É um avanço ver o diálogo civilizado entre o ministro da Justiça e a bancada da bala no Congresso
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, foi nesta semana a uma audiência da Comissão de Segurança Pública da Câmara e de lá saiu com um triunfo imprescindível para um País cindido e polarizado: a retomada da liturgia da democracia, aquela segundo a qual se assenta o princípio elementar de convivência respeitosa entre contrários, a busca de consensos e a relação harmoniosa entre representantes de dois Poderes. A comissão é um espaço de maioria oposicionista e concentrada na chamada bancada da bala, e parlamentares bolsonaristas não hesitaram em provocar o ministro e demarcar suas diferenças, sobretudo na política de armas. Mas nem a oposição nem o convidado ficaram presos nas armadilhas das discordâncias, como se inimigos fossem.
Lewandowski tratou os parlamentares não como irresponsáveis armamentistas, mas como lideranças experientes no assunto. Sugeriu canal de diálogo em torno de pontos pleiteados pela bancada, como o direito adquirido de clubes de tiro fechados por decreto. Deixou alternativas em aberto para acomodar demandas e criticou a inflexibilidade em relação à oposição – recomendação a ser ouvida por muitos dos seus colegas ministros, do PT e do próprio Palácio do Planalto, que costumam enxergar oposicionistas ou como potenciais cooptados ou, repetindo os métodos do ex-presidente Jair Bolsonaro, como inimigos a serem aniquilados. Em contrapartida, foi elogiado. O próprio presidente do colegiado, Alberto Fraga (PL-DF), prometeu no início da sessão que o ministro não seria destratado. E não foi.
A demonstração de civilidade na comissão é mais notável quando se observa o atual panorama das relações entre Executivo, Legislativo e Judiciário e sua espiral descendente de revanches e conflitos (ver o editorial Freios e contrapesos em frangalhos, 18/4/2024). E mais ainda quando se recorda das diatribes produzidas pelo antecessor de Lewandowski. Quem não se lembra das ruidosas polêmicas protagonizadas por Flávio Dino? À época, substituía a liturgia do cargo pela vocação exibicionista, opinava histrionicamente sobre tudo e sobre todos, fustigava adversários, fazia prejulgamentos sobre casos e se convertia numa espécie de influencer militante, mais preocupado em atingir corações e memes nas redes sociais do que zelar pelas funções do cargo.
A mudança não ocorre sem riscos. Há um equilíbrio tênue a buscar, sobretudo num terreno onde não faltam convicções enraizadas. O próprio ministro deu um exemplo disso, o veto ao artigo da nova Lei de Execuções Penais que proibia saídas temporárias de presos por razões familiares. Por outro lado, a bancada da bala claramente pressionou Lewandowski contra uma diretora da pasta que ajudou a elaborar o decreto que reviu a política de controle de armas. A resposta do ministro deu sinais de que pode rifá-la.
Já se trata, porém, de um avanço extraordinário poder assistir a uma audiência do ministro da Justiça sem parecer que estamos diante de um teatro de guerra ou de animadores de auditório. A liturgia da democracia dá mais trabalho, mas é o melhor caminho para aperfeiçoar ideias e reconstruir o País.
Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 19.04.24
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