O medo acompanha-nos do nascimento à morte, é inerente ao ser humano. Se por um lado é positivo, pois nos leva a sermos cautelosos e evitarmos o perigo, por outro pode impedir-nos de vivenciar novas experiências, enfrentar desafios, alcançar a plenitude de nossas potencialidades.
Muito se escreve sobre o medo. São centenas de livros destinados a crianças, procurado ajudá-las a enfrentar este sentimento, outros à psicologia, psicanálise e autoajuda. Há também jogos que podem auxiliar crianças a dominar o medo [1] e até na música, onde o cantor Belchior ensina como os adultos podem evitá-lo em voo de avião.[2]
O medo pode ser também um instrumento de controle social. Em regimes totalitários, a dominação pode ser exercida por ameaças explícitas ou veladas à liberdade dos críticos. No passado, por ameaças de castigos físicos, no presente, através de processos criminais e prisão. Como afirma Leonardo Gominho, é uma arma que permite a condução despercebida de uma massa sedenta por um líder, e que está muitas vezes disposta a ficar no seu mundo de inverdades, pois é ali que tudo é mais bonito, e o mundo é “cor de rosa”. [3]
Pois bem, se o medo faz parte da vida, evidentemente ele também fará parte da rotina dos juízes. E se é compreensível em algumas profissões, como a do equilibrista a caminhar sobre uma corda, ele é inaceitável naqueles que assumem o dever de dizer a cada um o que é seu. Em síntese, é compreensível que o juiz tenha medo, mas não se admite que ele permita que este sentimento interfira na sua atividade profissional.
Paulo Sérgio Leite Fernandes, experiente advogado criminalista, em entrevista a esta ConJur, no ano de 2013, foi taxativo ao dizer que o medo é o maior defeito do juiz. [4]
Juiz corrupto
Diante deste quadro, o leitor mais atento poderá pensar: não será o juiz corrupto pior que o medroso? A resposta é dada por Edgard de Moura Bittencourt, que nem mesmo considerava um juiz corrupto como juiz, afirmando que ele pode estar vestido com uma toga, que não cobrirá um magistrado mas uma repelente ferida social. [5] Assim também penso.
Spacca
O medo pode apresentar-se de formas diversas ao longo da carreira do juiz. Algumas vezes virá dissimulado por cautela. Em outras, sob a capa da responsabilidade. Por vezes, cinicamente, como argumento de não ser possível outra conduta.
O juiz pode ser medroso a partir do dia da posse, achando que assumir em uma comarca distante, por vezes carente de recursos e entretenimento, será um fardo pesado em sua vida e, a partir daí, não assumir ou, logo ao início, criar situações para retornar à origem (v.g., pleiteando designações em outros locais, invocando má saúde dos ascendentes, união familiar etc.).
Tal conduta é errada sob todos os pontos de vista. Primeiro, porque ao fazer o concurso sabia da existência de lugares mais difíceis. Segundo, porque é nesses locais que, por vezes, encontra-se a felicidade.
O medo pode revelar-se no decidir. Faço ou não faço, estarei certo ou errado. Estas dúvidas são normais, desde que dentro de limites certos. Não é possível a cada pedido de liminar passar a noite acordado. E mais, decidiu, não se pensa mais no assunto, o problema passa à segunda instância.
O medo da impopularidade merece especial destaque. Sidnei Agostinho Beneti, com a autoridade de uma vida dedicada à magistratura, coloca entre os defeitos principais de um juiz, o temor diante da pressão da mídia e de forças sociais componentes da comunicação social. [6] É o que o juiz francês Antoine Garapon chama de a jurisdição das emoções. [7]
Atualmente, a pressão das notícias na internet sobre temas do momento, como meio ambiente, racismo, assédio, disputa política, animais e outros, leva os juízes a temerem assumir uma posição sujeita a críticas. Nada mais errado. O compromisso de um magistrado bem-intencionado é com a imparcialidade e não com a popularidade. Ser criticado faz parte das funções.
Medo de impor a sua autoridade é outra possível falha. O juiz preside as audiências e atualmente, mais do que nunca, surgem incidentes. Nas realizadas online há situações inacreditáveis, como a testemunha depor almoçando ou o advogado surgir na tela de camiseta. Nenhum incidente se resolve com gritos ou ameaças, mas sim com serenidade e amadurecimento. E para isto, a primeira condição é que o juiz conduza o ato com formal delicadeza, educação e respeito a todos os presentes.
A segunda condição é que esteja preparado para solucionar os possíveis incidentes e aí cabe papel de destaque às escolas da magistratura. Por exemplo, suspender o ato por 10 minutos pode acalmar os ânimos e encerrar polêmicas. A terceira condição é, em casos extremos, adiar a audiência, desde logo remarcando-a para um dia próximo, evitando que isto possa beneficiar o alongamento do processo desejado por uma das partes.
Surpreendente é o medo de decidir contra políticos, temendo uma vingança que na maioria das vezes nunca ocorrerá. A única hipótese certa de revanche será a daquele que concorre a um cargo em Corte Superior e desagrada um líder político do estado, ligado à chefia do Poder Executivo Federal.
Daí o troco virá, com juros e correção monetária. Mas esta é uma hipótese rara e que não deve mudar o posicionamento do desembargador. Se ele se recusa a exercer corretamente as suas funções para alcançar uma posição acima, já demonstrou sua incapacidade para estar onde está ou para onde deseja ir.
Medo de divergir e desagradar os colegas. Não se trata de ser contra tudo e contra todos, mas de dar voto divergente em julgamentos colegiados ou discordar de medidas administrativas tomadas pela direção do Tribunal.
Pensar diferente
Por óbvio, pensar diferente não significa manifestar-se de forma desrespeitosa. Judiciário não é órgão do Legislativo, onde as discussões são feitas com forte tonalidade política. Baltasar Gracián, em obra clássica sobre a convivência humana, no século 17I, já alertava que um mau modo tudo estraga, até a justiça e a razão. [8]
O medo pode alcançar atividades administrativas. Não raramente desembargadores evitam os cargos de direção, face às múltiplas dificuldades existentes. Muitos optam pelo conforto da vice-presidência, onde aborrecimentos e riscos são menores.
Sim, pois não é fácil ser corregedor e ter que apurar erros de juízes, muitas vezes pessoas conhecidas. Da mesma forma, ser presidente e sofrer pressão para conceder benefícios nem sempre legítimos ou administrar querelas internas.
No entanto, fugir do desafio, optar pela comodidade da rotina, pode até ser cômodo no momento, mas gerará um arrependimento posterior, porque quem nada arrisca, nada tem a contar, passa uma existência profissional opaca e sem recordações.
Em suma, prudência sim, medo não, valendo como lembrança a advertência de Kierkgaard citada por José Renato Nalini: Atrever-se, assumir riscos, é perder o pé momentaneamente. Não arriscar-se é perder a si próprio para sempre. [9]
[1] VOLPATO, Camila. Caixa dos Medos. Disponível em: https://www.sinopsyseditora.com.br/material-terapeutico/caixa-dos-medos-estrategias-de-enfrentamento-e-reestruturacao-cognitiva-do-medo-ric-jogos-3198. Acesso em 13 abr. 2024.
[2] GOOGL Letras. Antônio Carlos Belchior. Medo de Avião. Disponível em: https://www.google.com/search?q=letra+da+m%C3%BAsica+medo+de+ai%C3%A3o%2C+com+Belchior&rlz=1C1SQJL_pt-BRBR863GB863&oq=letra+da+m%C3%BAsica+medo+de+ai%C3%A3o%2C+com+Belchior&gs_lcrp=EgZjaHJvbWUyBggAEEUYOTIICAEQABgWGB7SAQoxNDg2MGowajE1qAIIsAIB&sourceid=chrome&ie=UTF-8. Acesso em 13 abr. 2024.
[3] GOMINHO, Leonardo. JUSBRASIL . O medo como elemento de controle social: Perspectiva analítica do filme “A Vila”. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/o-medo-como-elemento-de-controle-social-perspectiva-analitica-do-filme-a-vila/371024319. Acesso em 13 abr. 2024.
[4] FERNANDES, Paulo Sérgio. Medo é maior defeito do juiz, diz Paulo Leite Fernandes. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 30 mar. 2013. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2013-mar-30/maior-defeito-juiz-hoje-medo-paulo-leite-fernandes/. Acesso em 13 abr. 2024.
[5] MOURA BITTENCOURT, Edgard de. O Juiz.São Paulo : EUD, 1982, P. 30.
[6] BENETI, Sidnei Agostinho.Da conduta do juiz. São Paulo: Saraiva, 2ª. ed., 2000, p. 176.
[7] GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia. Rio de Janeiro: Revan, 2ª. ed., 1999, p. 99.
[8] GRACIÁN Baltasar. A arte da prudência. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 36.
[9] Kierkgaard, apud NALINI, José Renato. A rebelião da toga. Campinas :Millenium, 2006, p. 286.
Vladimir Passos de Freitas, o autor deste artigo, é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador Federal aposentado, ex-Presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus). Publicado originalmente no Consultor Jurídico, em 14.04.24
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