Não deveria causar nenhuma surpresa que a aprovação do governo Lula tenha caído entre os evangélicos
Políticos, em busca incessante pelo voto, são frequentemente orientados por visões unidimensionais, como se o ser humano fosse regido por apenas um tipo de interesse ou desejo. Ainda recentemente, o presidente Lula se teria dito perplexo por sua queda de popularidade, como se sua concepção de certas melhorias sociais não tivesse sido compreendida. O problema revela, isso sim, uma apreensão equivocada, senão restritiva da natureza humana, tendo como consequência a compreensão de que o voto seria exclusivamente ou predominantemente orientado por certos avanços nos domínios sociais e econômicos. Os valores, nessa perspectiva, desapareceriam do horizonte propriamente político e eleitoral.
A natureza humana caracteriza-se por uma multiplicidade de fatores, todas as pessoas procurando ser atendidas das mais diferentes maneiras, uns se contrapondo aos outros. Uns agem segundo desejos sexuais dos mais diversos tipos, hetero ou homossexuais, e ainda aqui conforme uma imensa variedade de comportamentos. Outros agem por interesses econômicos, desde os salariais até os que visam ao lucro, e também seguindo passos que diferenciam enormemente uma pessoa de outra. Alguns almejam ser empreendedores; outros, assalariados; outros, sindicalizados; outros, ricos; outros, detentores de uma renda média conforme a profissão escolhida.
Outros agem segundo valores de cunho religioso, oriundos do culto determinado que professam. E aqui a diversidade é grande na escolha de uma religião e no interior de cada uma delas. Judeus, católicos, muçulmanos, protestantes, evangélicos e cultos de origem africana são, na maior parte dos casos, contraditórios entre si, nem mesmo a noção de um Deus único podendo uni-los. Outros desprezam todas as religiões afirmando-se como ateus, sendo sua bússola uma ideia determinada de moralidade ou humanidade, tendo como fonte formulações céticas e iluministas dos séculos 17-19. Outros, ainda, procuram fazer uma mescla de diferentes visões de desejos, interesses e concepções de mundo. O interesse político, sob essa ótica, seria somente um entre os inúmeros em jogo.
Os primeiros cristãos são um belo exemplo do que está em questão. Afirmaram sua fé de uma maneira inquebrantável, preferindo a morte à abjuração de sua crença. Entre abandoná-la e serem devorados pelos leões, optaram pela morte, baseando-se nos novos valores que então defendiam e que viriam a se afirmar mundialmente. Os romanos, diante desse quadro, ficaram perplexos, uma vez que estes novos crentes agiam segundo novos padrões de conduta, de moralidade e valores, em tudo diferentes da racionalidade romana. Esta, racional no sentido ocidental, jurídica e estatal, não conseguia captar o que de novo se afirmava. A luta pelos valores durou aproximadamente quatro séculos, quando os cristãos se tornaram os novos governantes, tendo a nova mentalidade se tornado vitoriosa. No século IV, Santo Agostinho é seu grande pensador.
Atualmente, os evangélicos, entre nós, mas igualmente em outros lugares, como nos EUA, mostram um comportamento que não se deixa reduzir aos padrões políticos das melhorias sociais e econômicas. O governo, diante dessa situação, só consegue expor a sua perplexidade, visto que não consegue compreender a diversidade dos comportamentos humanos e, mais especificamente, a relação estreita entre voto e valores. Na concepção petista, as pessoas mais desfavorecidas buscariam apenas um trabalho assalariado, de preferência com a escolha de um sindicato amigo, enquanto os evangélicos estão muito centrados na ideia do empreendedorismo, da iniciativa individual e do mérito, buscando a autonomia financeira.
Na concepção petista, Israel é um país colonizador e os judeus são os novos opressores, numa retomada do antissemitismo clássico, enquanto para os evangélicos Israel é o povo de Deus, do qual seriam os sucessores. Agem seguindo a fé, alicerçada na Torá ou, segundo a linguagem cristã, no Antigo Testamento. Na visão petista, que se diz “progressista”, as pessoas deveriam se comportar conforme o politicamente correto, confrontando diretamente com a visão tradicional dos evangélicos, contrários ao aborto, ao casamento homossexual e à educação sexual em escolas segundo a perspectiva de esquerda.
Não deveria, portanto, causar nenhuma surpresa que a aprovação do governo Lula tenha caído entre os evangélicos. Estão atônitos porque pouco conseguem compreender do seu comportamento, orientado segundo valores. Pautam-se pela ideia de que a mera mudança das condições socioeconômicas, orientada por uma “narrativa” bem construída, poderia alterar essa situação. O reducionismo reaparece de uma forma nítida. Na verdade, não conseguem compreender a diversidade do comportamento humano, tudo reduzindo a interesses político-sociais, e, sobretudo, menosprezando a relação intrínseca entre voto e valores. Não tem como dar certo!
Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo, é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto d'O Estado de S.Paulo. Publicado originalmente em 25.03.24
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