quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Constitucionalismo imperial

O protagonismo atual do Supremo Tribunal não decorreu de um ato de vontade da Corte, mas por deliberada transferência de competências dos outros dois Poderes

Com a redemocratização e a centralidade normativa da Constituição, era esperado que o Supremo Tribunal Federal (STF) ganhasse relevo no trabalho diário de consolidação de uma nova ordem jurídica firmada nos valores da liberdade e na consequente imposição de limites ao poder estatal. Dos sonhos de 1988 à realidade do presente, andamos muito e relativamente bem. Não se trata de dizer que foi perfeito nem que poderia ter sido melhor; a marcha do processo histórico, em especial nas complexas democracias contemporâneas, é traçada em linhas sinuosas, entre terrenos difíceis e acidentados, com inarredáveis riscos de retrocessos e suas forças do atraso. Todavia, ao elevar o talento e a inteligência humana, é a via democrática o caminho possível para sermos livres e, assim, guiarmos o progresso civilizatório, ampliando janelas de oportunidade, estudo, trabalho e mobilidade social ascendente à cidadania brasileira.

Nestes 35 anos de caminhada constitucional, apesar de tantos avanços notórios, há uma circunstância que, por seus agudos efeitos deletérios, não mais pode ser ignorada: o grave apequenamento institucional da classe política. Entre as variáveis decadentes, a falência moral e estrutural dos partidos políticos tem peso determinante. É cediço que, sem partidos autênticos, a democracia fica à mercê dos piores falseamentos. Isso porque é dever das agremiações partidárias preparar e selecionar os quadros mais capazes para o exercício digno da função política, afastando os aventureiros ou mal-intencionados. No trabalho pedagógico, deve-se promover uma cultura política séria, historicamente referenciada e com clara visão dos problemas brasileiros e internacionais, enaltecendo, com rigor, os predicados de ética comportamental e da decência de procedimentos. Algo, no entanto, se perdeu; temos partidos aos borbotões, mas nos faltam políticos modelares.

Infelizmente, a teoria cedeu ao pragmatismo existencial raso e imediato. Ao invés de valores, optou-se pelas cifras. Temos atualmente partidos bilionários, embora paupérrimos no bom trabalho democrático. Aliás, a recente votação da reforma tributária, reprisando outras sangrias do passado, foi regada a ouro das emendas parlamentares. Conforme informações da imprensa, foram liberados, num único dia, ao redor de R$ 5,3 bilhões aos congressistas para, pasmem, cumprirem o dever de votar um projeto de lei. O fato chama a atenção. Não se trata de exigir um puritanismo angelical à política, mas há de existir um limite. No desvão da honra, a crença do cidadão nas instituições é a cada dia mais miserável. Olha-se para Brasília, mas não se enxerga o Brasil. Fala-se em democracia, mas o que se vê é o desmando estabelecido. E lá, no espelho da lei, a imagem da impunidade.

Ora, diante da sereia monetária, a política abriu mão de sua autoridade. E, sem a autoridade do Executivo e do Legislativo,

o poder de decisão sobre questões fundamentais da democracia foi gradualmente transferido ao Judiciário, em especial para o Supremo Tribunal Federal. Ou seja, o protagonismo corrente do Supremo não decorreu de um ato de vontade da Corte, mas por deliberada transferência de competências do Parlamento e do Executivo. Tal lógica defectiva de poder correu no tempo e, hoje, os eleitos democraticamente pelo povo pouco podem fazer pelos eleitores. Sim, a democracia vota, mas não manda. O voto elege, mas não tem a palavra final.

Em recente publicação na Harvard Law Review, o prestigiado professor de Stanford Mark A. Lamley afirmou que “estamos na era da Suprema Corte imperial”, que “não é apenas a mais ativista de todas as Cortes do século passado, mas cada vez mais o locus de todo o poder legal”, vindo a asseverar que “é um Tribunal que está consolidando seu poder, enfraquecendo sistematicamente os demais braços do governo, federal ou estadual, que possa ameaçá-lo, ao mesmo tempo que enfraquece direitos individuais”. Como se vê, os desafios e pulsões do constitucionalismo moderno não traduzem exclusividade brasileira. Talvez a grande questão em aberto seja bem calibrar o grau de exposição das Cortes Constitucionais sobre matérias políticas ordinárias que deveriam – e devem – ser analisadas prioritariamente pelo Legislativo e o Executivo. Agora, o que fazer quando a política institucionalizada trai e abandona seus deveres com a democracia?

Decididamente, a saída não é transformar a vida num litígio permanente. Sentenças judiciais resolvem casos jurídicos, mas não solucionam problemas políticos, podendo, inclusive, agravá-los. O atual desarranjo em curso, além de aviltar a alta função do STF, expõe demasiadamente a Corte, retirando-a de sua estratégica posição de retaguarda institucional. Sem cortinas, o corrente constitucionalismo imperial não deixa de ser o último freio de uma engrenagem de poder avariada, cujos metais batem a ferro quente. Ainda há tempo para besuntar a máquina e evitar consequências imprevisíveis. Para tanto, a política deverá voltar a privilegiar as melhores tradições de prestígio, mando e decisão. Não se trata de dinheiro, mas de poder. Um poder político que a democracia outorga aos eleitos. E só aos eleitos. 

Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr, o autor deste artigo, é Advogado e Conselheiro de Instituto Millenium. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 16.08.23

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