Instrumento pode ser aperfeiçoado, mas projeto de lei gera prejuízos tanto para investigados como para investigadores
Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara dos Deputados - Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados
A Câmara dos Deputados anda às voltas com um projeto de lei destinado a esterilizar as chamadas delações premiadas, transformando-as em um instrumento jurídico sem nenhuma aplicação prática.
Iniciativas com esse propósito não são novidade. Em 2016, por exemplo, o então deputado Wadih Damous (PT-RJ) —atual secretário Nacional do Consumidor no governo do petista Luiz Inácio Lula da Silva— propôs vedar delações feitas por acusados ou indiciados que estejam presos.
Em 2023, o deputado Luciano Amaral (PV-AL) apresentou um texto bem mais enxuto e com redação diferente, mas preservando a mesma finalidade: considerar imprestáveis os acordos assinados por colaboradores sob efeito de privação cautelar de liberdade —isto é, prisão preventiva, temporária ou em flagrante.
Nas últimas semanas, líderes de 13 partidos do centro à direita, além do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), deitaram olhos compridos ao projeto de Amaral.
Todos podem argumentar que pretendem combater abusos da polícia, do Ministério Público e do próprio Judiciário, mas seriam necessárias doses cavalares de ingenuidade para acreditar nisso. O que eles parecem de fato querer é uma blindagem contra essa importante ferramenta investigativa.
Regulamentada pela Lei das Organizações Criminosas, de 2013, a colaboração premiada se apoia na teoria dos jogos para destrinchar esquemas ilegais que, de outra forma, restariam impunes. Seu mecanismo é simples: oferece-se ao investigado uma recompensa para ele revelar o que sabe.
Logo se vê que a delação cumpre uma função dupla. De um lado, auxilia na apuração do crime, pois o colaborador aponta caminhos e fornece indícios que talvez jamais fossem encontrados; de outro, opera como arma de defesa, já que a barganha inclui vantagens no cumprimento da pena.
A mudança que os deputados cogitam fragiliza os dois polos, porque, se aprovada, tirará do indivíduo preso a chance de amenizar sua própria situação e reduzirá os estímulos para alguém entregar os comparsas, sobretudo os mais poderosos. Ou seja, os parlamentares ameaçam subverter a lógica por trás da colaboração premiada.
Não que inexistam problemas no uso dessa ferramenta no Brasil. Há boas razões para supor que, em alguns casos, prolongaram-se prisões preventivas a fim de forçar a negociação de delações.
Daí não decorre, porém, que a reforma em tramitação na Câmara seja a solução apropriada. Longe disso, aliás. De uso recente, a colaboração é um instrumento jurídico que ainda precisa ser afiado, mas não destruído.
Editorial da Folha de S. Paulo, em 12.06.24 (editoriais@grupofolha.com.br)
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