quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Mais que Assange

Extraditar o editor do Wikileaks para os Estados Unidos seria uma forma de intimidar a mídia e suas fonte

Apoiadores de Julian Assange, esta terça-feira em frente ao Tribunal de Recurso de Londres. (Toby Melville (Reuters)

Nas próximas horas um tribunal do Reino Unido poderá decidir se Julian Assange, editor do Wikileaks acusado de revelar informações secretas do Governo dos Estados Unidos em 2010 e 2011, tem o direito de recorrer da sua extradição para os Estados Unidos, autorizada em 2022 pelos britânicos. Supremo Tribunal Federal e confirmado pelo Executivo. Negar esse direito ao famoso hacker australiano —cujas revelações mostraram fatos e estratégias da opinião pública mundial que Washington tentou esconder durante anos—pode não significar apenas uma sentença de 175 anos de prisão para uma pessoa cujo suposto crime foi publicar documentação que um governo estava ocultar-se deliberadamente à sua sociedade, mas também um duro golpe para o jornalismo de investigação e, em suma, para a liberdade de imprensa em todo o mundo.

As acções de Assange foram vitais na divulgação de informação protegida por uma utilização falaciosa do conceito de segredo de Estado. Entre eles, provas documentais de ações ilegais do exército dos EUA contra civis nas guerras no Afeganistão e no Iraque ou pressão sobre os governos de países soberanos ao longo de várias décadas.

O Wikileaks foi um esforço de divulgação no qual colaboraram meios de comunicação de todo o mundo, contribuindo com centenas de profissionais que verificaram a autenticidade da documentação e, em linha com os códigos jornalísticos de deontologia, colocaram em prática os protocolos necessários para garantir que a publicação desta informação seria não colocar em risco a vida de qualquer pessoa. Isso aconteceu, por exemplo, com a publicação, a partir de 2010, de mais de 250 mil documentos do Departamento de Estado dos quais participaram EL PAÍS, The New York Times, The Guardian, Le Monde e Der Spiegel.

O assédio sofrido por Julian Assange desde praticamente essa mesma data - o que o obrigou a pedir asilo durante sete anos ao Governo do Equador em sua embaixada em Londres, onde além disso, como revelou o EL PAÍS, era espionado 24 horas por dia por uma empresa espanhola - vai além da perseguição de Washington a um alegado crime de revelação de segredos, mas constitui uma forma inequívoca de intimidar os meios de comunicação social e as suas fontes.

Certamente, a figura de Assange é controversa. Seus problemas judiciais começaram com uma fuga da justiça sueca após ser acusado de estupro e abuso sexual, acusações das quais sempre se declarou inocente e vítima de uma armação para extraditá-lo para os Estados Unidos. Ele também foi acusado de fazer parte da estratégia de Vladimir. … Putin para desestabilizar o Ocidente. Finalmente, a relação com os meios de comunicação que divulgaram as informações do Wikileaks tem sido por vezes turbulenta. Mas nada disto pode esconder o seu papel decisivo como actor necessário para que os direitos dos cidadãos, especialmente dos americanos, fossem respeitados quando o seu Governo agiu no sentido oposto.

Muito mais se decide hoje em Londres do que a extradição de um cidadão acusado de um crime. O que está em causa é, numa época de montagens, boatos e realidades alternativas como a que vivemos, uma forma rigorosa e independente de fazer jornalismo. E com ela, dois pilares da democracia: a liberdade de imprensa e o direito à informação.

Editorial do EL PAÍS,em 21.02.24

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