segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Golpe?

O que houve no 8 de Janeiro foi uma espécie de estertor do bolsonarismo, com seus fiéis ainda acreditando numa narrativa ‘revolucionária’ evanescente

Para melhor compreendermos os eventos do dia 8 de janeiro, alguns açodadamente considerando tratar-se de uma tentativa de golpe, torna-se necessário analisarmos o papel dos militares nos últimos anos e meses. Nesse sentido, convém, preliminarmente, observarmos que não há a menor possibilidade de golpe sem intervenção militar e, em particular, do Exército. A história brasileira está repleta de exemplos desse tipo. Logo, impõe-se logicamente a seguinte conclusão: se não houve golpe, foi simplesmente porque o Alto Comando do Exército evitou que isso acontecesse. E isso ocorreu antes da posse do presidente Lula.

Se não soubermos fazer a distinção da instituição Exército em relação a alguns militares, principalmente da reserva, que agiram enquanto indivíduos numa colaboração estreita com o bolsonarismo, falharemos em abordar a questão central. Foram os militares constitucionalistas do Alto Comando, com destaque para os generais Tomás Paiva, Valério Stumpf, Richard Nunes, Guido Amin e Fernando Soares, entre outros, que disseram não às articulações que então se fizeram. Não compactuaram nem aceitaram a quebra do Estado de Direito, da democracia, permanecendo apegados aos seus princípios. Alguns sofreram, inclusive pessoalmente, com acusações caluniosas, considerados como “generais melancias”, verdes por fora, vermelhos por dentro. Familiares foram também objeto de acusações desse tipo nas redes sociais. No entanto, permaneceram firmes em suas convicções e não cederam.

A República muito lhes deve e isso deveria ser reconhecido. Não faz, assim, nenhum sentido empreender campanhas públicas contra os militares como se estes fossem “golpistas”. A tais pessoas falta bom senso. Que houve militares da reserva envolvidos nas depredações do dia 8 de janeiro significa tão somente que agiram enquanto pessoas, sem nenhuma representação institucional. Da mesma maneira, civis estiveram envolvidos. E todos devem ser investigados e, se for o caso, punidos na forma da lei. Ademais, caberia também determinar a responsabilidade do então chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), escolha pessoal do presidente Lula, e a inércia da Força Nacional, subordinada ao Ministério da Justiça, que poderia ter sido efetivamente acionada, considerando a tensão institucional naquele momento.

Quando da violência daquele dia, a tentativa de golpe já havia sido abortada. O presidente eleito tinha assumido e estava em pleno exercício de suas funções. O resultado eleitoral tinha sido respeitado e a transição de um governo a outro, operada, embora o antigo presidente não tenha seguido a liturgia de passagem de poder. O que, sim, houve naquele momento foi uma espécie de estertor do bolsonarismo, com os seus fiéis ainda acreditando numa narrativa revolucionária evanescente. Foram iludidos e ludibriados. Os mentores sumiram de cena, apesar de sabedores de que o Exército não os seguiria. Foi simplesmente uma ópera-bufa. Portanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) deveria ter maior moderação na pena aplicada a esses participantes, por mais lamentáveis que sejam as suas condutas. Penas de 17 anos não guardam nenhuma proporção com suas ações e responsabilidades. Em bom Português, estamos observando uma encenação midiática para punir bagrinhos.

Carecem igualmente de sentido ações políticas em curso procurando modificar o artigo 142 da Constituição federal, como se este fosse permissivo em relação a uma intervenção dos militares como Poder Moderador. Não há nada lá escrito que enseje tal interpretação, salvo se formos enveredar para interpretações completamente arbitrárias, desprovidas de quaisquer fundamentos. Um golpe, por definição, é um ato de força e, por isso mesmo, prescinde de qualquer interpretação jurídica. É um ato de ruptura com a ordem constitucional e, enquanto tal, se institui como fonte de um novo tipo de direito, tido por revolucionário. Assim o entendeu o jurista Francisco Campos ao escrever o Ato Institucional número 1 a mando do então ministro da Guerra, Costa e Silva. Não precisou fazer uma interpretação da Constituição válida naquele momento, mas simplesmente lhe sobrepôs uma lei maior, considerada como “revolucionária”.

Um dos grandes eventos da história universal, a Revolução Francesa, de 1789, nasceu de uma ruptura constitucional, abolindo o arcabouço legal e institucional baseado na monarquia de direito divino dos reis. O destino do rei e de sua família foi a guilhotina, acionada segundo um tribunal revolucionário carente de qualquer base legal à luz da Constituição então vigente. Robespierre chegou a dizer que seria julgado pela História, como se a História fosse um tribunal. Trata-se tão somente de uma narrativa política que capturou mentes e corações, engendrando uma outra ordem constitucional, ancorada em novos princípios e valores, que veio a moldar boa parte das Constituições posteriores em todo o mundo. No momento da ruptura, não fizeram nenhuma interpretação da Constituição vigente, simplesmente clamaram contra a sua injustiça.

Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo, é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRS. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 09.10.23

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