meio de fraude e uso da força, como fez Trump, não está, ou não deveria estar, entre as atribuições oficiais de um presidente, mas, na prática, foi isso o que a Suprema Corte decidiu. Doravante, portanto, presidentes americanos são considerados formalmente inimputáveis, mesmo que atentem contra a democracia.
Era exatamente o que os pais da República americana queriam impedir. Pois não há nada mais contrário ao espírito da República que ter um chefe de Estado acima da lei, algo próprio da monarquia – em que o rei encarna a soberania e a lei, razão pela qual não pode ser sancionado de nenhuma maneira.
É com isso que Trump sempre sonhou: cometer crimes sem ser punido e, na condição de presidente, exercer o poder como bem entender, sem qualquer tipo de freio. Obviamente, digam o que disserem os republicanos da Suprema Corte e sejam quais forem as nuances jurídicas da decisão, não foi com isso que os fundadores dos Estados Unidos sonharam.
Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 05.07.24
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