quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

É um erro excluir os delatores do indulto de Natal

Medida de Lula desestimula um instrumento poderoso de investigação e dificulta a resolução de crimes

Presídio Ary Franco, no Rio de Janeiro — Foto: Daniel Marenco/Agência O Globo

Definido de forma vaga na Constituição, o indulto natalino se transformou nos últimos anos numa forma de o presidente da República manifestar suas inclinações pessoais e, ao mesmo tempo, aliviar a carga que pesa sobre um sistema carcerário superlotado. Em 2017, ficou célebre o perdão abrangente do então presidente Michel Temer a todos os presos por crimes não violentos (contestado na Justiça, depois validado pelo Supremo). No indulto final de seu governo, Jair Bolsonaro fez questão de incluir policiais e militares. Agora, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva excluiu do indulto concedido na semana passada os condenados que tenham feito colaboração premiada com a Justiça.

Além dos delatores, Lula deixou de fora — corretamente nesse caso — os autores de crimes hediondos, violência contra a mulher, delitos ambientais e os que atentam contra o Estado Democrático de Direito, como os réus e condenados pelos ataques do 8 de Janeiro. É prerrogativa do presidente manter presos réus ou condenados por crimes que considera graves. Mas não faz sentido Lula excluir do perdão quem assinou acordo de delação. Com isso, ele desincentiva um instrumento poderoso de investigação criminal.

É frágil o argumento, usado por petistas, de que delatores já foram beneficiados com redução da pena. Uma coisa nada tem a ver com a outra. A exclusão, inédita, apenas expõe a má vontade do governo petista com a colaboração premiada. Lula acredita que o modelo foi desvirtuado e que as acusações acabam anuladas na Justiça por falta de provas.

A delação premiada foi regulamentada pela Lei de Organizações Criminosas no governo da petista Dilma Rousseff. Trata-se de acordo entre Estado e réu para obter informações que ajudem a resolver crimes ou desbaratar quadrilhas. Quando as delações da Operação Lava-Jato levaram à prisão figuras históricas do PT, como o próprio Lula, passaram a ser amaldiçoadas.

É certo que as informações obtidas por meio de delações não bastam como provas. São pontos de partida para investigações mais detalhadas. Em geral, fornecem à polícia e ao Ministério Público pistas para destrinchar crimes que permaneceriam insolúveis de outro modo. Cabe aos investigadores cruzar dados, aprofundar a apuração e verificar o relato dos delatores. Na dúvida, a acusação é descartada.

Com os reveses da Lava-Jato, tornou-se frequente a anulação de acordos de leniência e delação, ainda que os réus tenham confessado seus crimes diante das câmeras. A defesa costuma alegar que a confissão ocorreu sob pressão, ou até tortura. São conhecidos os erros da Lava-Jato, mas não dá para querer reescrever a História do maior esquema de corrupção desbaratado no Brasil.

E acordos de delação premiada não existem apenas no âmbito da Lava-Jato. A colaboração premiada do ex-PM Élcio de Queiroz mudou o rumo das investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes. A delação do ex-ajudante de ordens Mauro Cid tem ajudado a desvendar as tramas golpistas no Planalto durante o governo Bolsonaro.

A concessão do indulto de Natal é obviamente prerrogativa do presidente, mas não tem cabimento pôr no mesmo patamar quem fez delação premiada e réus ou condenados por crimes hediondos. Desestimular colaborações só tornará ainda mais difícil esclarecer crimes, num país em que quase dois terços deles permanecem sem solução.

Editorial de O Globo, em 28.12.23

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