segunda-feira, 13 de maio de 2024

Temos muito mais riqueza, mas somos seres piores, diz Pepe Mujica à Folha

Poucos dias após anunciar descoberta de tumor no esôfago, ex-presidente do Uruguai e referência da esquerda fala sobre como entende a vida e a morte e analisa a América Latina

José 'Pepe' Mujica concede entrevista à Folha em sua chácara na região de Rincón del Cerro, em Montevidéu Nicolás Garrido Monestier/Folhapress

É um típico dia de outono em Montevidéu. As rajadas de vento, o céu nublado e as intercaladas pancadas de chuva mudam o humor de José "Pepe" Mujica, 88, que não pode sair para trabalhar a terra de sua chácara em Rincón del Cerro, área rural da capital.

Há duas semanas ele anunciou a descoberta de um tumor no esôfago. Na data em que recebeu a Folha, quarta-feira (8), estava no segundo dia de radioterapia. Ainda não sentia os efeitos colaterais que, disseram os médicos, devem aparecer por volta do 15º ou 20º dia de tratamento. Era preciso se proteger das condições climáticas devido à imunidade.

Seus seguranças pareciam mais atentos a isso do que o próprio Mujica ou sua esposa, a ex-vice-presidente e ex-senadora Lucía Topolansky, 79. "Não se aproximem. Não quero ficar doente e nem que o adoeçam", diz um deles quando a reportagem chega à propriedade.

Às vésperas de seu aniversário, no próximo dia 20, quando completará 89 anos —ou 90, pois diz que há um possível erro em seu registro de nascimento—, Mujica está sentado e lê um jornal com o livro "Ética para Amador", do espanhol Fernando Savater, aberto ao seu lado. Está à vontade, usa pantufas e calça de moletom.

Nas paredes repletas de pequenos objetos da simples cozinha de teto baixo, várias conservas de tomate e fotos de Manuela, cadela que o acompanhou por mais de 20 anos antes de morrer, em 2018.

Na minúscula sala adjacente, ao lado da varanda com caixotes cheios de espigas de milho, há uma porção de livros amontoados. "Venha, isso aqui você nunca mais terá a chance de ver", diz ele, retirando de uma maleta uma réplica do diário de Che Guevara com suas últimas anotações em letra miúda numa agenda de um vermelho desbotado.

No varal ao lado de fora, as roupas seguiam expostas à garoa.

Nove anos após deixar a Presidência do Uruguai e quase quatro anos após renunciar ao Senado, Pepe Mujica fala sobre sua interpretação da vida e da morte, os desafios da esquerda na América Latina, o papel de Lula (PT), a ditadura da Venezuela e a saúde mental dos jovens.

Ainda dirige o trator, Pepe?

"Sim, ele dirige" [responde Lucía Topolansky antes do marido].

Como está sua rotina?

Agora tenho que me tratar. A única opção que tenho é um tratamento com radioterapia, que tenho que cumprir todos os dias durante umas 30 sessões consecutivas. Estou na segunda. Amanhã, a terceira.

Como foram as duas primeiras?

Não sinto nada. Me dizem que quando chegar a 15 ou 20 [dias] posso sentir algo. Mas, por enquanto, nada. Dentro da desgraça tive relativamente sorte, porque a análise celular mostra que há duas variáveis de tecido, e a que me afetou é a mais sensível à radiação. Não tenho metástase. [O tumor] está localizado em um lugar que não atravessou a parede do esôfago, e, bem, segundo eles é controlável e até erradicável. Veremos.

Dos problemas que tive na juventude, perdi um pulmão. Isso criou mais espaço para o coração, que está inclinado para a esquerda, o que favorece o tratamento.

É verdade ou é uma metáfora muito boa?

Não, é verdade, é incrível. Está um pouco desviado, os médicos riam.

O sr. tem compartilhado muitas mensagens sobre a vida, especialmente para os mais jovens.

É que isso me desespera. Eles se suicidam com frequência. Hoje chegou a mim o boato de um de 18 anos que queria se suicidar. Me dá vontade de matá-lo a pauladas. Porque o único milagre que existe é ter nascido.

Havia 40 milhões de probabilidades de nascer outro e foi você. Esse é o único milagre que existe lá em cima. Provavelmente viemos do nada e vamos para o nada. É preciso se comprometer com a vida. De repente eu pertenço a outra época.

Senadora, posso? Como a sra. tem lidado com a saúde de Mujica?

"Acredito que nesse tipo de doenças é preciso lutar. Já dizem os médicos que o doente que se desmoraliza é o que vai embora rapidamente. O doente que luta é o que perdura em qualquer situação. Então é preciso lutar. É isso que se deve fazer. E não ficar pensando, porque senão é horrível."

Como referência política da região, como avalia a situação da esquerda na América Latina?

Em geral, há uma visão muito de curto prazo no uso desses termos. Esquerda e direita são termos cunhados com a história da Revolução Francesa, simplesmente por onde se sentavam no banco. Mas eu tenho uma interpretação muito mais antropológica.

São tendências que existiram sempre ao longo da história humana. Sempre houve uma face renovadora e progressista e uma face conservadora, como as faces de uma moeda. Talvez o gênero humano em seu devir precise das duas coisas. E ambas têm problemas: a progressista tende a confundir seus desejos com a realidade, e a isso chamamos de infantilismo. E a face conservadora tende a cair no reacionário (que não é o mesmo que conservador).

Agora, contemporaneamente, a esquerda está em uma crise de ideias porque esteve muito nutrida de 1950 a 1960 por um modelo racional que inventou um homem ideológico. E não teve em conta que os seres humanos são animais emocionais. E hoje está precisando recriar um novo arsenal de ideias que se encaixem mais com uma visão mais biológica do que é o homem. Agora estamos com outro desafio.

Nós somos animais sociais, não podemos viver sozinhos. E esse caráter gregário foi o que nos fez progredir. Aprendemos a caçar em grupo, nos movemos em grupo. A tal ponto que, em toda aldeia primitiva, depois da pena de morte, a pena mais grave era ser expulso da comunidade. Somos humanamente dependentes dos outros, e então andamos com essa contradição: precisamos da sociedade, mas somos indivíduos e temos essa cota de egoísmo. Este é o papel da política: tem que lutar para sobreviver na sociedade.

Como as gerações que vêm resolverão isso? Não sei.

Quais ideias fazem parte dessa nova visão da esquerda?

Acredito que agora estejamos em um tempo meio de impasse. Com um progresso técnico fantástico e com muita gente infeliz. Há muitos com problemas com angústia, com a necessidade de ir a um psicólogo. Qual é o sentido do progresso econômico se não sentimos felicidade em viver? Este é o desafio que temos pela frente. Estou prestes a completar 90 anos...

Oitenta e nove, não?

Oitenta e nove, mas na verdade são 90, porque 1 ano não foi registrado.

Meu pai morreu quando eu tinha 8 anos. E eu me lembro de ter ido três vezes para assistir aos dois maiores times do Uruguai, Nacional e Peñarol. As torcidas estavam misturadas na mesma arquibancada, e cada um gritava seu gol e não acontecia nada. Agora nós nos matamos. E estou falando de 80 e poucos anos atrás.

Não progredimos moralmente em nada. Pelo contrário, regredimos. Mas temos muito mais carros, telefones, conforto. Mas moralmente? Como sociedade? Estamos piores do que antes.

E temo que isso esteja acontecendo em todo o mundo. Muito mais riqueza, mas nós somos piores. E também somos mais débeis. Somos infinitamente mais débeis do que os homens primitivos.

Sei que já te perguntaram isso, mas há algum arrependimento por não ter tido filhos?

Eu me dediquei a consertar o mundo e não pude ter filhos porque estava ocupado. Mas digo como aquele poeta Atahualpa Yupanqui [argentino; 1908-1992]: Tenho tantos irmãos que nem posso contá-los.

Sobre o Brasil, como o sr. avalia o governo Lula?

Acredito que ele tenha ganhado as eleições porque era o Lula. Senão, Bolsonaro teria continuado. Lula teve que fazer concessões e uma aliança para o centro, muito forte, para tentar unir tudo o que era um espaço mais ou menos democrático para frear a extrema direita. Naturalmente isso vai ter efeitos. Não acredito que Lula possa fazer um governo muito radical à esquerda. Este será um governo moderado. E ele sempre foi muito moderado. Ele propunha uma revolução...

Propunha uma revolução?

Sim, que as pessoas pudessem comer três vezes ao dia. Para quem não tem comida, isso é uma revolução. Para quem sonha com a revolução, é pouco.

O Brasil assumiu responsabilidades no mundo. É evidente que no cenário internacional é respeitado. E não se surpreenda se, no segundo semestre, quando houver uma reunião em Nova York convocada pelo secretário-geral da ONU para reformá-la, uma dessas mudanças for a proposta de que o Brasil entre no Conselho de Segurança como membro permanente.

Como o sr. vê a dificuldade da esquerda no Brasil de renovar seus quadros?

Tenho a mesma preocupação. E depois de Lula? Este é um desafio que o Brasil e toda a nossa América têm, dada a importância do Brasil.

Recentemente, em mais um aniversário do golpe militar no Brasil, Lula não permitiu que os ministros fizessem atos para relembrar este episódio. Como interpreta a relação da esquerda na América Latina com os militares?

A justiça historicamente é conhecer a verdade. Mais do que prender pessoas, é conhecer nossa verdadeira história. Há uma época sepultada que não será eliminada por decreto, por vontade dos governos, estará sempre latente. Eu pensava há alguns anos: até que todos os atores [da ditadura] morram, isso continuará. E então estive na Espanha, onde todos os atores morreram e estão procurando ossos [das vítimas]. Isso significa que as coisas permanecem. Portanto, é melhor tentar esclarecer a verdade. Que a verdade resplandeça. Também não posso comprometer o hoje das pessoas para salvar uma conta do passado. Mas não se pode encobrir a vergonha.

É uma mensagem para o governo Lula?

Acontece que eu entendo [a situação]. Lula tem o acampamento de Bolsonaro ali, que está propondo exatamente o oposto. Tem um desafio na história recente do Brasil, houve até uma tentativa de golpe. Eu entendo a ambivalência.

Vamos falar de Argentina. Qual sua opinião sobre o governo Milei?

Uma loucura. É consequência da desesperança que pode gerar em uma sociedade o fenômeno da hiperinflação. Foi o que aconteceu com a República de Weimar na década de 1930. O povo mais culto, mais desenvolvido da Europa, acabou votando em Hitler. Uma loucura total. Os povos podem errar, porque a hiperinflação desespera as pessoas. E então eles são capazes de apostar em qualquer coisa que seja contra.

A hiperinflação de alguma forma é resultado dos governos Kirchner.

Sim. E eles não assumem a responsabilidade. O pior é que não há uma visão autocrítica porque isso não aconteceu por ordem dos deuses, aconteceu por erros humanos.

Bolsonaro também foi uma consequência de erros dos governos de esquerda?

É provável que sim. Há uma tendência contemporânea, consequência da macrocultura consumista na qual estamos imersos: sempre temos uma necessidade de ter mais, de comprar mais. Esse é o triunfo cultural do capitalismo que controla nosso capital subliminar. E então as pessoas se sentem frustradas e tendem a votar contra o que está aí sem ter clareza do que estão votando a favor. Votam em qualquer coisa.

Tenho que mencionar o que aconteceu no México, de como os antigos partidos mexicanos foram esquecidos, e López Obrador ganhou com 53% dos votos [em 2018]. E o México se tornou de esquerda? Não seja tolo. Não. As pessoas estavam pensando que fosse um perigo latente. Há uma grande instabilidade política no mundo ocidental, isso é evidente.

Em algumas semanas teremos eleições no México. É provável que Claudia Sheinbaum, a candidata de López Obrador, vença. O que achou desses seis anos de governo dele?

Ele trouxe algo. Esse espaço que ele tem todas as manhãs falando [as mañaneras] marcou a agenda de todo o sistema. Ele é um militante ferrenho.

Mas é um democrata?

Para o México, ele é um democrata. O problema do México é o que dizem: tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos.

Mas nas mañaneras ele ataca a imprensa quase todos os dias. Além disso, está muito próximo dos militares.

O México é complicado. Tem um problema de tráfico de drogas brutal. Mas ele vai sair e é muito provável que o partido dele vença. Depois não sei o que vai acontecer.

Recentemente, o presidente uruguaio, Lacalle Pou, e Milei estiveram juntos em um evento de economia. Lacalle disse que, para a população ter dignidade, é necessário um Estado. Isso vai contra o discurso de Milei. Qual é o papel do Estado?

Eu não sei qual é o papel ideal, mas posso dizer que o Estado no Uruguai tem historicamente um peso. Nós tivemos primeiro o Estado e depois a nacionalidade. Tivemos governos peculiares para a história da América Latina, muitos deles sociais-democratas. Governos que concederam o divórcio à mulher por sua própria vontade, que reconheceram as 8 horas de trabalho nos anos 1910. Tivemos um presidente que escrevia "Deus" com minúscula, Don José Batlle y Ordóñez, que separou a igreja do Estado, tornando o país laico. Mudou todos os nomes: aqui não se fala Semana Santa, é semana de turismo. O dia da Virgem é o dia das praias.

Lacalle não pode escapar da importância do Estado. Ele vai para a Argentina e tem um pensamento em algumas coisas alinhado com Milei, mas não pode cair na barbaridade de Milei. Jamais. A história do Uruguai não permitiria isso.

Houve uma certa surpresa quando o sr. fez críticas ao processo eleitoral na Venezuela por causa do impedimento de candidaturas opositoras. Acha que haverá um pleito justo?

A Venezuela tem a tragédia do excesso de recursos naturais. É um país deformado pelo petróleo. Os Estados Unidos sempre precisam de petróleo porque é mais barato para o transporte. Sempre se intrometeram na Venezuela. E essa luta tem sido venenosa.

Como a democracia vai sobreviver com um governo cercado, agredido por todos os lados? Sabe por que Maduro perdura? Porque não há democracia. Em uma praça sitiada, qualquer um que discorde é um traidor. E a democracia precisa de liberdade. O regime de Maduro é consequência do cerco que veio de fora. É um desastre.

Quando se diz que é uma consequência de um processo de bloqueio, parece que está se tirando a culpa do regime.

É verdade, mas eu sou muito velho. E tenho experiência. Há um costume, do qual discordo, de que o bloqueio pune os governos. Não, pune os povos. É um crime contra os povos, porque os governos não sofrem nada, continuam comendo e bebendo. Maduro está gordinho.

Claro que Maduro tem responsabilidade. [Hugo] Chávez é muito diferente de Maduro. Ele perdeu as eleições [Chávez foi derrotado em um referendo em 2007 no qual propunha, entre outros pontos, a reeleição ilimitada; ele a obteve dois anos depois, em nova consulta popular] e aceitou. É diferente da Revolução Cubana, que assumiu uma decisão da qual se pode discordar, mas foi definitiva: partido único, ditadura do proletariado. Agora, no caso da Nicarágua, no caso da Venezuela, eles brincam com a democracia, dizem que haverá eleições, depois colocam as pessoas na cadeia. Ou é uma coisa ou outra. É dizer a verdade e assumir.

A democracia tem defeitos, não é perfeita. Como Churchill disse: é a pior forma de governo, exceto por todas as outras que tentaram. Mas de qualquer forma, para conviver, é muito superior. Eu também não concordo com a ideia de que a democracia representativa que temos é a última história da humanidade. Não, não posso pensar tão mal da humanidade. Acredito que a humanidade vá buscar algo melhor. Porque, se nos tirarem a esperança, para que vivemos?

Queria voltar um pouco ao nível pessoal. O sr. gosta de ser uma referência para os líderes, militantes, jovens de esquerda?

Na sociedade moderna, há uma crise de avô. O avô é uma figura antropológica que desapareceu porque a família diminuiu. Na história humana, os avós desempenharam um papel. Na história dos povos antigos, a instituição mais antiga do ponto de vista político é o conselho dos anciãos. Não é o governo. É aquele que aconselha e tem duas missões: dizer o que deve ser feito e educar as crianças.

No mundo antigo, a única maneira de aprender algo era vivendo. Então os mais velhos transmitiam a herança do conhecimento. Tive a sorte de ter vivido muito e sou velho, então a única ferramenta que tenho é a palavra para dizer algo, ajudar a pensar.

Como o sr. pensa o tema da morte?

A morte é talvez o que dá valor à vida. Tudo o que é vivo está condenado a morrer. Qual é a diferença que a vida tem das pedras? A vida pode sentir dor, alegria, tristeza, desejo. Parece que temos a função de emprestar uma inteligência ao mundo da vida. Às vezes acreditamos ser donos. Não, somos parte. Mas queremos continuar vivendo. Nossa maneira de lutar contra a morte é uma luta impossível que sempre perderemos, mas lutamos com amor.

Não podemos escapar, porque somos um programa biológico para isso. Aí está a nossa grandeza e nossa tragédia. E fazemos perguntas eternas que não têm resposta. Se a vida tem um sentido. Se há um além. Mas certamente desempenhamos um papel na natureza. Pelo menos, estragamos tudo. Complicamos a vida dos outros bichos.

RAIO-X | JOSÉ "PEPE" MUJICA, 88

Presidiu o Uruguai de 2010 a 2015, após ser ministro da Agricultura e da Pecuária e deputado. Em 2020, durante a pandemia, renunciou a sua vaga no Senado. Ex-guerrilheiro e líder tupamaro, ficou preso de 1972 a 1985. Um dos principais nomes da Frente Ampla, lidera o MPP (Movimento de Participação Popular), um dos partidos da coalizão.

Mayara Paixão, Jornalista, de Montevidéu (Uruguai)  para a Folha de S.Paulo. Publicado originalmente na edição impressa, em 12.05.24, às 23h15

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