Os bandidos do caso Marielle são doutores ou policiais
Domingos Brazão desembarca do avião da PF em Brasília — Foto: Cristiano Mariz
Desvendada a trama do assassinato de Marielle Franco, resulta que nela não havia um só bandido desorganizado, daqueles que assaltam, roubam casas ou celulares. Um era chefe da Polícia Civil do Rio; outro, conselheiro do Tribunal de Contas; seu irmão, deputado federal; o pistoleiro e seu motorista, ex-PMs. Essa casta não rouba carros, alguns usam veículos oficiais.
Pior: Marielle foi assassinada porque atrapalhava os negócios de grilagem de terras e as milícias dos irmãos Brazão. Novamente, os bandidos que mataram Marielle relacionavam-se com o crime que age nas frestas da ausência do Estado, quer na barafunda fundiária, quer na exploração da falta de segurança pública.
Se existisse um sindicato do crime desorganizado, ele protestaria diante da concorrência desleal praticada pelos doutores e pelos policiais. Esse mesmo sindicato defenderia a classe contra a expansão de suas atividades criminosas.
Se tudo isso fosse pouco, Marielle foi executada três semanas depois da presepada da intervenção militar na segurança do Rio, e o crime foi planejado pelo chefe da Polícia Civil do Rio, nomeado pelos generais que poriam ordem na casa.
Inicialmente, pensou-se que o atentado era uma resposta dos criminosos convencionais demarcando o domínio do território. (O signatário caiu nessa.) Ilusão democrática. Não havia bandidos avulsos no lance. Só bandidos articulados no aparelho estatal. Gente que defende seu mercado estimulando a repressão aos PPPPs (pretos, pardos e pobres da periferia). Nela, as polícias matam pelo país afora, dizendo que são “suspeitos”.
Faz tempo, o assaltante Lúcio Flávio Vilar Lírio enunciou sua lei:
— Polícia é polícia, bandido é bandido.
Ela nunca foi respeitada, mas a morte de Marielle mostrou que o apodrecimento do Estado foi além. Ao longo de seis anos, a engrenagem da segurança pública foi sabotada para proteger os criminosos.
Foi a entrada da Polícia Federal no caso que interrompeu a putrefação. Vale lembrar que um policial federal alertou os generais sobre a periculosidade do delegado colocado à frente da polícia do Rio. Não foi ouvido. Naqueles dias, um general foi a um quartel da PM, e a tropa não lhe deu imediata continência. Não desconfiaram de nada. Achava-se que muita coisa se resolveria se fosse criado o instituto das autorizações para invasão de domicílios a partir da suspeita contra ruas. Pura demofobia.
De forma esparsa, a metástase do Estado fluminense repete-se em muitos outros. Até hoje, a reação do poder público tem oscilado entre a benevolência e as presepadas.
A crise da segurança pública não será resolvida por balas de prata, mas a Polícia Federal está aí, mostrando que, bem ou mal, resolve alguns casos que lhe chegam.
No início do século XX, os Estados Unidos tinham crime organizado, polícia corrupta e Justiça venal. Criado o Federal Bureau of Investigation, o jogo virou. Seu diretor era um sujeito detestável, mas criou o FBI.
É palpite, mas se a execução de Marielle tivesse capitulado um crime federal, a quadrilha que planejou e executou o crime não teria o atrevimento de embaçar a investigação por seis anos. O respeito à autonomia constitucional dos estados serviu apenas para proteger bandidos encastelados no aparelho do Estado.
Elio Gaspari, o autor deste artigo, é jornalista e escritor. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 27.03.27
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