Verdade não tem muito valor no cotidiano brasileiro
Tim Maia: 'Eu não bebo, eu não cheiro, mas minto um pouco às vezes' — Foto: Antonio Nery
O que veio primeiro: o político mentiroso ou o eleitor que inventa mentiras? Melhor seria perguntar: por que deixamos de acreditar na verdade?
Não é correto dizer que Bolsonaro, na extrema direita, tampouco Lula, na esquerda, sejam os primeiros a se valer de inverdades como instrumento político. No Brasil, o recurso à traquinagem tem tradição, régua e compasso.
Não indo muito longe, podemos ficar na eleição de Artur Bernardes no problemático 1922. Ano do centenário da Independência, da Semana de Arte Moderna e da revolta dos 18 do Forte de Copacabana, quando alguns tenentes quiseram derrubar o governo à bala (a coisa vem de longe). No meio da campanha, surgiram várias cartas creditadas a Bernardes, recheadas de ataques ao marechal Hermes da Fonseca, chamado de “sargentão sem compostura”. Eram apócrifas, inventadas pelos partidários de Nilo Peçanha, que seria derrotado nas urnas. Mesmo desmascaradas, as mentiras serviram para azedar a relação de Bernardes, obrigado a governar sob estado de sítio, com os militares.
(Vale lembrar que também Bernardes era um tipo desarrazoado. Entre outras bobajadas, mandou prender o grande Sinhô, autor da marchinha carnavalesca “Fala baixo”, cujos versos denunciavam a censura do governo e a maldosa alcunha do presidente: “Vem cá, Rolinha, vem cá”. Não se sabe o motivo, mas Bernardes não gostava de ser chamado de rolinha.)
É possível que os políticos tenham começado a mentir porque nem sempre os eleitores gostassem da verdade dita na cara. Um exemplo eu presenciei. Em 1985, no debate pela prefeitura de São Paulo, o jornalista Boris Casoy perguntou a Fernando Henrique Cardoso se ele acreditava em Deus. O candidato se enrolou na resposta, não disse nem sim nem não. Os eleitores não gostaram da disfarçada sinceridade e não elegeram um notório ateu, preferindo Jânio Quadros. No mesmo debate — num exemplo de como a política mudou —, fizeram um quiz com Eduardo Suplicy, candidato do PT: quanto custa um pãozinho francês? Ele mandou lá um valor bem alto. Comentaram: “Isso é preço de croissant, Eduardo!”.
A maioria dos eleitores parece não gostar da verdade, mesmo porque ela não tem muito valor no cotidiano brasileiro. O filósofo Tim Maia resumiu a peleja e alma da nossa gente:
— Eu não bebo, eu não cheiro, mas minto um pouco às vezes.
Aí chegamos a outra equação, assim resumida: o político mente para agradar ao público ou o eleitor não dá voto a quem se mostra cru e sincero? Difícil questão, porque em muitos momentos sabemos que estamos sendo enganados.
Vamos mais perto na História. Na eleição de 2022, Lula da Silva se apoiou numa aliança da centro-direita à esquerda para derrotar Bolsonaro. Disse que faria um governo de reconstrução e harmonia. Tá bom. Tebet e outros tantos brasileiros sabiam que daquele mato não sairia nada. De fato, só saiu nota oficial da Janja. A razão do faz de conta — expulsar Bolsonaro do poder — parecia ser um atenuante tolerável para engolir a mentira eleitoral. Então o jogo político se resume a estratégia e, portanto, o blefe é recurso válido. Ou a mentira, em alguns casos. Como quando se elogia Nicolás Maduro por representar uma invejável democracia sul-americana. (O improviso de Lula provavelmente envergonhou até a Gleisi.)
Parte do eleitorado petista sabe que a Venezuela vive sob um regime autoritário e sanguinário, assim como os comunistas brasileiros tinham informações dos crimes cometidos por Stálin. Em nome da causa, se escondem os fatos, e são criadas inverdades. Quantas mortes teriam sido evitadas se a esquerda mundial houvesse protestado contra Stálin? Milhões, por certo. Ou quantos venezuelanos deixariam de ser presos políticos se Lula ousasse dizer o que o mundo denuncia? Milhares, com certeza.
Talvez seja o caso de o eleitor se olhar no espelho e saber que sua postura legitima a mentira do governante. No caso, talvez o político seja mesmo apenas um servidor público, aquele que cumpre ordens. Um pau-mandado? Não dá para dizer que é um pobre de um coitado agindo contra seus princípios, dando a vida por uma causa perdida e violentando-se em nome do bem comum — bem, isso já seria demais. Mas, pensando melhor, não se pode esquecer que a maioria dos bolsonaristas desmente que o 8 de Janeiro tenha sido uma malsucedida tentativa de golpe.
Se no Brasil até o passado é incerto, como se diz por aí, é porque o país do futuro talvez seja de fato outra mentira.
Miguel de Almeida o autor deste artigo, é editor e diretor de cinema. Publicado originalmente n'O Globo, em 20.05.24
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