No mundo dos sonhos petistas, os partidos deveriam ser livres para descumprir a legislação e dispor dos bilionários fundos públicos sem essa arrelia de ter de prestar contas ao TSE
A presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann, questionou a existência da Justiça Eleitoral durante uma sessão da comissão especial que analisa a chamada PEC da Anistia. Caso essa sem-vergonhice prospere, e nada indica o contrário, os partidos ficarão livres do pagamento de multas impostas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por descumprimento da legislação eleitoral vigente em 2022, em particular pela inobservância das cotas para candidaturas de mulheres e negros e do porcentual de distribuição do Fundo Eleitoral para esses dois segmentos da sociedade sub-representados no Congresso.
O grande tema, porém, não é o questionamento da líder petista. Os cidadãos e seus representantes na Câmara são livres para discutir, com civilidade e honestidade intelectual, se, de fato, faz sentido haver no País uma estrutura do Poder Judiciário dedicada às questões de natureza político-eleitoral ou se essa demanda poderia ser atendida pela Justiça comum. É um tema digno de debate. O problema é o que está por trás desse ímpeto da deputada Gleisi Hoffmann em voltar suas baterias contra o TSE e os Tribunais Regionais Eleitorais.
Segundo a dirigente petista, as decisões das Cortes Eleitorais “trazem a visão subjetiva da equipe técnica dos tribunais, que, sistematicamente, entra na vida dos partidos políticos, querendo dar orientação, interpretando a vontade dos dirigentes”. Tivesse saído da boca de um parlamentar bolsonarista há apenas alguns meses, a mesmíssima fala teria desencadeado uma feroz reação dos petistas. Entretanto, o aborrecimento com a Justiça Eleitoral faz com que petistas e bolsonaristas deem as mãos e caminhem lado a lado na defesa dos interesses particulares dos partidos.
Por “entrar na vida” das agremiações políticas ou lhes “dar orientação”, entenda-se simplesmente o dever da Justiça Eleitoral de exigir o cumprimento das leis e da Constituição, nada além disso. As palavras de Gleisi Hoffmann indicam que, no seu mundo dos sonhos, os partidos não deveriam estar submetidos a essa arrelia de, ora vejam, ter de respeitar a legislação em vigor e prestar contas pelo uso dos bilionários fundos públicos que abarrotam o caixa das legendas.
Com um misto de desfaçatez e descaso pelos recursos dos contribuintes, a sra. Hoffmann afirmou que a Justiça Eleitoral estaria sendo implacável com os partidos ao impor multas “impagáveis” – cerca de R$ 23 bilhões acumulados por todos os partidos entre 2018 e 2023. De acordo com o TSE, só em 2022, o PT recebeu R$ 500 milhões do Fundo Eleitoral e mais R$ 104 milhões referentes à sua cota de distribuição do Fundo Partidário.
Na condição de presidente do partido mais orgânico e bem estruturado do País, goste-se ou não do PT, a deputada Gleisi Hoffmann vocaliza um sentimento que decerto anima a grande maioria de seus colegas dirigentes partidários: a Justiça Eleitoral mais atrapalha do que ajuda. Raríssimos são os que não desejam todos os bônus advindos da criação de um partido político no País sem ter de arcar com os respectivos ônus. Eis mais um sinal do total descolamento entre a maioria das legendas com representação no Congresso e os grandes anseios da sociedade brasileira. Salvo raras exceções, os partidos estão cada vez mais afastados dos eleitores e mais fechados na defesa dos interesses particulares de seus líderes.
Idealmente, não deveria haver Justiça Eleitoral no País nem tampouco os fundos públicos que financiam a administração e as campanhas políticas dos partidos. Este jornal não se furtará a advertir, sempre que necessário, que os partidos são organizações privadas da sociedade e, como quaisquer outras dessa natureza, devem ser financiados exclusivamente por recursos privados. Mas, dado que não há no horizonte o mais tênue indício de que os fundos públicos que jorram dinheiro nas contas dos partidos terão fim, é indispensável que ao menos haja uma instituição capaz de controlar o manejo desses recursos – R$ 6 bilhões apenas em 2022. E hoje não há outra mais qualificada para isso do que a Justiça Eleitoral.
Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 24.09.23
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