A Constituição precisa ser real, e não peça abstrata para quem vive nas periferias urbanas
Ulysses Guimarães mostra o projeto da Constituição — Foto: Gustavo Miranda
Celebramos hoje os 35 anos da promulgação da Constituição Federal de 1988. Uma oportunidade para a renovação dos compromissos do Estado e da sociedade brasileira com a democracia. A Assembleia Nacional Constituinte, convocada em 1987 como parte do processo de transição, aprovou uma Carta capaz de espelhar a nação que buscava o amanhecer da liberdade de um Brasil desenhado com todas as cores da aquarela.
Mesmo os segmentos políticos que apontaram insuficiências na Constituinte travaram embates fortes e fizeram críticas políticas a seus próprios limites, como no tema relacionado às Forças Armadas e segurança pública, sem jamais comprometer seu processo. Ainda é ela a melhor referência de abertura e transparência do Congresso e dos demais Poderes para com a nação. Resgatá-la e valorizá-la é reforçar que o caminho da unidade entre os democratas é irrenunciável.
Ainda assim, nossa Constituição, uma das mais avançadas do mundo, que tem como premissa a dignidade da pessoa humana e o Estado Democrático de Direito, já foi objeto de 131 emendas que demonstram nítida intenção reformadora dos constituintes derivados, mesmo antes da completa regulamentação e efetivação dos princípios nela consagrados.
A Carta Magna que entrou em vigor no Brasil, carregada de um sentido de responsabilidade do Estado, obteve atenção diversa à sua observância pelos governos, no período destes 35 anos, como ajustes fiscais que aprofundaram a desigualdade econômica e social. Registrar isso é destacar que a Constituição pode ser interpretada, mas não moldada pela autoridade de cada momento, por serem os governantes eleitos que juram respeitá-la, não o contrário.
A democracia deve cumprir a promessa de superação da desigualdade, da segregação, da dependência e do racismo estrutural que definem historicamente o Brasil. A Constituição precisa ser real, e não peça abstrata para quem vive nas periferias urbanas, para as mulheres em busca da equidade e respeito, para jovens negros vítimas de violência, para assegurar a existência dos povos indígenas, a cidadania aos LGBTQIA+ e a todos aqueles e aquelas que tantas vezes são tratados como cidadãos sem direitos.
É hora de construir uma cultura política democrática, em que exercer a cidadania vá além do voto. Estar informado, participar diretamente de decisões de interesse público, avaliar políticas públicas, acompanhar demandas, ser parte de comunidades e organizações, ser agente de ideias.
Num contexto de avanço de autoritarismo no mundo e de atentados à democracia, tais como os ocorridos no 8 de Janeiro, é preciso retomar o sentido originário da nossa Constituição, no mesmo espírito com que Ulysses Guimarães fez seu discurso na sessão de promulgação:
— Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.
Maria do Rosário, a autora deste artigo, é Deputada Federal (PT-RS). Publicado originalmente n'O Globo, em 05.10.23
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