A desolação com o presente não pode calcificar a História nem infertilizar nossas potências de invenção e reinvenção da vida, sob o farol dos valores civilizatórios
Caminhamos em chão nunca antes pisado. Para além da evidência já formulada desde o mundo antigo, de que nunca atravessamos um mesmo rio, porque mudam os rios e mudamos nós, o fato é que, neste novo milênio, a matéria-prima do passado se soma a ingredientes inéditos da contemporaneidade, conformando um tempo expressamente diferente de tudo o que já vivemos, fundindo doses de estranheza e familiaridade a uma mesma experiência.
Um exemplo decisivo? Os extremismos e populismos, que já produziram fatos históricos nefastos como o nazismo, encontram no hoje as novidades da digitalidade, com as virais e virulentas conexões em rede e o desvalor da verdade factual, estabelecendo, para quem navega fora das bolhas radicais, o espanto de uma escalada de violência anti-humanística norteada especialmente pela aposta na desagregação social.
Em solo inexplorado, a sensação de desamparo, comum a todos os viventes, se torna vertiginosa. Especialmente ante o desconhecido e o desafiante, mitos e salvadores grassam como praga, ofertando simplificações e redenções ilusórias. Na arena político-ideológica de disputa por mentes e corações, a polarização é estratégia manjada – mas, como se vê, permanentemente atualizada, como agora se faz pelas vias digitais.
Nesse sentido, durante a travessia de uma polarização obscura, é preciso que tenhamos a clareza de quatro pontos cruciais. O primeiro é que os tempos históricos são intervalos na paisagem em que a humanidade desenha seus caminhos – para o bem ou para o mal, tudo passa. Um segundo ponto é que todos os tempos são obra humana, colocando em conjugação o passado, o atual e o horizonte, numa disputa de memórias, sensações e esperanças. O terceiro é que, no percurso, não podemos perder o rumo da civilização humanística, fundamentada na dignidade irrestrita e vinculada à fraternidade, à liberdade e à igualdade. Por fim, mas não menos importante, devemos ter claro que, na verdadeira luta cotidiana pela democracia, é preciso um olhar estratégico sobre a ampla dinâmica socioeconômica e político-cultural, de modo a evitar que medidas pouco razoáveis do ponto de vista republicano e passos apartados da rota do bom senso ético-político acabem por dar munição e combustível aos discursos extremistas e divisionistas dos arautos da barbárie.
Com a consciência de que somos os autores dos tempos que se sucedem, o humanismo é um dever de casa que não cessa, sob o risco de retrocessos dramáticos. Assim, a desolação com o presente não pode calcificar a História, muito menos infertilizar nossas potências de invenção e reinvenção da vida, sob o farol dos valores civilizatórios. Como se diz, “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”.
Reconheçamos que pisamos em terreno intocado e que, ainda por cima, se mostra fluido e camaleônico. Reconheçamos os desafios deste tempo atravessado por novidades encantadoras e, ainda assim, assombrado por horrores passados que se queriam sepultados. Reconheçamos que os diálogos se submetem a uma nova lógica comunicativa que mais enseja bolhas do que amplas interações renovadoras. Reconheçamos que, juntamente com populações inteiras que se empoderam, buscando se emancipar e se autonomizar diante de opressões históricas, convivem massas sedentas de lideranças que lhes façam sonhar com a supressão da diferença.
Reconheçamos a crise, mas também reconheçamos, antes de tudo e diante de tantos desafios, que o futuro, como realização humana, não tem destino predeterminado. E que, assim, cabe àqueles que não se rendem à hipnose da polarização obscura preservar o estatuto da civilização humanística. Em muitos casos, o papel dos líderes e da cidadania organizada é, mesmo, navegar contra a correnteza.
Desse modo, requer-se perseverança na conversa multi-ideológica, na capacidade de escutar e entender o outro e suas razões. Isso tudo, de modo a romper os grilhões da manipulação, pois os agentes da discórdia empenham seus maiores esforços em nos manter no alçapão da polarização obscura, mediante uma estratégia de disputa, conquista e manutenção de poder.
É preciso lembrar que há outro modo de conceber e levar a vida para além de extremismos e populismos. Conciliação, consideração e diálogo entre diferentes percepções e maneiras de viver são atitudes éticas impositivas diante de posições sectárias, doutrinadoras e até mesmo hostis, que prescrevem a eliminação da diversidade. Pode parecer inaceitável para muitos, mas ninguém tem o monopólio da receita da História, que é, em verdade, uma realização em aberto.
Diante da miséria humana que testemunhamos aqui e acolá, lembremo-nos de que podemos nos unir em torno do que nos eleva. Lembremo-nos, com Sartre, de que estamos condenados à liberdade de nos inventarmos – e que isso pode e deve ser uma dádiva. Mãos à obra, pois, de um tempo novo, que nos inspire crescentemente a sermos o melhor que pudermos ser – como sujeitos, como cidadãos, como nação.
Paulo Hartung, o autor deste artigo, é economista, Presidente-Executivo Da IBÁ, Membro do Conselho Consultivo do RENOVABR. Foi Governador Do Estado Do Espírito Santo (2003-2010/2015-2018). Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.02.24
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