Apesar das isenções e da legislação mais flexível para abertura de igrejas no país desde 2003, a grande maioria é irregular
A avaliação de políticas públicas deveria ser ingrediente essencial do trabalho de gestores públicos, tarefa que se inicia ainda no desenho da ação estatal. Na avaliação de impacto, é necessário também detectar efeitos não esperados, sendo importante informação para ajustes na política ou mesmo sua suspensão.
Ainda que as decisões sejam eminentemente políticas, é crucial munir o debate público com essas avaliações, inclusive como instrumento para afastar ganhos indevidos de grupos organizados. No Brasil, porém, políticas são implementadas e renovadas sem o devido cuidado.
Um exemplo disso é a imunidade tributária de igrejas (mais precisamente, locais de culto). A discussão não é sobre praticá-la ou não — mesmo em países pouco religiosos, como a China, há imunidade —, mas como fazer.
Há alguns argumentos para a imunidade. Para alguns, trata-se de questão moral. Para outros tantos, a motivação é a separação entre Igreja e Estado, de modo a assegurar a liberdade religiosa.
No Brasil, a Constituição estabelece a isenção de IR, Cofins, IPVA, ITCMD e IPTU. Em 2019, se prorrogou até 2032 a isenção de ICMS para entidades religiosas. Em 2020, o Congresso aprovou a anistia de dívidas tributárias de igrejas e isenções com efeito retroativo (a estimativa era de R$ 1,6 bilhão).
Em 2022, o governo ampliou o alcance da isenção de contribuições previdenciárias sobre a remuneração de pastores, o que foi suspenso recentemente pela Receita Federal — não sem reação das igrejas. Outro capítulo recente é a isenção do IVA, na Reforma Tributária, para igrejas e atividades assistenciais e beneficentes vinculadas.
Tomando como referência os EUA, certamente a legislação brasileira é muito permissiva. Naquele país, as regras são mais rígidas — mesmo assim não impedem fraudes. São proibidas as atividades de lobby para influenciar a legislação; a interferência ou participação em campanhas políticas (ainda que preservando a liberdade de expressão de cunho pessoal, fora das funções oficiais da igreja); e atividades que geram rendas privadas a pessoas envolvidas nas atividades da organização.
As igrejas devem informar a remuneração dos seus membros e funcionários, que não podem ser exageradas.
A violação desses requisitos é, potencialmente, motivo para perda do status de imunidade tributária, inclusive das contribuições recebidas. Adicionalmente, a renda gerada indevidamente estará sujeita a impostos especiais de consumo e as irregularidades precisarão ser corrigidas. Há regras para cada situação, do que pode e do que não pode ser feito.
Há controles por parte da receita federal (Internal Revenue Service), ainda que com algumas limitações impostas pelo Congresso. As igrejas são obrigadas a manter livros contábeis e outros registros necessários para justificar a imunidade, para fins de auditoria.
Desnecessário apontar a enorme diferença com o caso brasileiro, onde certas interferências de organizações religiosas são incompatíveis com o Estado laico. Além disso, pecamos duplamente, pelo elevado número de organizações irregulares e pela falta de controle sobre as regularizadas.
Apesar das isenções e da legislação mais flexível para abertura de igrejas desde 2003, a grande maioria das igrejas é irregular, sem CNPJ e muito menos alvarás de Prefeitura e Corpo de Bombeiros.
Os números superlativos no Brasil trazem preocupação. Segundo o Censo 2022, há 579,8 mil igrejas (regularizadas ou não) — ante 264,4 mil estabelecimentos de ensino e 247,5 mil de saúde. Isso significa 2,86 igrejas para cada 1.000 habitantes. Nos EUA, com 254,7 mil igrejas, a razão é de 0,76. Na Arábia Saudita, um Estado teocrático, a proporção é de 2,76.
Mesmo o crescimento das igrejas regularizadas tem sido grande. Pesquisa do Centro de Estudos da Metrópole com igrejas evangélicas, utilizando dados do CNPJ, identificou 17 mil delas em 1990, cifra que saltou para 109,6 mil em 2019.
Algumas congregações cumprem importante papel social, o que precisaria ser avaliado e, eventualmente, poderia ser ampliado — como encaminhar os vulneráveis para inclusão no Cadastro Único e para os serviços públicos assistenciais —, tendo em vista a elevada capilaridade das igrejas.
É um tema com grande impacto na vida das pessoas, especialmente os não privilegiados, e merece maior cuidado.
Zeina Latif, a autora deste artigo, é economista. Publicado originariamente no O Globo,em 07.02.24
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