Decisões absurdas (como as que anularam condenações da Lava-Jato) criaram a percepção geral de que, vindo do STF, tudo é possível
Presídio Federal de Mossoró (RN), de onde dois presos fugiram: segurança máxima? — Foto: Reprodução/Senappen
O portal de notícias g1 publicou nesta semana:
— Circula nas redes sociais uma imagem que imita a aparência de uma página do g1 com o título: “Moraes dá 24 horas para Elon Musk entregar o passaporte e a chave do foguete SpaceX na Polícia Federal e proíbe o bilionário de deixar o planeta”. É #FAKE.
Era mesmo preciso dizer que se tratava de feiquenius? Pelo jeito, era. A ordem para entregar a chave do foguete (!) e a proibição de deixar o planeta (!!) não seriam indícios de sobra para caracterizar uma piada sobre os eventuais excessos do ministro Alexandre de Moraes? Aparentemente, não. Decisões absurdas (como as que anularam condenações da Lava-Jato) criaram a percepção geral de que, vindo do STF, tudo é possível.
Este deve ser o maior desafio no enfrentamento à desinformação: termos chegado ao ponto em que ironia, sarcasmo, deboche, mentira deslavada e realidade pareçam intercambiáveis — e indistintamente críveis ou risíveis. Num país que censura piadas, não espanta que alguém, além dos censores, as leve a sério.
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Depois da fuga espetacular de um presídio “de segurança máxima” (era carnaval e, ao contrário do vergalhão arrancado da parede de concreto, ninguém ali é de ferro), noutro presídio (de segurança não tão máxima assim), o acesso a drogas sintéticas é tão fácil que 13 presos morreram de overdose nos últimos meses. Responda rápido: feique ou fato?
Tribunal racial da USP: fato ou feique? Só pode ser mentira: experts de régua e paquímetro em punho, medindo narizes para identificar origem étnica fazem parte de momentos infames da História. Pois a USP — e não só ela — tem, sim, seu tribunal racial — eufemisticamente chamado de “comissão de heteroidentificação”, que escrutina largura de narizes, espessura de lábios etc., para definir se o candidato a cotista é preto o suficiente.
Não haverá por que duvidar do anúncio de cotas para pessoas do espectro LGBTQIAP+ — afinal, o sistema já contempla pretos, pardos, indígenas, quilombolas, PcD etc. E se for noticiada a criação de comitês de homo-heteroidentificação, a que caberá decidir se alguém é gay o bastante — é para acreditar ou não?
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Se circular na internet a volta do Felipão, convocando para a Copa de 2024 o mesmo time daquele 7 x 1 no Mineirão, devemos rir da piada, desconfiar da notícia ou fugir para as colinas? Pois Lula chamou para assessorá-lo a equipe de Dilma Rousseff, que quase quebrou o setor elétrico em 2012. Como encontraremos as colinas, no escuro?
Reconhecendo haver dados incompletos, o grupo terrorista Hamas reviu a contagem de mortos em Gaza e divulgou que esse número está em torno de 22 mil. Israel estima ter eliminado 13 mil militantes, o que implica assumir cerca de 9 mil civis (homens, mulheres e crianças) como vítimas inocentes dessa barbárie. Dias antes, o presidente Lula havia lamentado a morte de 12,3 milhões — só de crianças! Será que o PL 2.630/2020, que trata do combate à desinformação, puniria as redes sociais que divulgassem a fala presidencial? Estaria o presidente protegido pelo sagrado direito à liberdade de expressão para, ao sabor do entusiasmo ou das conveniências, converter milhares em milhões — ou bilhões em zero, no caso dos escândalos de corrupção dos seus governos?
No Brasil, o impossível não é apenas provável, como acontece com desconcertante regularidade. Vai acabar sendo mais simples deixar de lado as feiquenius e focar nas notícias verdadeiras. As trunius darão bem menos trabalho.
Eduardo Affonso, o autor deste artigo, é arquiteto e cronista. Publicado originalente n'O Globo, em 13.04.24
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